Contendas do Deserto – Orígenes, Justiniano, Teodora e o caso da Reencarnação no II Concílio de Constantinopla.
Parte V
Já vinha coletando críticas aos argumentos aqui expostos e analiso as que achei mais interessantes. Ao fim, encontra-se uma singela despedida e uma bibliografia que será utilíssima para os leitores com gosto pela pesquisa.
19 – A Defesa
Espírita: Alicerces na Areia da Retórica
19 – A Defesa Espírita: Alicerces na Areia da Retórica
Não será feita
aqui uma análise sistemática de algum artigo específico em favor desses dois
mitos, mas um apanhado de opiniões comuns a muitos, algumas afirmações
equivocadas
relevantes que encontrei em fóruns e mensagens eletrônicas pessoais, além
de alguns artigos do jornal O Tempo. Boa parte do material discutido está
baseada no seguinte artigo on line, de autoria de Paulo Neto. Muitos
tópicos já foram tratados esparsamente acima e serão revisados aqui.
1 - Foram
apresentados vários autores que falaram sobre o assunto, inclusive, vários deles
fora do meio espírita, para não se
colocar sob suspeita essas opiniões, alegando estarmos advogando em causa
própria.
Ficaria muito
estranho, por exemplo, se alguém dissesse não ser comunista, embora te
convidasse para assistir a um congresso do PSTU, PSOL ou qualquer outro partido
do gênero. Ainda que ele alegue: “olha, meu partido não leva a letra ‘C’ na
sigla!”, sua atitude não deixa de ser uma troca de seis por meia-dúzia muito mal
disfarçada. Se você praticamente só traz artigos de autores também
reencarnacionistas, que diferença faz se são espíritas ou não? É óbvio que terão
um viés simpático à ideia de um cristianismo primitivo com reencarnação, ainda
que discordem de Kardec em tudo mais. Pouco adianta dizer, por exemplo, que José
Reis Chaves era católico à época em que começou a escrever. Se suas teses
estavam em tremendo desacordo com o que pregava o Vaticano, então não passavam
da visão religiosa pessoal de um leigo (embora ex-seminarista) que precisava de
muito pouco para sair de vez. E saiu. (186)
Além disso,
muitos desses autores não são especialistas em história, ainda mais desse
período de nascimento e consolidação do cristianismo. Suas obras têm um caráter
mais jornalístico que acadêmico (Prophet, Chaves, Kersten), são para místicos
(Bizemont, Brunton), de indianos (Swami Tilak, Prabhupada) ou até mesmo feitas por
Ph.D’s -
muitos sem carreira como historiador (Severino Celestino – dentista, John
Algeo - filólogo); mas todos reencarnacionistas e com graus variados de
distância das fontes primárias, quando dão alguma referência. Não que leigos não
tenham nada a acrescentar quando pesquisam por conta própria. O problema surge
quando a bibliografia (quando existe) de seus estudos se calca principalmente em
outros autores espiritualistas ou faz um uso muito suspeito das fontes
primárias, cheio de falácias ao estilo misquotation ou cherry picking. Prophet é um
caso típico desse último viés, tendo sido discutido em outra
página deste portal. Infelizmente há quem se recuse a analisar as
observações feitas – que estão longe de qualquer complexidade-, só aceitando
apenas manifestações da própria ou transcrevendo elogios a ela feitos por outros
figurões do meio espiritualista. Mal comparando, são como aqueles que se
recusaram a ver pela luneta de Galileu.
De que adianta,
então, ler apenas livros que corroboram tuas expectativas e não dialogam entre
si pelo confronto de argumentos? Assim, se alguém se gaba por diversos autores
não espíritas defenderem esse mito, apenas preferiu navegar em águas calmas, sem
encarar as tempestades da contra-argumentação. Sei que não é fácil, pois, ao se
deparar com o confronto de duas teses, você pode ficar sabendo até menos do que
antes. Porém terá ideia mais clara do que é ainda é matéria em discussão e do
que já é consenso. Saberá aquilo que realmente não sabe, o que não tem condição
de afirmar categoricamente.
2 – Para
defender Teodora você usou um historiador chamado Procópio, que, segundo autores
modernos, era um indivíduo pouco confiável.
Lembro-me
vagamente de uma série de desenhos animados dos anos 80 chamada Gobots (The Challenge of the
Gobots, no original). Constituía uma espécie de prima pobre de Transformers,
mantendo essencialmente o mesmo argumento desta série melhor sucedida: uma raça
de robôs alienígenas - capazes de se transformar veículos - se encontrava em
guerra civil e, por força das circunstâncias, traz sua briga aqui para a Terra.
De um lado estavam os robôs do Bem, os Guardiões, aliados dos humanos; do outro,
os malvados Renegados. Em certo episódio (Renegade Alliance), ambos os grupos travam contato com
a poderosa frota espacial de outra raça alienígena (orgânica, porém), cujo
comandante decide interferir no conflito após vê-los lutando. Para decidir a
qual lado se aliar, ele submeteu os chefes das duas facções a um tipo de
detector de mentiras e começou justamente pelo chefe renegado. Malandramente,
esse declarou que “os guardiões estão tentando nos eliminar” (ou algo do
gênero, não identifiquei bem). O detector indicou que aquilo era verdade e, de
fato, o era, só que, como tentou protestar o líder guardião, aquela não “era toda a
verdade”. O comandante da frota não quis saber mais nada e teleportou os
guardiões de volta para a nave deles, não sem antes avisar que agora era seu
inimigo. O resto do episódio é uma corrida contra o tempo para desfazer o mal
entendido.
Bem, o que tem
a ver Procópio com essa nostalgia de um desenho animado? Simples, aqueles que o
acusam de ser parcial e nada confiável falam a verdade, mas não “toda a
verdade”: esquecem de dizer que seu viés oscila desde a propaganda estatal até a
calúnia pura e simples. Um dos autores usados para desqualificar o relato a
respeito das 500 prostitutas contido
O historiador Procópio, [Giordani, cap. II, p.47] A terceira obra de Procópio, a História Secreta, é
considerada por Runciman “um conglomerado
amargo de mexericos”. A “História
Secreta” difere, com efeito, fundamentalmente das outras duas e sua
autenticidade chegou a ser posta em dúvida pelos críticos. Essa obra é um
libelo grosseiro contra Justiniano, Teodora e o próprio Belisário. A
Justiniano o autor atribui a causa de todos os males que, então, caíram
sobre o Império. [idem, cap. X, p.192] |
Bem, vejamos
uma expansão do segundo extrato, para dar uma ideia melhor do que realmente
Mário Giordani disse sobre Procópio:
Na primeira [obra – Guerras de
Justiniano] são narradas as guerras de Justiniano contra persas,
vândalos, godos e expostos outros aspectos do governo desse imperador. A
maneira viva e atraente com que Procópio sabe abordar os problemas
militares explica-se pelo contato direto que o mesmo teve com tais
problemas quando redigia as ordens do dia, as formações de combate,
relações para o imperador, etc. Procópio foi atento observador do meio físico
bizantino e humano por onde passou, deixando-nos preciosas informações a
respeito dos aspectos culturais e especialmente da constituição política
de diferentes povos como vândalos, godos, francos, sírios, árabes,
armênios e persas. A segunda obra de Procópio [As Construções de
Justiniano] tem por finalidade enumerar e descrever a grande
quantidade de monumentos erigidos por Justiniano em toda a vastidão do
Império. Deixando de lado o tom laudatório (provavelmente a obra foi
erigida por ordem do próprio imperador), as
Construções são abundante fonte para estudos de ordem geográfica,
topográfica, financeira, econômica e sobretudo artística. É uma
indispensável para uma História da Arte Bizantina. A terceira obra de Procópio, a História Secreta, é
considerada por Runciman “um conglomerado
amargo de mexericos”. A “História
Secreta” difere, com efeito, fundamentalmente das outras duas e sua
autenticidade chegou a ser posta em dúvida pelos críticos. Essa obra é um
libelo grosseiro contra Justiniano, Teodora e o próprio Belisário. A
Justiniano o autor atribui a causa de todos os males que, então, caíram
sobre o Império. Podemos dizer que Procópio apresenta nessas páginas o
reverso do regime de Justiniano e, apesar da parcialidade do autor, a qual
o leva mesmo à calúnia, a História Secreta não deixa de, examinada com
critério, constituir fonte preciosa para o estudo da política interna do
império. Procópio pode ser considerado o maior vulto da prosa
bizantina do século VI e ser colocado “entre os maiores historiadores de
todos os tempos”. Seu estilo é lúcido, vigoroso. Descreve com vivacidade e
serve-se frequentemente de expressões tomadas a Heródoto e a Tucídides.
Nos processos de composição, imita Políbio. [idem, cap. X, p.192] – texto amplo. |
Ou seja, falta
a alguns apologistas espíritas contar que História Secreta é uma lavagem pública de roupa suja.
Se há algum viés nela, é no sentido oposto ao que alegam. Curiosamente, Giordano
menciona, sem pôr em dúvida a autoria dela, a obra Construções, que
possui uma versão idílica do encarceramento das prostitutas. Eis a suprema
ironia dos apologistas: querem se livrar da fonte que lhes seria mais útil e
deixar intacta de seus ataques a pior para eles. Procópio, ao esmiuçar a corte, realmente “não
é muito digno de fé” só não disseram exatamente por quê.
Devo
esclarecer, porém, que esse “descuido” pode ser fruto de uma tentativa de
harmonização com outra obra que chegou ao meu conhecimento: Teodora, de Carlos
Maria Franzero. Nascido em Turim, Itália, em 1892, o jornalista C.M. Franzero
residiu na Inglaterra a partir de 1922. Escreveu em inglês e italiano, às vezes
sob o pseudônimo de Charles Marie Franzero. Notabilizou-se como biógrafo de
personalidades históricas como Nero, Cleópatra, Beau Brummel, Tarquínio e Pôncio
Pilatos. Em 1961, lançou um novo livro para sua série: The Life and Times of
Theodora. Não foi possível ter em mãos a tradução para o português feita
pela Editora Companhia Nacional (Lisboa, 1963), a fonte que foi indicada por
apologistas espíritas. Porém, comparando o pequeno extrato que deram o com uma
larga passagem do texto original em inglês, diferença gritante aparece:
Versão portuguesa (p. 163) |
Tradução do portal do texto inglês (p.160) |
(..) Apesar de
tudo quanto sabia, nunca conseguiu falar senão do escândalo que a
Basilissa causava com as suas inconvenientes opiniões. Exagerava as
histórias referentes à sua avareza, à sua insolência, ao seu humor
autoritário e a excessiva influência que sobre Justiniano exercia – mas não citava
fatos susceptíveis de lhe mancharem a reputação. (...) |
Procópio,
o historiador da Corte, que, |
Para ver um scan do texto
original em inglês, clique aqui. Em
azul o trecho que
deveria
corresponder ao apresentado pela edição portuguesa. Não confirmo esta última
porque não obtive um exemplar dela, nem resposta do autor do texto onde ele era
usado ou dos que o hospedavam. De um lado, tem-se um Procópio a esconder algo do
que sabia para não macular a imagem da imperatriz; do outro, ele estaria, sim,
atacando a imperatriz impiedosamente, coletando todos os boatos possíveis que
chegassem a seus ouvidos. Bem, uma simples leitura de A História Secreta
sanaria a dúvida em favor da edição inglesa, assim chego a cogitar se houve
algum censor da ditadura salazarista que preferiu adulterar o texto em prol dos
“bons costumes”. Se for o caso de uma má tradução, há de se levar isso em
consideração pelos apologistas. A questão é por que eles não leram alguma edição
de A História
Secreta já de domínio público? Há tantas disponíveis on line! Daí vem
mais uma crítica vã:
3 – Você se
vale de muitas fontes da Internet (como os livros de Procópio utilizados), que
são menos confiáveis.
Sei que existe
muito receio contra fontes on line, alimentadas principalmente devido às polêmicas
em torno da confiabilidade de portais colaborativos, como a Wikipedia. O
problema é quando esse temor se estende à fontes virtuais que passam muito longe
desse modelo. Por exemplo, é possível baixar várias obras de autores clássicos
gratuitamente, de diversos portais. Será que, em termos de conteúdo, há alguma
diferença entre esses textos e os impressos? “Ah, mas tais obras
podem ser alteradas com facilidade!”. Sim, e as impressas também. A
diferença seria apenas a velocidade com que isso é feito e disseminado, mas
textos em papel podem ser tão fraudulentos quantos os virtuais. A tradução de
Franzero exposta acima é só um exemplo. Na Wikipedia, não temos certeza quanto à
idoneidade da fonte, coisa que pode ser averiguada em portais cujo mantenedor é
bem cotado. LacusCurtius é uma valorosa fonte de autores antigos e
modernos da historiografia romana (Procópio e Bury, só para constar) e é mantido
pela Universidade de Chicago. Será que há algo contra essa instituição? A edição
de Gibbon em língua portuguesa está incompleta e sem suas referência
bibliográficas. Deveria alguém fluente em inglês se contentar com ela quando
dispõe de um texto completo ofertado pela Christian Classics Ethereal
Library? Só por ser uma instituição confessional isso a
desqualificaria como fraudulenta, mesmo as polêmicas de Gibbon estando ainda
intactas? As clássicas coleções Ante-Nicene Fathers e Nice and Post-Nicene
Fathers, que foram usadas por espiritualistas como Prophet, são as mais
extensas coletâneas de textos da patrística em língua inglesa já em domínio
público e estão disponíveis lá também; então deve se evitar verificação
independente das fontes primárias só porque estão on line? Alguém tem
alguma prova de adulteração em relação às edições impressas no final do século
XIX?
Sem falar em
textos que são scans de obras clássicas. Nesse caso até erros
acidentais de digitação são descartados. Portais como o Google Books, o Documenta Catholica
Omnia e outros dão preciosas coleções como Patrologia Graeca,
Patrologia Latina e Corpus Scriptorum Historiae Byzantinae. E não se pode
esquecer a Monumenta Germaniae Historica, patrocinada pela Biblioteca Pública da
Bavária. Todos clássicos da historiografia do século XIX, hoje
acessíveis ao grande público graças à revolução da
Internet.
Óbvio que não se pode dar garantia absoluta de fidelidade.
Erros de transcrição escapam a revisões. Scans podem ficar ruins e, quem sabe, até serem modificados por
editores de imagem. Agora, se você suspeita que essa ou aquela fonte virtual não
é idônea, então, sinto muito lembrar, o ônus da prova é quem acusa, i.e.,
todinho TEU! Do contrário, fará apenas uma alegação genérica para se esquivar da
análise de um texto que lhe seria embaraçoso. Só falta dizer que quer obrigar o
oponente a gastar dinheiro comprando livros, inclusive em portais especializados
em livros raros e esgotados, em vez de aceitar o que ele lhe traz de graça.
Aliás, quem traz coisas que todos podem ler demonstra mais honestidade intelectual
que aqueles que usam e cobram apenas fontes mais restritas. Ele se expõe ao
risco de ser facilmente revisado e contradito, coisa que seria mais difícil com
livros que apenas um dos lados (momentaneamente) possuísse (190).
4 – Muitas de suas fontes (virtuais ou não) estão em inglês, dificultando a leitura do grande público.
Quando não estão em latim, grego ou francês! Primeiramente,
o inglês é a língua internacional dos tempos modernos e, meu caro, não adianta:
você tem que pelo menos ler nesse idioma se quiser ter acesso a maior parte dos
trabalhos internacionais! Se você é monoglota, então reconsidere profundamente
seu status de pesquisador ou tire um ano sabático para se aperfeiçoar
nesse idioma. O mercado editorial em português engatinha quando comparado com o
anglófono. Até nossos hermanos levam vantagem sobre a “última flor do Lácio”.
É razoável que se peça algum material que ainda não esteja
em domínio público, até para conferência; mas, como não é possível remeter
conhecimento linguístico por correio eletrônico, não é nada sensato tolher o
universo de pesquisa da outra parte limitando-a ao nosso idioma materno. Quem
sairá em maior desvantagem será o leitor, que terá barrado seu acesso a
preciosas informações. O que se pode fazer – e tem sido feito aqui – é traduzir
os textos sempre que possível. A única exceção que fiz foi para Edward Gibbon e
seu “Decline and
Fall...” – não me atrevi a verter para o português essa joia da
literatura em prosa inglesa. Esse, recomendo a todos que leiam no
original.
Vale lembrar que, ao traduzir, uma pessoa se expõe ao risco
de cometer algum erro e ser atacado por isso, mesmo que não prejudique o resto
do entendimento. Mas isso pode ser até bom, pois é sinal de que o oponente não
tem argumentos para refutar...
5 – Teodora “perseguia
implacavelmente aqueles que o acaso de seu nascimento lhe são impostos como
elementos perturbadores” e era “capaz de mandar matar por uma razão fútil o inseto humano
que perturba seus planos”, logo ela era bem capaz de cometer tal crime,
não?
Tais fragmentos
– conforme informado - foram retirados da obra do romancista e professor de
História Fèvre [cap X, p. 168; cap. XI, p. 182], porém foram pinçados de um
contexto mais interessante:
Ao
esperar a realização desse sonho [a futura ascensão de um protegido ao
poder], que ela só pode pressentir, a imperatriz trata de isolar o casal
escolhido para governar depois dela. Os descendentes da família ilírica de
Justiniano farão uma oposição incessante à decisão irredutível de Teodora.
No silêncio macio da corte, em um cenário de solho da cor púrpura
imperial, Teodora persegue implacavelmente aqueles que o acaso de seu
nascimento lhe são impostos como elementos perturbadores. *** A mulher
atenta à sorte miserável das prostitutas é também a rainha intransigente,
capaz de matar por uma razão fútil o inseto humano que perturba seus
planos. Uma única e mesma vontade inquebrantável, apossando-se de Teodora
na procura insaciável do poder e da glória, explica e dá coerência a
tantos traços aparentemente diferentes. |
O que Fèvre
destaca é a contradição entre a implacabilidade de Teodora com aqueles que lhe
eram um obstáculo ao poder com sua benevolência para os menos afortunados. Entre
esses dois textos [p. 173-4], Fèvre expõe sua reconstituição da política de
Teodora para a questão da prostituição:
Logo após
ter ascendido ao trono do Palácio Sagrado, Teodora procura melhorar a
sorte de milhares de prostitutas, em todos os bairros da capital. Em
A Igreja,
outro poder tutelar do império, não teria consentido que essas infelizes
ficassem perdidas pelas ruas, sem apoio. Para evitar a acusação de
impiedade, Teodora não as devolve à perambulação nas ruas sombrias, nas
discretas pracinhas. Talvez com o objetivo de encarnar com convicção seu
novo papel de imperatriz, faz encerrar as prostituas em um convento
fundado para esse fim. Difícil
seria dizer se a antiga cortesã, amaldiçoada por todo o clero da capital,
agiu por piedade ou por diplomacia. Mas, as pecadoras resgatadas a peso de
ouro teriam dispensado uma vida monástica. O novo convento destinado a
acolhê-las na capital mostra claramente seus objetivos: todos os
habitantes o conhecem pelo nome de convento Arrependimento. Os muros são
bastante altos, uma fuga poderia deixar aleijadas as pecadoras que se
arriscassem. Essas
mulheres devem passar o resto de suas vidas à sombra dos muros e das
edificações do convento, mantidas por uma verba significativa doada por
sua benfeitora, para a glória de Teodora, destinada ao céu por sua piedosa
colaboração para salvar almas em perigo. A
louvável iniciativa de resgate das prostitutas não suprimiu a
prostituição, moralmente baseada sobre a tolerância pagã, ainda muito
presente nas consciências bizantinas. Os alcoviteiros continuam a viver na
capital cristã, para contentamento dos aristocratas em busca de prazer ou
a distração de qualquer dos homens da cidade. A depravação dos costumes da
corte não teve nenhuma evolução sensível sob o reinado de Teodora, as
damas de companhia da soberana lembram mais mulheres de soldados do que
jovens educadas com distinção e cultura. A moral
imperial está salva, o povo pode louvar as preocupações da admirável
esposa de Justiniano. Teodora consagra-se a desenvolver a fundação
religiosa nos anos seguintes, e muitas outras prostitutas trocam seu modo
de vida por uma reclusão perpétua, sofrendo na carne para salvar a alma e
meditar sobre o destino excepcional de sua benfeitora. |
Pode-se notar,
embora Fèvre não cite claramente suas fontes, o uso feito da Crônica de Malala e
de duas obras de Procópio (História Secreta e Das Construções), além de outras não identificadas.
Apesar das alfinetadas de ironia com que insinua ser o combate a prostituição
apenas propaganda, ele passa longe de qualquer acusação de chacina. Ou seja, um
dos próprios autores usado pelos apologistas tem uma visão mais positiva do
episódio.
6 – Não se pode
deixar de pensar que algo grave estaria acontecendo para que algumas delas se
jogassem dos parapeitos dos muros do convento, buscando a morte certa. Não
poderia ser por que alguém as estaria torturando ou mesmo as matando?
Isso tudo é
especulação. Pelo menos três coisas enfraquecem essa tese: primeiro, Teodora
gastou muito dinheiro na construção e embelezamento de Arrependimento, o que não
seria condizente a um lugar destinado a ser simples matadouro. Segundo, o
convento durou muito além de Teodora, durando até o século XI (vide cap. X desta
seção). Era, portanto, uma obra destinada ao longo prazo. Por último, O casal
imperial não tinha meias-palavras na hora de decretar a repressão e morte a esse
ou àquele grupo social ou religioso. Isso foi visto na apresentação feita aqui
do código de Justiniano (vide cap. VI), porém na Novella XIV (vide cap. IX) o
tom do decreto imperial é contra o tráfico de seres humanos, não contra as
prostitutas em si.
Dado o viés,
digamos, “de oposição” contido
7 – Por acaso a
História registraria o assassinato das quinhentas prostitutas?
A História, eu
não sei; mas a História Secreta sem dúvida registraria. Aí que reside
a ironia: a fonte mais virulenta contra Teodora é silente sobre isso, nem fala
de Orígenes. Essa pergunta revela uma atitude preconceituosa, calcada na ideia
de apenas os vencedores registram a História. Às vezes escritos dos perdedores
escapam e chegam até nós. A História Secreta é um exemplo disso (191). Seu autor foi um
indivíduo extremamente ressentido, mas que nada pôde fazer para mudar os rumos
do governo. Só lhe sobrou registrar suas mágoas para a posteridade.
Ademais, a
crença de que ninguém registraria essa suposta chacina esconde uma contradição:
se autores reencarnacionistas falam desse episódio, então alguém o documentou.
Resta saber se este cronista viveu no século VI ou depois do século XIX,
aproveitando o frenesi espiritualista.
8 – Poucos
autores relatam esse episódio de que Teodora teria mandado matar as quinhentas
prostitutas. Um deles é Kersten, teólogo alemão, que tem uma vasta referência
bibliográfica, que nos leva a crer na seriedade de seu trabalho de pesquisa.
Chaves é o outro que, independentemente de Kersten, relata o episódio, embora
não informe sua fonte nem garanta sua veracidade.
Referência
bibliográfica extensa eu também tenho e daí? Se apenas isso basta para fazer
minha pesquisa séria, oba! Excetuando MacGregor – por seu livro possuir um nível
mínimo de pesquisa historiográfica – não pus nenhum outro autor espiritualista
nela. Todos os demais são citados (e refutados) ao longo do texto, mas não
recomendo como fonte de estudos para ninguém, pelo simples motivo que, quando
confrontados com fontes primárias ou autores clássicos, revelam bases factuais
frágeis. O livro de Chaves, por exemplo, está cravejado de erros – muitos frutos
de informações de segunda-mão vindas de fontes não acadêmicas. Já, Kersten é
digno de grande ceticismo, como foi dito na nota nº 59, ainda mais que,
recentemente, “dizem” ter encontrado a sepultura de Jesus e sua família em
Israel, em vez de na Índia... Ademais, Kersten alude ao nome de Procópio em seu
relato e foi por isso que o primeiro cronista bizantino analisado aqui foi ele.
Fica, então, muito estranho atribuir a Kersten uma boa pesquisa e desmerecer uma
das fontes que ele usa.
Enfim, se você
acha que quantidade pode ser sinal de qualidade, boa sorte! Eu, particularmente,
preferiria uma edição condensada de um único autor clássico (i.e. consagrado por
crítica e público) a uma colcha de retalhos feita de obras que só corroboram
umas às outras, sem que seu organizador tenha feito um confronto genuíno entre
argumentos antagônicos. Por exemplo, o fato de que mesmo autores espiritualistas
como MacGregor e Prophet, capazes de certo manejo de fontes primárias, serem
silentes quanto a um episódio que lhes seria tão útil pode ser até um indicativo
de que a pesquisa de Kersten e Chaves não é tão boa assim.
9 – Esse
episódio do assassinato das prostitutas é irrelevante, pois a única coisa que
poderia fornecer é a razão pela qual Teodora teria influenciado o marido para
agir contra as idéias reencarnacionistas.
Conforme as
fontes primárias expostas aqui, há evidência de que a segunda crise origenista
chegou à corte vinda de baixo, levada por monges palestinos. Assim, haveria
importância para o episódio entre Teodora e as prostitutas como indicativo para
avaliar a qualidade da pesquisa de certos autores espiritualistas. Afinal é
muito estranha a adoção de uma teoria conspiratória em detrimento de uma
história bem mais “pé no chão”. Além de quê, a suposta chacina revelou-se tão
popular entre o meio espírita, que se tornou uma verdade por ser repetida à
exaustão. Se é para desfazer um mito, melhorando a historiografia
espiritualista, vale a pena destrinchar o que realmente aconteceu. Mas, por ser
um tanto chato brincar de detetive, aparecem reações como esta aqui:
10 – A questão
se resume em quem nós devemos acreditar, pois o fato de outros autores não
falarem no caso não o torna fictício, inclusive, pode não ser citado nem mesmo
pelos historiadores que poderiam avaliar que tal episódio não merecesse entrar
para a história. Entretanto, como só temos Procópio como fonte, mesmo sem a
termos como inverídica, julgamos prudente, caso, aguardar que nos apareça, pelo
menos, uma outra fonte que relate a chacina. Vimos isso em vários outros
autores, mas uns nem mesmo citavam uma fonte; outros apenas citavam Chaves e
Kersten.
A questão é
que, até agora, nenhum cronista da época fala da chacina! E alguém que teria
tudo para fazer esse episódio “entrar para a história” – Procópio – não o faz,
por mais que você queira ler nas entrelinhas, e muito menos o relaciona com o II
Concílio de Constantinopla. Mas não fique esperando que apareça uma fonte da
chacina no seu colo, pois, como o ônus da prova cai sobre quem afirma, é teu o
dever de descobrir onde essa suposta fonte está. Não é dever daqueles que chama
de “detratores” provar que Teodora tratava as prostitutas a pão de ló e, mesmo
que o fosse, provar uma negativa é extremamente difícil. Duas estratégias podem
ser feitas: a primeira seria fazer uma busca exaustiva por todos os cronistas do
período (Procópio, João Lídio, João de Éfeso, Evágrio Escolástico, Malala,
Facundo de Hermiano, Liberato de Cartago, Cirilo de Citópolis, etc.col Evag ser feitas:
(1) uma busca exaustiva por todos os cronistas do perser um tanto chato brincar
de detetive, aparecem re). Foi o que tentei e ... nada! Chegou
a hora de se trabalhar um pouco e trazer alguma novidade para nós, em vez de
somente trazer meros recortes de livros espiritualistas. A outra linha que
vislumbro é rastrear, a partir dos autores que tem, até encontrar a fonte do boato episódio. O problema é que se acaba por perder o
fio da meada, pois muitos dos deles nem sequer fonte dão.
Então, será que
não é caso de reavaliar seu próprio material de pesquisa? Talvez não se queira
“largar esse osso” de vez porque isso implicaria em admitir certos vícios na
metodologia de vários autores prezados por espiritualistas.
11 –
Quanto à participação de Justiniano no Concílio, temos essa
informação dos vários autores que citamos, cuja convocação se deu por sua
iniciativa, não de uma autoridade religiosa. Podemos ver isso nos autores:
Chaves, Russel, Prophet, Kersten, Andrade, Reale e Antiseri, Santesson, Mello,
Atkinson, Prieur, Champlin e Bentes, Tendam, Miranda, Prabhupada, Tilak,
Bizemont, e, por fim, Pompas; ao todo, dezessete autores. Como uns não citam os
outros, temos que convir que, sendo as fontes diferentes, não há como pensar em
conluio de todos, e, muito menos, como sendo um boato.
Um momento! Quem disse que boatos precisam de conluio? A
principal característica de um boato é sua espontaneidade, a forma como agentes
individuais cuidam para espalhá-lo de forma veloz e independente. O resultado
final é que boatos, a maioria das vezes, não têm pai nem mãe, pois sua origem se
perde na noite dos tempos. Não é incomum, também, que a informação se corrompa
ao passar de uma boca à outra (192).
Só para alertar, na bibliografia de Chaves podem ser
encontrados os nomes de Auken, Prabhupada, Prophet, Prieur, H. C. Miranda e
Atkinson, mostrando que sua obra (Reencarnação na Bíblia e na Ciência) não é tão
independente assim. Isso não significa que tenha “agido em conluio” com eles: é
provável que simplesmente tenha apanhado os livros que tinha
disponíveis na prateleira, passando equívocos adiante até por boa-fé e excesso
de confiança. Hans Tendam (Panorama da Reencarnação) também possui Atkinson em sua
bibliografia e, dessa forma, esses três autores se interligam.
Se formos rastrear os livros usados, um novo tipo de
dificuldade pode surgir: Atkinson (A Reencarnação e a Lei do Karma), por exemplo, não
possui bibliografia e as referências que dá ao longo do texto deixam muito a
desejar. Enfim, puxa-se o fio e nada há na outra ponta. Ainda que todos os
autores fossem aparentemente independentes (i.e., nenhum mencionasse o outro) e
tivessem boas práticas para referências, nada impediria que, ao rastrear suas
fontes e as fontes das fontes, se encontrasse um autor comum entre eles; esse,
sim, a origem do boato, tal como as folhas de uma árvore derivam de ramificações
de um mesmo tronco (193). Vasculhando até onde as referências dadas permitem,
tais relações indiretas afloram à superfície: J.V. Auken (Reencarnação) tem
um apêndice dedicado a Edgar Cayce, o que o deixa em contato com E. W. Russel
(Reencarnação - O Mistério do
Homem), visto o fato de ele usar Noel Langley, que escreveu uma obra
dedicada a Cayce. Manuela Pompas (Reencarnação) usou pelo menos quatro autores em comum
com Bizemont (Annie Bésant, Alexandra David-Neel, Denise Dejardins e Joan
Grant), sendo que um deles (Bésant) também aparece em Chaves e Tendam.
Portanto, não é preciso conluio para a boataria se
espalhar. Mesmo assim, deve-se admitir que até relógios enguiçados marcam a hora
certa ao menos duas vezes por dia: de fato, Justiniano participou e interveio no
II Concílio de Constantinopla, da mesma forma que seus antecessores intervieram
12 - Quanto ao motivo da convocação do Concílio encontramos
como sendo para anatematizar as idéias de Orígenes, especialmente a
preexistência. Todos esses autores que acabamos de citar, de um jeito ou de
outro, acabam falando disso.
E muitos deles
não informam a respeito da primeira crise origenista dos séculos IV/V, da luta
entre ortodoxos e origenistas na Palestina, do cisma entre origenistas moderados
e radicais, dos anátemas contra as opiniões mais heterodoxas do origenismo de
então e muito menos falam do jogo de intrigas que levou à questão dos Três
Capítulos – a principal causa do Concílio e oportunidade aproveitada pelos
ortodoxos palestinos.
Em suma, é uma omissão da complexidade do jogo de poder bizantino muito
conveniente para a criação de uma teoria conspiratória.
13 - Apesar de muitos dizerem que Orígenes não acreditava
na reencarnação, o que parece não ser verdade, haja vista ele ser platônico de
mão cheia, temos algumas informações que poderão ajudar aos nossos leitores a
perceberem para qual lado poderá pender o fiel da balança:
O vigor com que o imperador Justiniano proscreveu e
destruiu livros e documentos heréticos deixou poucos registros que
permitissem às gerações subsequentes saber o que outros cristãos haviam
ensinado e acreditado a respeito da doutrina da reencarnação. Só no
Oriente Próximo, Justiniano mandou matar mais de um milhão de hereges.
(Paul Brunton, Ideias em Perspectiva, Pensamento, 1990, p. 118). |
O que explica o fato de não se encontrar muita coisa mais
sobre a reencarnação, devido a essa “queima de arquivo”.
Bem, Agostinho
de Hipona também era platônico e adepto da danação eterna, e daí? Se Orígenes
assinasse em baixo de tudo que Platão escreveu, como iria refutar o pagão Celso?
Na verdade, a principal característica dos filósofos cristãos platônicos era
equiparar o eterno, único, espiritual e verdadeiro “Mundo das Idéias” platônico
com Deus, e não uma simples adoção da reencarnação. Clemente, antecessor de
Orígenes na escola catequética de Alexandria, já dizia:
Mas mesmo
aqueles mitos de Platão ( Miscelâneas (Stromateis), V, 9 |
Por outro lado,
Platão e os neoplatônicos encaravam o mundo material como um reflexo imperfeito
e mutável do Mundo das Ideias e que, na verdade, seria uma criação de um
demiurgo inferior, uma prisão da qual a alma deveria se libertar para retornar
ao Mundo das Ideias. Assim, para não cair numa espécie de dualismo similar aos
gnósticos, os filósofos cristãos também tomaram de empréstimo do estoicismo seu
conceito de Pneuma (Sopro), uma espécie de Logos (Verbo,
Palavra) divino. Tal princípio, segundo os estoicos, suscita, penetra e anima
todos os corpos espirituais e materiais e, ao permearem o Cosmos, garantiria sua
unidade como sendo um único grande corpo movido pelo sopro divino. O imutável se
manifestaria pela existência de diversos ciclos idênticos na história do Cosmos,
movidos por tal princípio.
Assim, nunca
era possível a um filósofo cristão encaixar integralmente uma doutrina moldada
para o mundo pagão sem fazer alguma seleção, mixagem ou adaptação à tradição que
os fiéis estavam acostumados e, se preciso fosse, ser realmente original nas
questões de interesse doutrinário onde a filosofia grega nada tinha a dizer.
Para vencer esse desafio, Orígenes se mostrou altamente eclético:
Ele
[Orígenes] concorda com a teleologia da física estoica, mas ataca seu
materialismo, o panteísmo e determinismo de sua cosmo-biologia cíclica.
Ele aceita plenamente sua concepção de lei natural e “noções comuns” de
Deus e do bom e do mal. A austera ética estoica, enfatizando a escolha
racional e livre de paixões, também é muito atrativa. Mas, em última
análise, a atuação humana deve ser baseada no amor de Deus e graça divina.
Orígenes também é atraído para argumentos usados na teodiceia estoica. Sua
postura em relação a aristotelismo é bem distante. Conhece bem a lógica
aristotélica, mas admite os perigos da minuciosa dialética. As limitações
de atuação da providência e das doutrinas da eternidade do mundo e do
quinto elemento são todas francamente rejeitadas. Como
outros cristãos, Orígenes considera Platão como o maior dos filósofos
gregos, embora o condene por não abandonar completamente o
politeísmo.
Orígenes aceita muito da visão de mundo platônica, mais
notavelmente a divisão da realidade em uma inteligência, ou domínio
espiritual, e um domínio físico. A concepção de Orígenes sobre Deus como
uma mente divina imutável e impassível, não sujeita ao tempo ou ao espaço,
transcendendo plenamente o mundo da realidade física que criou, é
fortemente influenciada pelas interpretações platônicas contemporâneas dos
diálogos de Platão. Seu pensamento, contudo, é mais teocêntrico e
influenciado pela forma como Filo e Clemente antes dele uniram o
platonismo a concepções bíblicas. Por essa razão, lê-se pouco sobre as
“Ideias” platônicas em Orígenes, mas muito mais sobre o Logos e o Santo
Espírito. Há também doutrinas platônicas que Orígenes rejeita
firmemente, tais como a opinião de que o foi feito a partir de matéria
pré-existente e nunca chegará a um fim. Para Orígenes, as almas não são
incriadas e eternas, mas feitas por Deus do começo. Discorda fortemente da
doutrina de Platão da transmigração das almas. Entretanto, sua própria
doutrina da queda das almas por livre escolha e possível
retorno final a Deus (v. Apokatastasis) mostra similaridades estruturais à
metafísica de conversão e retorno como foi desenvolvida no neoplatonismo
através da filosofia de Plotino (194). The Westminster Handbook to Origen,
verbete
Philosophy. |
De fato, a
transmigração humano-animal não era compatível com o sistema de De Principiis,
pois, em um corpo animal, razão e livre-arbítrio estariam inevitavelmente
limitados, justamente os dois pilares
Passemos,
então, à verificação da informação apresentada pela citação de Paul Brunton.
Antes de tudo, convém mencionar que esse autor não é especialista em história
bizantina, mas um jornalista inglês que, após uma estadia na Índia, se tornou
uma espécie de “guru ocidental”. Já vi alegarem que Paul Brunton teria sido
eleito “o homem mais sábio da Inglaterra”, embora nunca dissessem quem contou os
votos dessa eleição (196). A obra “Ideias em Perspectiva” não é nem sequer algo
que se possa chamar de livro, mas um apanhado póstumo de anotações feito por
admiradores e discípulos em seus cadernos. Sendo assim, não há nenhuma
bibliografia ou referência nela. Entretanto, foi viável encontrar a possível
origem do “fato” relatado:
Os drusos
(197) são os únicos representantes modernos dos assassinos exterminados.
Como eles, são ismaelitas, seu declarado fundador é Hakim, um califa
fatímida do Cairo (198), que se considerava a nova encarnação da Mente de
Deus. Sua noção de que o local atual de seu sempre ausente Grão Mestre é a
Europa
corresponde com bastante curiosidade à teoria de Von Hammer sobre o
relacionamento que existiu entre os Templários e o real progenitor dos
drusos. Esses mesmos drusos talvez também representem os “politeístas e
Samaritanos” que floresceram tão vigorosamente no Líbano até tão
tardiamente quanto os tempos de Justiniano, a cuja perseguição Procópio
atribui o extermínio de um milhão de habitantes somente daquele distrito. De
seu atual credo, preservado com segredo inviolado, jamais algo autêntico
veio à luz; a crendice popular entre seus vizinhos faz deles
adoradores de um ídolo em forma de bezerro e, para celebrar suas reuniões
noturnas, [fazem] orgias como aquelas atribuídas aos ofitas (199) em Roma,
aos templários (200) nos tempos medievais e aos maçons (continentais)
(201) nos modernos. King, Charles William, The Gnostics and their Remains, parte
V, p. 413 [grifos do autor] |
Ou seja, por
vias tortas, retorna-se ao famigerado Procópio! Agora, pelas mãos de C. W. King,
um joalheiro da Inglaterra vitoriana que procurou
After some figures of rhetoric, the sands of the sea,
&c. Procopius (Anecdot. c. 18) attempts a more definite account: that
µ????da? µ????d?? µ???a? had been exterminated under the reign of the
Imperial demon. The expression is obscure in grammar and arithmetic, and a
literal interpretation would produce several millions of millions.
Alemannus (p. 80) and Cousin (tom. iii. p. 178) translate this passage,
“two hundred millions”; but I am ignorant of their motives. If we drop the
µ????da? the remaining µ????d?? µ?????, a myriad of myriads, would furnish one hundred
millions, a number not wholly inadmissible. |
Tradutores mais
recentes de Procópio dão esclarecimentos quanto ao simbolismo desse número. H.B.
Dewing, na edição Loeb, observa que “o cubo de dez mil não é a linguagem de um cômputo exato e
Procópio está tentando fazer parecer uma forte ocorrência contra
Justiniano”. Peter Sarris, na edição da
Penguin Classics,
traduz como “dez mil
vezes dez mil vezes dez mil” (i.e, um trilhão) e faz um paralelo com a
Bíblia:
A
estimativa de Procópio não pretende, obviamente, ser tomada mais
literalmente que o dez mil vezes dez mil e milhares de milhares de
S. João [Ap. 5:11], ou os milhares de dez mil da descendência de Rebeca [Gn
24:60] na Bíblia. |
Como algumas
(202) edições inglesas trazem “million million” (um milhão de milhão) e, nesse mesmo
capítulo, Procópio faz uma rápida alusão aos “samaritanos e heréticos” (203),
poder-se-ia pensar que uma leitura apressada de King associou esses dois grupos
a “um milhão”. Entretanto, a origem mais provável do relato de King deve ter
vindo do capítulo XI de História Secreta, onde uma mais detalhada descrição é
feita do aconteceu numa região próxima ao atual Líbano:
E quando
uma lei similar [obrigando conversão à ortodoxia] foi imediatamente
emitida, afetando também os samaritanos, uma confusão indiscriminada
varreu a Palestina. Então, todos os residentes de minha própria Cesareia e
de todas as outras cidades, considerando-a como uma tolice para submeter a
qualquer sofrimento em defesa de um dogma sem sentido, adotaram a
denominação de cristãos no lugar da que então seguiam e, por meio desse
disfarce conseguiram se safar do perigo oriundo da lei. E todos entre eles
que eram pessoas de alguma prudência e racionalidade não demonstraram
nenhuma relutância em aderir lealmente a essa fé, mas a maioria, sentindo
ressentimento que, não por sua própria escolha, mas sob coação da lei,
tiveram de abandonar a crença de seus pais, instantaneamente foram
favoráveis aos maniqueus e politeístas, como eram chamados. E todos os
agricultores, tendo se reunido em grande número, decidiram se rebelar
contra o imperador, lançando como seu imperador um certo bandoleiro de
nome Juliano, filho de Savaro. E travando combate com os soldados,
suportaram por algum tempo, mas finalmente foram derrotados na batalha e
pereceram junto com seu líder. E diz-se que cem mil pereceram nessa luta e
a terra, que era a melhor no mundo, tornou-se, em consequência, destituída
de agricultores. E para os donos de terra que era cristãos, isso deixou
consequências muito sérias. Pois lhes foi incumbida, como um tipo de
coerção, pagar para sempre ao imperador, ainda que não estivesse auferindo
nenhuma renda da terra, a imensa taxa anual, já que não se mostrou nenhuma
piedade na administração dessa atividade. |
Então,
finalmente encontramos um texto de Procópio envolvendo “samaritanos e
politeístas” ao relatar a revolta samaritana de 529. O total de cem mil mortos
(dez miríades, no original) pode ter sido corrompido para um milhão ao passar
para o livro de King (204). Caso se continuasse um encadeamento, Brunton colocou
todos os mortos como reencarnacionistas e, depois, outros espiritualistas
intuíram que deveriam ser origenistas. Óbvio que isso é uma especulação de como a
informação teria se deteriorado. É plausível e o melhor que pôde ser feito com o
material fornecido, pois o simples fato de que nenhum autor de King a Chaves -
que também cita Brunton – ser capaz de dizer de onde a informação saiu torna
impossível a eliminação de qualquer dúvida. Vale lembrar, porém, que dar solidez
ao argumento nesse caso é tarefa daqueles que usam esses autores, não deste
portal.
Resta, então,
analisar a última frase:
“O que explica o fato de não se encontrar muita coisa mais
sobre a reencarnação, devido a essa ‘queima de arquivo’.”
Bem, a
estrutura básica de qualquer teoria conspiratória é esta:
O fato X
deve ser verdadeiro. O fato Y é o (suposto) motivo de sua veracidade não
ser comprovada. Logo X é verdadeiro. |
O problema é
que, a maioria das vezes, Y é extremamente difícil de verificar. Além
de descartar a possibilidade de hipóteses alternativas mais simples – como a
inexistência da reencarnação em seus escritos - a justificativa de “queima de
arquivo” é insuficiente para comprovar a existência da reencarnação nessas obras
perdidas. Faltam várias coisas para que ela atinja um algum grau de solidez:
1.
Efetivamente comprovar a “queima de arquivo” realizada
junto a um extermínio de origenistas (205). Se a única fonte para isso, como
visto acima, deixa muito a desejar, melhor não usá-la nem como hipótese. De
fato, após a condenação de Orígenes era esperado um declínio na circulação de
suas obras, principalmente nas regiões onde o monacato enfrentou a ameaça de
origenistas durante a segunda crise (Síria, Egito e, principalmente, Palestina).
A questão é o quão a destruição dos livros foi sistemática nas demais regiões?
Fócio, já no século IX, ainda podia ler De
Principiis sem apelar para a versão latina, justo ele que seria um dos
patriarcas de Constantinopla. Como já discutido acima, Orígenes pode ter sido
perdido simplesmente por deixarem de copiá-lo. Assim, há de se cogitar se
desleixo e destruições de bibliotecas feitas por guerras podem ter feito o
resto. A maior perda, provavelmente, deve ser sua coletânea de cartas, onde
Orígenes talvez sanasse as dúvidas de outros a respeito de seu pensamento.
2.
Como será visto abaixo, muitas das “sugestões” de
reencarnação saem de obras que chegaram até nós, como Contra Celso e De
Principiis,
em vez citações feitas por adversários de obras hoje perdidas. Então,
qual foi a real eficiência dessa “queima”?
3.
À exceção de um, que nada tem a ver com reencarnação, todos
os anátemas de 543 e 553 se referem a afirmações contidas
4.
É interessante ver o que os adversários de Orígenes
(Epifânio, Teófilo, Jerônimo, Justiniano, etc.) mencionam quando o acusam disso
ou daquilo citam apenas trechos pequenos de seus trabalhos, deixando de fora
todo o raciocínio anterior ou o caráter especulativo da obra.
E justamente
algo similar a essa última fraqueza que levou ao próximo equívoco espírita.
14 - Outro fator que influi muito nas informações é quando
o autor tem mais compromisso com o dogmatismo religioso do que com a verdade.
Muito se tem feito em nome da fé, em detrimento do que realmente ocorreu, onde
as versões se ajustaram aos interesses das igrejas que, muitas das vezes,
estavam mais preocupadas em manterem-se no poder do que salvar uma só “ovelha
perdida”, função pela qual deveria ser sua razão de existir.
Entretanto, sabemos que essa questão de Orígenes,
realmente, é por demais complexa; contudo, as coisas podem não ser como parecem
ou como querem que sejam:
1 -Tudo Sobre a Reencarnação Hans Stefan Santesson |
2 - Contra Celso – Orígenes Tradução Orlando dos Reis - Paulus |
1.1 - “Não está mais de conformidade com a razão que
todas as almas, por algumas razões misteriosas (falo agora de acordo com
as opiniões de Pitágoras, Platão e Empédocles, que Celso freqüentemente
menciona), sejam introduzidas num corpo de acordo com seus méritos e
antigos atos? Não é racional que as almas que usaram seus corpos para
fazer maior bem possível tenham direito a corpos dotados de qualidade
superiores aos corpos dos demais?” (p. 125,-126). |
“Não será mais de acordo com a razão que cada alma,
introduzida num corpo por razões misteriosas – falo aqui nos termos da
doutrina de Pitágoras, Platão e Empédocles, citados por Celso – seja assim
introduzida por seu mérito e seu caráter anteriores? Portanto, é provável
que esta alma, mais útil por sua incorporação à vida humana do que a de
grande número de pessoas, para não parecer preconceituoso dizendo de
todas, tenha tido necessidade de um corpo que, não só se distingue dos
corpos humanos, mas também é superior a todos.” (Livro I, 32, pp;
73-74). |
1.2 - “A alma, cuja natureza é imaterial e invisível,
não existe em local material sem ter um corpo apropriado à natureza do
lugar; conseqüentemente, deixa um corpo que lhe era necessário antes, mas
que não é mais adequado ao seu status modificado e troca-o por outro”. (p.
126). |
“... a alma, que por sua própria natureza é
incorpórea e invisível, precisa, quando se encontra num lugar corporal
qualquer, de um corpo apropriado por sua natureza neste lugar. Ela carrega
este corpo depois de ter abandonado a veste, necessária antes, mas
supérflua para um segundo estado, e a seguir, após tê-lo revestido por
cima com aquela veste que tinha inicialmente, porque precisa de uma veste
melhor para chegar às regiões mais puras, etéreas e celestes.” (Livro VII,
32, p. 567-568). |
2 - Como os teólogos refutam... Mário Cavalcanti de Mello | |
2.1 - “A alma sendo imaterial e invisível não pode
existir em nenhum lugar material, sem revestir corpos apropriados a este
lugar; ela rejeita, num dado momento, um corpo que era necessário até aí,
mas do qual não tem mais necessidade, e ela o troca por um outro. (Cont.
Celso – liv. VII, c. XXXII)” (p. 153). | |
2.2 - “Celso ignora completamente o objetivo de nossos
escritos; a interpretação dada por ele é que os leva ao descrédito e não a
sua verdadeira significação. Se ele houvesse refletido sobre o que é
necessário a uma alma destinada à vida eterna, se ele houvesse pensado na
natureza de sua essência e do seu princípio, não teria tornado ridícula a
entrada do que é imortal em um corpo mortal, entrada que se efetua, não
segundo o ensinamento platônico da metempsicose, mas segundo uma visão
mais elevada deste fato. (Cont. Celso, liv. IV, c. XVIII)”. (p. 151). |
“Celso, portanto, não viu de modo algum a intenção de
nossas Escrituras; por isso ele investe contra a própria interpretação, e
não contra a das Escrituras. Se tivesse compreendido o destino da alma na
vida eterna futura, e o que sua essência e origem implicam, não teria
criticado dessa forma a vida do ser imortal num corpo mortal, explicada
não segundo a teoria platônica da metensomatose, mas numa perspectiva mais
elevada. (Livro IV, 17, p. 291-292). |
2.3 - “Se o nosso destino atual não era determinado
pelas obras de nossas existências passadas, como poderia Deus ser justo
permitindo que o primogênito servisse ao mais jovem e fosse odiado, antes
de haver cometido atos merecendo a servidão e o ódio?.... Só as vidas anteriores podem explicar a luta de Jacó
e Esaú antes de seu nascimento, a eleição de Jeremias durante o tempo em
que estava ainda no seio de sua mãe... e tantos outros fatos que atirarão
o descrédito sobre a justiça divina, se não forem justificados por atos
bons ou maus, cometidos ou praticados em existências passadas. (Cont.
Celso --, I, III)” (p. 153). |
Não encontrado |
Veja a diferença entre os textos da publicação católica com
os dos outros escritores. Parece-nos que a verdade é mesmo diferente para o lado
que se julga vencedor; não é mesmo? Assim, vale essa opinião: “Para poder se
fazer uso das citações dos Padres é preciso primeiro estabelecer o texto
original dos escritores patrísticos, pois estes sofreram um processo de
corrupção e revisão comparável ao dos manuscritos bíblicos”. (BARRERA, 1999, p.
411).
Concordo
plenamente que muitos autores estão mais comprometidos em defender seu próprio
credo do que com a verdade. Eu mesmo citei no capítulo XVIII diversas fontes
patrísticas que foram adulteradas por espiritualistas para sugerir a crença
Também concordo
que a questão de Orígenes é bem complexa, o problema é quando, em vez de encarar
essa dificuldade, ela é usada como uma “cortina de fumaça” para encobrir fatos
que possam contradizer suas teses. Assim é possível ser enganoso falando a
verdade e um caso disso é justamente fazer menção a alterações passadas como se
fossem provas para suspeitas modernas. O procedimento correto seria analisar
cada caso independentemente, como manda a boa prática da crítica textual.
Se é para
reconstituir o texto original de Contra Celso, então temos uma surpresa: foram
justamente eclesiásticos que preservaram os manuscritos que chegaram até nós.
Conforme consta na tradução inglesa de Chadwick [introdução, p. xxix], todos os
textos de Contra
Celso
conhecidos hoje dependem de duas tradições: uma é representada por alguns
extratos preservados pela antologia Philocalia, feita no século IV por Gregório de Nissa e
Basílio, e a outra, com o texto complexo, vem do manuscrito Vatic. Gr. 386 (ou
texto A) e seus
descendentes. Aliás, junto com os manuscritos de Diálogo com
Heráclides, em Tura, foram descobertos manuscritos dos livros I e II que
indicam a existência dessa tradição desde o século VI. Portanto, não importa que
seja espiritualista o tradutor, ele terá de se basear da mesma fonte que
católicos usaram.
Antes de partir
para análise do texto grego, será feita uma confrontação entre o que dizem esses
pequenos extratos citados por espiritualistas e algumas traduções estrangeiras
consagradas, cujo histórico é sumarizado por Chadwick [introdução, p.xxx –
xxxii]
O texto
de Contra
Celsum foi pela primeira vez impresso por David Hoeschel e publicado
em Augsburgo em 1605. Esse texto foi reimpresso por William Spencer,
Membro do Trinity College, Cambridge, e
publicado pela University Press em 1658 (2ª ed. 1677). Uma edição melhor
foi produzida pelo beneditino C. Delarue (Paris, 1733), reimpressa nos
volumes XVIII-XX da acessível edição de Lommtzsch (Berlim, 1845-6) e
também reimpressa na Patrologia Graeca de Migne (XI, 1857). O texto
padrão atual é o elaborado pelo falecido Dr. Paul Koetschau (207) para o
corpus da
Academia de Berlim. Essa edição foi baseada na investigação crítica da
tradição manuscrita feita por Armitage Robinson, Neumann e o próprio
Koetschau. Sua base é o texto A, do qual Koetschau colacionou os livros I
– III, Neumann os livros IV – VIII, Fui capaz de checar as colações por
meio de fotocópias do manuscrito. (...) A
primeira tradução inglesa foi produzida no século dezoito e inclui apenas
aos primeiros dois livros. O nível de acurácia não é elevado. A primeira
tradução completa para o inglês foi a feita por F. Crombie e W.H. Cairns
para a Ante-Nicene Christian Library (vols. X e XXIII,
Edimburgo, 1869-72). Essa é uma tradução útil, baseada no texto de
Delarue; provê pouco ou nada por meio de notas explanatórias. O texto
usado como a base da presente tradução [a de Chadwick] é o de Koetschau.
Todas as variantes de seu texto são comentadas |
Bem, sabendo da
validade das versões inglesas e do texto grego de Migne, comecemos pelo livro I,
32:
Tudo Sobre a Reencarnação, de Hans Stefan Santesson
(cap. V, p.125-6) |
Reencarnação, de Manuela Pompas (cap. II, p. 66) |
Against Celsus,
tradução inglesa de Ante-Nicene Fathers (Crombie & Cairns) |
Contra
Celsum, tradução inglesa de Henry Chadwick, p.32 |
Contra Celso – Orígenes, tradução de Orlando dos Reis
– Paulus (p.73-4) |
Não está mais de conformidade com a razão que todas as almas, por algumas razões misteriosas
(falo agora de acordo com as opiniões de
Pitágoras, Platão e Empédocles, que Celso freqüentemente menciona),
sejam introduzidas num corpo de acordo com seus méritos e antigos atos?
Não é racional que as almas que usaram seus
corpos para fazer maior bem possível tenham direito a corpos dotados de
qualidade superiores aos corpos dos demais? |
Não será
talvez mais de acordo com a razão que cada
alma, por certas misteriosas razões, seja introduzida em um corpo e
que isto ocorra segundo seus méritos e suas ações anteriores? |
Or is it not more in conformity with reason, that every soul, for certain mysterious reasons (I speak now according to the opinion of Pythagoras,
and Plato, and Empedocles, whom Celsus frequently names), is
introduced into a body, and introduced according to its deserts and former
actions? It is probable, therefore, that
this soul also, which conferred more benefit
by its residence in the flesh than that of many men (to avoid prejudice, I do not say “all”), stood in
need of a body not only superior to others, but invested with all
excellent qualities. |
Or is it more reasonable (and I say this now following Pythagoras, Plato, and
Empedocles, whom Celsus often mentions) that there are certain secret
principles by which each soul that enters a
body does so in accordance with its merits and former character? It is therefore probable that this soul, which lived a more useful life on
earth than many men (to avoid appearing to beg the
question by saying ‘all’ men), needed a body which was not only
distinguished among human bodies, but also superior to all others. |
Não será mais de acordo com a razão que cada alma, introduzida num corpo por razões
misteriosas – falo aqui nos termos da doutrina de
Pitágoras, Platão e Empédocles, citados por Celso – seja assim
introduzida por seu mérito e seu caráter anteriores? Portanto, é provável que esta alma, mais útil por sua incorporação à vida
humana do que a de grande número de pessoas, para
não parecer preconceituoso dizendo de todas, tenha tido necessidade de
um corpo que, não só se distingue dos corpos humanos, mas também é
superior a todos. |
Óbvio que não
se deve esperar que todas as traduções coincidam letra por letra, afinal cada
tradutor tem seu próprio estilo. Não há por que implicar se um usa “seis” e
outro, “meia-dúzia”. O que pode, sim, ser crítico são discrepância capazes de
mudar todo o sentido original. Para assinalar essa problemática, foram
sublinhadas as principais diferenças entres os textos e parece haver algo de
podre nas traduções espiritualistas. Além de serem mais curtas que as traduções
estrangeiras (e a nacional) elas também diferem entre si! Ainda que o fato de
Pompas terminar a citação antes não chegue a comprometer, ela omite um aposto
onde Orígenes deixa claro que não está expondo ideias suas, mas de Pitágoras,
Platão e Empédocles. Por outro lado, ela usa na primeira frase uma expressão no
singular (“cada alma”), como nas demais traduções, ao passo que Santesson a
passa para o plural (“todas as almas”). Santesson mantém o primeiro aposto, mas
omite outro aposto na última frase, passa para o plural outra expressão (“as
almas” x “esta alma”) e torna a frase interrogativa. E o que, afinal, traz o
texto grego de Contra Celso?
Sem descer a
pormenores linguístico, sabendo um pouco da transliteração das letras do
alfabeto grego e seguindo atrás de palavras com inicial maiúscula para achar
nomes próprios, até um leigo pode constatar a presença do aposto de Manuela
Pompas omite. As ocasiões onde a palavra “alma” (????) aparece são
em expressões no singular (???st?? ????? – “cada alma”
- e ta?t?? t?? ????? – “esta alma”) (208).
O início da segunda frase (????? ??? – “Provável,
portanto”) indica que ela é uma afirmação, e não um pergunta. Logo, são as
versões inglesas e a dos católicos nacionais que mantêm fidelidade ao texto
grego.
Extrato do final do capítulo XXXII do primeiro livro de Contra Celso,
disponível no portal Documenta Catholica Omnia. Também encontrado
Talvez algum
espiritualista alegue que seus autores trabalharam em cima um texto grego
diferente recém-descoberto. É um argumento válido, contanto que se esclareça uma
coisa: qual foi a fonte que eles usaram? Santesson e Pompas não dão pista alguma a respeito
disso. O primeiro nem sequer bibliografia tem, Pompas não incluiu nenhum livro
de Orígenes na sua, indicando que sua citação foi indireta. Dorothée Bizemont
(cap. I, p. 29) faz citação idêntica a de Santesson e inclui De Principiis e Contra
Celso em sua bibliografia. O problema é que ela não diz de qual edição eles
saíram. É duvidoso, também, que esses três tenham lido realmente Contra Celso, pois
nenhum dá referência explícita a qual parte do livro a citação saiu, tendo ela
sido encontrada por comparação. Assim fica difícil considerá-los fontes
confiáveis e o extrato que trazem ganha um cheiro forte de hoax.
O capítulo XXXII do primeiro livro é relativamente curto.
Vale a pena ler todo o raciocínio de Orígenes para afastar qualquer dúvida:
Voltemos
às palavras atribuídas ao judeu: a mãe de Jesus foi expulsa pelo carpinteiro que a
tinha pedido em casamento, por ser culpada de adultério e ter engravidado
de um soldado chamado Pantera, e vejamos se os autores desta fábula de
adultério da Virgem com Pantera e repudiada pelo carpinteiro não a
forjaram cegamente para poderem negar a conceição milagrosa pelo Espírito
Santo. Efetivamente, por causa de seu caráter inteiramente miraculoso,
eles poderiam ter falsificado a história de outra maneira, mesmo sem
admitir involuntariamente, por assim, dizer, que Jesus não tinha nascido
de matrimônio comum. Era muito natural que aqueles que não admitem o
nascimento milagroso de Jesus forjassem alguma mentira. Mas fazer isso sem
nenhuma base e mantendo que a Virgem não tinha concebido Jesus de José
fazia escancarar a mentira a toda pessoa capaz de discernir e refutar
ficções. Seria uma coisa razoável, com efeito: o homem que tanto fez pela
salvação do gênero humano para que todos, gregos e bárbaros, enquanto
dependesse dele, na espera do juízo de Deus, se abstivessem do vício e
fizessem tudo para agradar ao Criador do universo, este homem não tivesse
nascimento miraculoso, mas o mais ilegítimo e vergonhoso de todos os
nascimentos? Pergunto aos gregos e mais particularmente a Celso, o qual,
compartilhando ou não suas ideias, cita Platão: aquele que faz as almas
descerem aos corpos dos seres humanos acaso levará ao nascimento mais
vergonhoso do que qualquer outro, sem o mesmo o introduzir na vida humana
por um nascimento legítimo, o ser que arrostaria tantos perigos,
instruiria tantos discípulos, afastaria para longe a onda de vício da
massa humana? Não será mais de acordo com a razão que cada alma,
introduzida num corpo por razões misteriosas – falo aqui nos termos da
doutrina de Pitágoras, Platão e Empédocles, citados por Celso – seja assim
introduzida por seu mérito e seu caráter anteriores? Portanto, é provável
que esta alma, mais útil por sua incorporação à vida humana do que a de
grande número de pessoas, para não parecer preconceituoso dizendo de
todas, tenha tido necessidade de um corpo que, não só se distingue dos
corpos humanos, mas também é superior a todos. Orígenes,
Contra
Celso, I, XXXII, tradução de Orlando dos Reis |
Ou seja,
Orígenes pretendia refutar o ceticismo de Celso em relação ao nascimento
miraculoso de Jesus, já estabelecido na proto-ortodoxia cristã. Para isso, ele
se valeu da estratégia de usar paganismo contra paganismo: se, conforme próprias
teses dos filósofos gregos, cada alma receberia um corpo de acordo com seu
mérito, então um ser excepcional como Jesus também deveria ter sido dotado de um
corpo especial. Assim, pela própria lógica pagã, a crença numa concepção
virginal não seria absurda. Antes que alguém reclame que isso é inviável pela
ciência, etc. e tal, devo alertar que eu – como bom agnóstico – também não
acredito nessa história, mas reconheço, diante dessa evidência, que Orígenes não
só cria nisso como também saiu em defesa da concepção virginal. Era o que
Orígenes professava, cabe a qualquer pesquisador respeitar esse fato, sob pena
de defender não a verdade, mas algum viés moderno. Especialmente quando escolhem
um fragmento a dedo e o mutilam.
Passemos,
agora, para o livro VII, cap. XXXII
Tudo Sobre a Reencarnação, de Hans Stefan Santesson
(cap. V, p.126) |
Against Celsus,
tradução inglesa de Ante-Nicene Fathers (Crombie &
Cairns) |
Contra
Celsum, tradução inglesa de Henry Chadwick, p. 420
|
Contra Celso – Orígenes, tradução de Orlando dos Reis
– Paulus (p. 567-8). |
A alma, cuja natureza é imaterial e invisível, não
existe em local material sem ter um corpo apropriado à natureza do lugar;
conseqüentemente, deixa um corpo que lhe era necessário antes, mas que não
é mais adequado ao seu status modificado e troca-o por outro. |
Our teaching on the subject of the resurrection is
not, as Celsus imagines, derived from anything that we have heard on the
doctrine of metempsychosis; but we know that the soul, which is immaterial and invisible in its
nature, exists in no material place, without having a body suited to the
nature of that place. Accordingly, it at one time puts off one body
which was necessary before, but which is no longer adequate in its changed
state, and it exchanges it for a second; and at
another time it assumes another in addition to the former, which is needed
as a better covering, suited to the purer ethereal regions of
heaven. |
We do not talk about the resurrection, as Celsus
imagines, because we have misunderstood the doctrine of reincarnation, but
because we know that when the soul, which in its own nature is
incorporeal and indivisible, is in any material place, it requires a body
suited to the nature of that environment (209). In the first place, it
bears this body after it has put off the former body which was necessary
at first but which is now superfluous in its second stated. In the second place, it puts a body on top of that
which it possessed formerly, because it needs a better garment for the
purer, ethereal, and heavenly regions. |
... não é, como acredita Celso, por ter
compreendido mal a doutrina da metensomatose que nós falamos de
ressurreição; mas é porque sabemos que a alma, que por sua própria natureza é incorpórea e
invisível, precisa, quando se encontra num lugar corporal qualquer, de um
corpo apropriado por sua natureza neste lugar. Ela carrega este corpo
depois de ter abandonado a veste, necessária antes, mas supérflua para um
segundo estado, e a seguir, após tê-lo revestido
por cima com aquela veste que tinha inicialmente, porque precisa de uma
veste melhor para chegar às regiões mais puras, etéreas e
celestes. |
Compare bem o
trecho da coluna de Ante-Nice Fathers que NÃO está sublinhado com aquele
fornecido por Santesson. São quase uma tradução um do outro. O que Santesson não
fez, nem alguns apologistas espíritas por aí (210) fizeram, foi mostrar o que
vinha antes e depois. Para ser mais preciso, a completa explicação desse trecho
se encontra logo em seguida:
Ao nascer
para o mundo, ela abandonou a placenta que era útil à sua formação no seio
de sua mãe enquanto nela se encontrava; revestiu por baixo o que era
necessário a um ser que viveria na terra. Além
disso, como existe uma morada terrena da tenda, que é necessária de certa
maneira à tenda, as Escrituras declaram que a morada terrena da tenda será
destruída, mas que a tenda revestirá “uma morada não
feita por mão humana, eterna no céu” (cf. II Cor 5). E os homens de
Deus dizem: “Este ser corruptível revestirá a
incorruptibilidade” (I Cor 15:53), que é diferente do que é
corruptível, “este ser mortal revestirá a imortalidade”, que é
diferente do que é imortal. Realmente, a mesma relação que tem a sabedoria
com o que é sábio, a justiça com o que é justo, a paz com o que é
pacífico, existe igualmente entre a incorruptibilidade e o que é
incorruptível, entre a imortalidade e o que é imortal. Repara, pois na
exortação que nos faz a Escritura ao dizer que revestiremos a
incorruptibilidade e a imortalidade; como vestes para aquele que delas se
revestiu e que por elas é envolvido, elas não permitem que quem por elas é
envolvido seja sujeito à corrupção ou à morte. Eis o que tive a ousadia de
dizer porque não compreendeu o que entendemos por ressurreição, e
aproveitou a oportunidade para ridicularizar uma doutrina que não
conhece. Orígenes,
Contra
Celso, VII, XXXII, tradução de Orlando dos Reis |
Parodiando essa
última frase, outros entenderam o Orígenes queria dizer, mas tiveram a ousadia
de pinçar um fragmento específico de seu discurso para obter um sentido
completamente oposto ao da explanação completa. Orígenes menciona apenas duas
transições: uma relacionada ao nascimento físico e uma segunda que
corresponderia à ressurreição em corpo espiritual pregada por Paulo, a quem
cita. Nada a ver com transições em sucessivas vidas terrenas.
Passemos,
agora, para o livro IV, cap. XVII
2 - Como os teólogos refutam..., de Mário Cavalcanti
de Mello (p. 125) |
Against Celsus,
tradução inglesa de Ante-Nicene Fathers (Crombie &
Cairns) |
Contra
Celsum, tradução inglesa de Henry Chadwick, p. 195.
|
Contra Celso – Orígenes, tradução de Orlando dos Reis
– Paulus (p. 291-2). |
Celso ignora completamente o objetivo de nossos
escritos; a interpretação dada por ele é que os leva ao descrédito e não a
sua verdadeira significação. Se ele houvesse refletido sobre o que é
necessário a uma alma destinada à vida eterna, se ele houvesse pensado na
natureza de sua essência e do seu princípio, não teria tornado ridícula a
entrada do que é imortal em um corpo mortal, entrada que se efetua, não
segundo o ensinamento platônico da metempsicose, mas segundo uma visão mais elevada
deste fato. (211) |
Celsus, then, is altogether ignorant of the purpose
of our writings, and it is therefore upon his own acceptation of them that
he casts discredit, and not upon their real meaning; whereas, if he had
reflected on what is appropriate to a soul which is to enjoy an
everlasting life, and on the opinion which we are to form of its essence
and principles, he would not so have ridiculed the entrance of the
immortal into a mortal body, which took place not according to the metempsychosis of Plato, but agreeably to another
and higher view of things. |
Celsus does not understand de meaning of our
scriptures at all. On this account his criticism touches his own
interpretation and not that of the Bible. If he had understood what is
appropriate for a soul which will have everlasting life, and what is the
right view of its essence and origin, he would not have ridiculed in this
way the idea of an immortal person entering a mortal body; (our view here
does not accept the Platonic doctrine of the transmigration of souls, but a different and more
sublime view). |
Celso, portanto, não viu de modo algum a intenção de
nossas Escrituras; por isso ele investe contra a própria interpretação, e
não contra a das Escrituras. Se tivesse compreendido o destino da alma na
vida eterna futura, e o que sua essência e origem implicam, não teria
criticado dessa forma a vida do ser imortal num corpo mortal, explicada
não segundo a teoria platônica da metensomatose, mas numa perspectiva mais elevada.
|
Não sei qual é
o problema aqui. Todas as traduções dizem a mesma coisa, cada uma a sua maneira.
O texto oferecido por Mário Cavalcanti é praticamente uma tradução da edição de
Ante-Nicene
Fathers. Chadwick e Orlando dos Reis fizeram um texto mais enxuto, e mesmo
assim continuam passando a mesma informação. O que talvez chame a atenção de
alguns seja a questão de um grupo de palavras em especial: metempsicose / transmigração das almas / metensomatose.
Bem, seriam elas sinônimos ou não?
A palavra
utilizada por Orígenes é metensomatose (µete?s?µ?t?s??), o que deixa
a tradução de Orlando dos Reis a mais literal nesse ponto. Metensomatose
significa “troca de corpos” e se nessa troca estiverem incluídos corpos de
animais, então haverá intercambialidade com os significados de “metempsicose” e
“transmigração”. De fato, o próprio Orígenes assim pensava
Desta
forma, quando os egípcios, para se gabarem de sua doutrina sobre os
animais, alegam razões teológicas, transformaram-se Orígenes,
Contra
Celso, I, XX, tradução de Orlando dos Reis |
Portanto, conforme a própria
opinião de Orígenes, seria possível equiparar “metensomatose”, “metempsicose” e
“transmigração”, sendo que as outras traduções parafrasearam um pouco ao
utilizar palavras mais correntes.
Por fim, vamos
ao livro I, cap. III
2 - Como os teólogos refutam..., de Mário Cavalcanti
de Mello (p. 153) |
Against Celsus,
tradução inglesa de Ante-Nicene Fathers (Crombie &
Cairns) |
Contra
Celsum, tradução inglesa de Henry Chadwick, p. 8.
|
Contra Celso – Orígenes, tradução de Orlando dos Reis
– Paulus (p. 43). |
Se o nosso destino atual não era determinado pelas
obras de nossas existências passadas, como poderia Deus ser justo
permitindo que o primogênito servisse ao mais jovem e fosse odiado, antes
de haver cometido atos merecendo a servidão e o ódio?.... Só as vidas anteriores podem explicar a luta de Jacó
e Esaú antes de seu nascimento, a eleição de Jeremias durante o tempo em
que estava ainda no seio de sua mãe... e tantos outros fatos que atirarão
o descrédito sobre a justiça divina, se não forem justificados por atos
bons ou maus, cometidos ou praticados em existências passadas. |
After this, Celsus proceeding to speak of the
Christians teaching and practising their favourite doctrines in secret,
and saying that they do this to some purpose, seeing they escape the
penalty of death which is imminent, he compares their dangers with those
which were encountered by such men as Socrates for the sake of philosophy;
and here he might have mentioned Pythagoras as well, and other
philosophers. But our answer to this is, that in the case of
Socrates the Athenians immediately afterwards repented; and no feeling of
bitterness remained in their minds regarding him, as also happened in the
history of Pythagoras. The followers of the latter, indeed, for a
considerable time established their schools in that part of Italy called
Magna Græcia; but in the case of the Christians, the Roman Senate, and the
princes of the time, and the soldiery, and the people, and the relatives
of those who had become converts to the faith, made war upon their
doctrine, and would have prevented (its progress), overcoming it by a
confederacy of so powerful a nature, had it not, by the help of God,
escaped the danger, and risen above it, so as (finally) to defeat the
whole world in its conspiracy against it. |
After this he says that Christians
performe their rites and teach their doctrine in secret, and they do this
with good reason to scape the death penalty that hangs over them. He
compares the danger to the risks
encountered by the sake of philosophy as by Socrates. He could also
have added ‘as by Pythagoras and other philosophers’. I reply to this that
in Socrates’ case the Athenians at once regretted what they had done, and
cherished
no grievance against him or against Pythagoras; at rate, the
Pythagoreans have a long time established their schools in the part of
Italy which has been called Magna Graecia. But in the case of Christians
the Roman Senate, the contemporary emperors, the army, the people, and the
relatives fought against the gospel and would have hindered it; and it
would have been defeated by the combined force of so many unless he had
overcome and risen above opposition by divine power, so that it has
conquered the whole world as conspiring against it. |
Em seguida diz ele: Às escondidas os
cristãos praticam e ensinam o que lhes convém. Têm uma boa razão de assim
agir: a pena de morte que paira sobre suas cabeças. E compara esse
risco aos
riscos que um Sócrates corre pela filosofia. E poderia ter
acrescentado: um Pitágoras e outros filósofos. Ao que podemos responder:
no caso de Sócrates, os atenienses logo se arrependeram e não guardaram
ressentimento contra ele, e tampouco (outros) com relação a Pitágoras:
pelo menos os discípulos de Pitágoras fundaram durante muito tempo suas
escolas na parte da Itália chamada Magna Grécia. Mas, no caso dos
cristãos, o Senado romano, os imperadores contemporâneos, o exército, o
povo, os parentes dos fiéis, em guerra contra o cristianismo, teriam
barrado e vencido a este pela conspiração de tantas forças, se ele, pelo
poder divino, não houvesse ultrapassado e superado a oposição, até vencer
o mundo inteiro conjurado contra ele. |
É... Pelo visto
o trecho ofertado por Mário Cavalcanti de Mello nada tem a ver com o das
edições. E notem que o capítulo III do primeiro livro é bem curto e foi todo
transcrito nelas. No texto grego não se consegue ler nada que lembre os nomes de
Esaú (??sa?) ou Jacó
(??a??ß), apenas
Pitágoras (???a???a?) e Sócrates
(S????t??).
De onde, então,
Mário Cavalcanti de Mello retirou esse texto? Algum outro lugar de Contra Celso, tendo
apenas errado a referência? O portal New Advent possui a mesma
edição
de Contra Celso usada
Na verdade, a
citação constante em “Como os Teólogos Refutam“ não passa de um pastiche de
outra obra de Orígenes – De Principiis – nessa, sim, é possível encontrar
alusões à pré-existência. Provavelmente, fez-se uma mistura de passagens
constantes nos livros II e III.
Assim,
portanto, quando as escrituras são cuidadosamente examinadas no que dizem
respeito a Jacó e Esaú, convém dizer que não se considera injustiça da
parte de Deus que, antes de terem nascido ou feito qualquer coisa nesta
vida, “o mais
velho sirva ao mais novo”; e também não se considera ser injustiça
que, mesmo no útero, Jacó suplantou seu irmão, se intuirmos que ele foi
merecidamente amado por Deus, conforme os méritos de sua vida anterior, de
modo a merecer ser preferido a seu irmão; assim também é com relação às
criaturas celestiais, se repararmos que a diversidade não era a condição
inicial da criatura, mas que, devido a causas ocorridas anteriormente, um
encargo diferente está destinado pelo Criador a cada uma em proporção ao
grau de seu mérito, na verdade, foi por esse motivo que cada uma,
considerando ter sido criado por Deus um entendimento ou espírito
racional, ganhou para si mesma, conforme os movimentos de sua mente e
sentimentos de sua alma, um maior ou menor quinhão de mérito e se tornou
ou um objeto de amor a Deus ou de aversão a Ele; ao passo que, contudo,
algumas delas que são possuidoras de maior mérito recebem a ordem de
sofrer com outras para o agraciamento da condição do mundo e o alívio dos
deveres das criaturas de nível mais baixo, a fim de que por esse meio elas
próprias possam ser partícipes no esforço do Criador, conforme as palavras
do apóstolo: “Pois a criação está sujeita à vaidade, não
voluntariamente, mas por causa daquele que sujeitou a mesma na
esperança” (Rm 8:20-1). De
Principiis, livro II, cap. IX. Penso eu
que isso deva ser indagado a seguir, ou seja, quais as razões por que uma
alma humana é regida em uma ocasião por bons (espíritos) e em outra por
maus: os motivos de que eu suspeito devem ser anteriores ao nascimento
físico do indivíduo, como João (Batista) mostrou ao pular e exultar no
ventre de sua mãe, quando a voz da saudação de Maria alcançou os ouvidos
de sua mãe Isabel; e como o profeta Jeremias declara que era conhecido por
Deus antes que se formasse no ventre de sua mãe, e foi santificado antes
que nascesse, e ainda menino recebeu a graça da profecia. De
Principiis, livro III, cap. III |
Note que a
expressão “causas/motivos anteriores” de sua “vida anterior” foi transformada em
“existências passadas”, no plural, talvez para aproximar o discurso de Orígenes
com a reencarnação à moda espiritualista. De qualquer forma, Mário Cavalcanti de
Mello dá provas de não ter lido Contra Celso, nem De Principiis. É
provável que apenas repasse o que leu em outros espiritualistas.
***
O mais estranho
desses extratos usados por espiritualistas para provar que Orígenes era crente
em seu sistema de reencarnação, é que todos se baseiam
15 - Mas não resolve a questão ficar “detonando” tudo o que
os outros falam, na suposição de que estão mentindo, deixe isso para o Pe.
Quevedo e Cia.
Concordo. Só
acho estranho que o mesmo cuidado não tenha sido tomado com a edição de Contra Celso da
editora Paulus, acusada prematuramente de ser enviesada. Não que eu esteja
mandando um “tu também!”, mas apenas assinalando uma incongruência na postura
dos espiritualistas. Note, também, que quando falo dos erros desse ou daquele
autor, não digo que ele agiu mal intencionado, muito pelo contrário: ele apenas
mostrou excessiva fé em algum outro autor de má-fé. Descobrir o início da cadeia
de equívocos é o X da questão.
16 - John Dominic Crossan, professor universitário de
Estudos Bíblicos, em seu livro O Jesus Histórico,
desenvolve alguns critérios para autenticar os dados de pesquisa, para que o
leitor fique plenamente seguro da informação recebida. Diz ele a certa
altura:
O elemento final desta tríade é a classificação da
singularidade. Esse processo consiste em se evitar trabalhar com qualquer
unidade encontrada em apenas um testemunho, mesmo que seja dentro do primeiro
estrato. A minha intenção é fazer com que isso funcione como uma proteção e uma
garantia. Um material encontrado em pelo menos duas fontes independentes do
primeiro estrato não pode ter sido inventado por nenhuma delas. (CROSSAN, 1994,
p. 32).
Usando esse critério a seguinte citação feita por John van
Auken:
Cada alma...
vem para este mundo fortificada pelas vitórias ou enfraquecida pelas derrotas de
sua vida anterior. Seu lugar neste mundo, como um vaso destinado à honra ou à
desonra, é determinado por seus prévios méritos ou deméritos. Seu trabalho neste
mundo determina seu lugar no mundo que se seguirá a este. Orígenes, De Principiis (185-254 d.C.) (AUKEN,
Reencarnação, 2ª ed., Record, 1997, p. 153). (grifo do original).
É genuína,
visto que Russel, Santesson, Bizemont e Pompas também citam esse trecho de
Orígenes.
Ainda no ensino
básico, aprendi que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a
180º. Bem,
pelo menos assim eu pensava, até que um de meus primos, mais velho e bem mais
experiente em matemática, resolveu me pregar uma peça: deu-me uma esfera de
isopor um pouco menor que uma bola de futebol e pediu que eu desenhasse um
triângulo cuja base estivesse sobre o “equador” da esfera e o outro vértice num
dos polos. O ângulo desse vértice deveria ser de um quarto de volta e os
segmentos que o uniriam à base seriam dois “meridianos”. Feito o trabalho, me
perguntou quanto dava a soma dos ângulos internos. Eu, em minha inocência,
respondi prontamente “180º”. Ante minha surpresa com o movimento negativo que
ele fez com a cabeça, fui recendo as seguintes instruções:
- Quanto mede o
ângulo do vértice do pólo?
- Bem ...360
por 4 dá 90º.
- Ótimo, agora
de diga com que ângulo um meridiano corta o equador?
- Já que são
perpendiculares, 90º.
- Agora diga o
total!
- 270º ( 3 x
90º) - ainda
espantado.
Essa foi minha
apresentação a uma geometria “não-euclidiana”. Até aí achava que tudo que o
professor falara em aula era a representação fiel das figuras de nosso mundo,
mas aquilo só era válido caso os axiomas e postulados usados por Euclides para
deduzir toda a sua geometria permanecessem válidos (212). O quinto postulado (o
das paralelas) não é válido numa superfície esférica, pois nela inexistem retas
paralelas (213). Tudo deveria ser deduzido de novo e um teorema encontrado
garante que, sobre uma esfera, os ângulos internos de um triângulo sempre somam
mais que 180º (214).
Generalizando,
qualquer teorema só é válido dentro do conjunto de premissas que permitiram sua
dedução. E o que isso tem a ver com o princípio adotado por Crossan, enunciado
acima? Simples, ele também impõe condições para que seja válido: [1] as duas
fontes sejam do primeiro estrato e [2] sejam independentes. E aí, leitor,
autores modernos não são fontes do primeiro estrato e nem são independentes.
Caso tragam material em comum, ou o obtiveram da mesma fonte de primeiro
estrato, ou de uma mais tardia, com maior risco ter inventado ou distorcido
algo.
Então, pergunto
se Auken, Russel, Santesson, Bizemont e Pompas são realmente independentes?
Vejamos como cada um cita essa suposta passagem de De Principiis
(todas as reticências estão nos originais):
(John van
Auken, Reencarnação, Record, 2ª ed., apêndice, p.
152-3) Cada
alma... vem para este mundo fortificada pelas vitórias ou enfraquecida
pelas derrotas de sua vida anterior. Seu lugar neste mundo, como um vaso
destinado à honra ou à desonra, é determinado por seus prévios méritos ou
deméritos. Seu trabalho neste mundo determina seu lugar no mundo que se
seguirá a este. |
(H. S.
Santesson, Tudo sobre Reencarnação, Record, cap. V, p.
125) Cada
alma... vem para este mundo fortificada pelas vitórias ou enfraquecida
pelas derrotas de sua vida anterior. Seu lugar neste mundo, como um vaso
destinado à honra ou à desonra, é determinado por seus prévios méritos ou
deméritos. Seu trabalho neste mundo determina seu lugar no mundo que se
seguirá a este. |
(Manuela
Pompas, Reencarnação, Maltese, 1991, cap. II, p. 66) A alma
não tem princípio nem fim. Cada alma entra neste mundo fortificada pelas
vitórias ou então enfraquecidas pelos defeitos de sua vida anterior. Seu
lugar neste mundo, quase como uma moradia destinada à honra ou à desonra,
é determinado pelos méritos precedentes. Sua obra neste mundo determina o
lugar que terá no mundo seguinte… |
(Dorthée
K. Bizemont, Astrologia Cármica, Nova Fronteira, 1990, cap. I,
p. 29) Toda
alma, […] vem a este mundo reforçada pelas vitórias ou enfraquecida pelas
derrotas de suas vidas anteriores. |
(E. W.
Russel, Reencarnação – O Mistério do Homem,
Artenova, 1972, p. 128) Cada
alma... vem a este mundo fortificada pelas fraquezas ou vitórias da vida
anterior. Seu lugar neste mundo, como um vaso escolhido para honrar ou
desonrar, é determinado pelos seus méritos ou deméritos. Seu trabalho
neste mundo determina a sua vida num mundo futuro. |
Agora, de dois
autores ainda não-traduzidos:
(Noel Langley, Edgar Cayce on Reincarnation, Paperback Library,
cap. IX, p. 165) Every soul … come into this world strengthened by
the victories or weakened by the defeats of their previous life. Its place
in this world as a vessel appointed to honor or dishonor, is determined by
its previous merits or demerits. Its work in this world determines its
place in the world which is to follow this. |
(Joseph Head & S.L. Cranston, Reincarnation –
An East-West Anthology, Julian
Press Inc, 1961, parte. I, p. 36) The soul has neither beginning nor end … Every soul
… come
into this world strengthened by the victories or weakened by the defeats
of their previous life. Its place in this world as a vessel appointed to
honor or dishonor is determined by its previous merits or demerits. Its
work in this world determines its place in the world which is to follow
this. |
A tarefa é um
tanto ingrata, já que ninguém dá as coordenadas para encontrar tal citação. E
justamente o fato de todos cometerem o mesmo desleixo sugere uma dependência
comum. Tateando o rastro deixado, o principal candidato para origem da citação
misteriosa é a obra de Joseph Head e S.L. Cranston. Manuela
Pompas possui uma tradução italiana desse livro em sua bibliografia, Santesson,
embora não possua bibliografia, assume na introdução de seu livro que “impõe-se manifestar a
minha dívida para com Joseph Head e S. L. Cranston, de cuja extraordinária antologia,
REINCARNATION, vali-me com frequência e quase impudentemente”. Langley é
outro autor que não tem bibliografia, mas cita ao longo do texto alguns autores
que usou. No último capítulo, ele recomenda a obra de Head e Cranston como leitura
complementar (“recommended parallel reading”) e, no
apêndice, revela-a como fonte para os “quinze anátemas contra Orígenes”. Ela
deve ter sido a fonte para as diversas citações (ou “distorções da”) patrística
encontradas no capítulo IX. Russel se liga a Head e Cranston justamente através
do estudo de Langley. Auken não dá uma relação explícita com Langley, mas
demonstra, assim como ele, depender muito de Edgar Cayce e de autores
relacionados à fundação criada por ele (Association for Research and Enlightenment -
ARE). Todas as citações patrísticas (e também a de Platão) que
aparecem no apêndice de seu livro também se encontram no capítulo IX de Langley,
um sinal que beberam água da mesma fonte. Por fim, resta Bizemont que, embora
traga Orígenes em sua bibliografia, não dá pista alguma sobre quais edições usou
para De
Principiis e Contra Celso. Ao que tudo indica, também citou de
“segunda mão” e, por sinal, é a única que encurta a citação, além de usar uma
expressão no plural: “vidas anteriores”.
Cientes que não
existe a alegada independência entre os autores, resta saber se a citação é real
ou não, mas, quanto a isso, Head e Cranston em nada ajudam ao não oferecer
nenhuma referência precisa. Também não foi possível encontrar nenhum paralelo
exato com a edição de Ante-Nice Fathers, sendo possível que a citação, na
verdade, se trate de um resumo das ideias contidas no final do capítulo IX do
segundo livro de De
Principiis.
Então,
como não há dúvida de que no dia do julgamento o bom será separado do mal,
e o justo do injusto, e todos pela sentença de Deus serão distribuídos
conforme seus méritos por entre os lugares de que são merecedores, logo
sou da opinião de que alguma situação tal foi anteriormente o caso, como,
desejando Deus, mostraremos no que se segue. Pois se deve crer que Deus
faz e ordena todas as coisas e todas as vezes conforme Seu julgamento.
Pois as palavras que o apóstolo usa quando diz: “Numa grande casa
não há somente vasos de ouro e prata, mas também de madeira e de barro, e
alguns para honra e alguns para a desonra” (2 Tm 2:20), e as que
acrescenta ao dizer: “se um homem purgar a si mesmo, será um vaso para
honra, santificado e útil para o uso do Mestre em todo bom trabalho”
(2 Tm 2:21), indubitavelmente assinalam isto: que aquele que se purgar
quando estiver nesta vida será preparado para todo bom trabalho na que
está por vir; enquanto aquele que não se purgar será, conforme seu total
de impureza, um vaso para a desonra, i.e., indigno. Portanto é possível
entender que houvera anteriormente vasos racionais, sejam purgados ou não,
i.e., que purgaram a si mesmos ou não, e que consequentemente cada vaso,
conforme a medida de sua pureza ou impureza, recebeu um lugar, ou região,
ou condição pelo nascimento, ou um ofício para cumprir, neste mundo.
Provendo Deus por todos esses, até o mais humilde, e, distinguindo por Sua
sabedoria, organiza todas as coisas por meio do controle de Seu
julgamento, conforme a mais imparcial retribuição, até que cada um seja
auxiliado ou amparado em conformidade com seus méritos. No qual,
certamente, todo o princípio da equidade é apresentado, enquanto a
desigualdade das circunstâncias preserva a justiça de uma distribuição
conforme o mérito. Porém as razões dos méritos em cada caso individual são
apenas identificadas de maneira real e clara pelo próprio Deus, junto com
Seu Verbo unigênito, e Sua Sabedoria, e seu Espírito Santo. De
Principiis, II, cap. IX |
Quanto ao
conteúdo dela em si, apenas a citação mutilada menor
de Bizemont é neutra, podendo servir tanto para a reencarnação nos moldes
espiritualistas quanto para o modelo inter-eras. Quando é adicionado o
complemento das demais, a balança pende para o último modelo.
Contudo, há
quem rejeite essa conclusão baseada numa noção equivocada do que seria esse “mundo que se seguirá a
este” na teologia de De Principiis. Vamos ao próximo questionamento.
17 - Mas
argumentam alhures que a forma que Orígenes acreditava na reencarnação é
diferente da que nós, os espíritas, acreditamos. É melhor ver o que foi dito
sobre isso no Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, mais especificamente as
questões de
Esse é um caso
em que “focinho de porco é tomada”, ou, em linguajar mais formal, afirma-se que
uma coisa é bem similar a outra graças a algumas semelhanças e se descarta
qualquer grande diferença que possa surgir. Para começo de conversa, o
espiritismo tem um modelo de dinâmica do universo essencialmente linear: há uma
única grande era, com um processo de criação contínuo, infinito e uma evolução
das criaturas sempre para frente. Todos os corpos celestes do universo seriam
habitados por seres mais ou menos materiais, conforme sua evolução, e novos
mundos seriam criados para abrigar novos espíritos. Tudo aponta para um sentido
só, partindo de um princípio imemoriável a término nenhum.
No que vemos
E agora,
já que o curso da discussão anterior mostrou que os diversos movimentos
dos seres racionais e suas opiniões variáveis deram origem à diversidade
que existe no mundo, devemos ver se não é apropriado que o mundo tenha um
término como seu início. Pois se não há dúvida que se fim deve ser visto
cercado de diversidade e variedade; tal variedade, sendo descoberta
presente no termino do mundo, irá novamente fornecer fundamento e
conjuntura para as diversidades do outro mundo que está para suceder o
atual. De
Principiis, II, cap. I |
Em suma, os
espíritas advogam a existência de diversos mundos paralelos em um universo
linear, ao passo que Orígenes propunha mundos sequenciais para um universo
cíclico. Não faltou conhecimento de espiritismo ao opositor, já de
origenismo...
18 – O que
importa é que, em cada caso, todos os seres sempre teriam uma nova oportunidade
para se redimir. . Masi res mais ou menos materiais, conforme sua evoluçue.
Pois deve-se cre
Se o importante
é ninguém se perder, então qualquer teologia universalista serve! O que Orígenes
também tinha de enfrentar era o desafio imposto por gnósticos e marcionitas
quanto à unicidade do Deus do Antigo e do Novo Testamento, o que implicaria na
elaboração de uma solução para o Problema do Mal que não apelasse para nenhum
argumento desses grupos. O resultado foi um sistema de uma vida única dentro de cada era e, portanto,
compatível com as leituras proto-ortodoxas da Bíblia (que abarcaria apenas uma
era) e oposta às que os gnósticos faziam. Não é à toa que vemos Orígenes
combater a ideia de múltiplas existências numa mesma era em
outras obras, como Contra Celso, e os Comentários sobre
Mateus e João. Olhando por esse ângulo, Orígenes era mais ortodoxo do que muitos
espiritualistas admitiriam.
Pois se,
por hipótese, na constituição das coisas que existem desde o começo até o
fim do mundo, a mesma alma pode estar duas vezes no corpo, por que causa
deveria estar nele? Pois se por causa do pecado ela deva estar duas vezes
no corpo, por que não deveria estar três vezes e repetidamente neles, já
que as punições com relação a esta vida e aos pecados cometidos nela serão
pagos a ela apenas pelo método da transmigração? Mas se isso for admitido
como uma consequência, talvez nunca haja uma época quando uma alma não
deva mais transmigrar: pois sempre por causa de seus pecados anteriores
ela irá residir no corpo; e então não haverá lugar para a corrupção do
mundo, em que “céu e terra passarão” (Mt 24:35). E se
admitirmos, nessa hipótese, que uma que seja absolutamente sem pecado não
venha ao corpo pelo nascimento, depois de qual intervalo de tempo se deve
supor que uma alma se encontre absolutamente pura e sem precisar de
transmigração? Mas, apesar disso, também se uma alma sempre estiver sendo
removida do número definido de almas e não mais retornar ao corpo, alguma
ocasião após um número infinito de eras, de certo modo, o nascimento
cessará; sendo o mundo sendo reduzido a uma ou duas pessoas ou algumas
mais, após cujo aperfeiçoamento o mundo perecerá, tendo o fornecimento de
almas vindas para o corpo minguado. Mas isso não é conforme a Escritura,
já que ela dá conhecimento de uma multidão de pecadores na época da
destruição do mundo. Comentário sobre o Evangelho de João, XIII,
cap. I |
Com uma criação
finita e um tempo indefinido para o mundo, Orígenes não concebia uma forma
conciliar a transmigração com a escatologia cristã (215). Imaginar múltiplas
eras contornar essa dificuldade. E, com vários mundos sucessivos, a conformação
deles poderia se ajustar a cada nova criação, à medida que a apocatástase se
aproximasse, o que era inviável num modelo linear para o cosmo.
19 – Os textos
Há quem defenda
que se deva sempre atentar para a evolução das ideias de determinado autor. Em
geral, suas obras mais tardias refletiriam uma mente já amadurecida e de melhor
entendimento após várias discussões. Um exemplo dentro do próprio espiritismo
seria a adoção que Kardec fez de ideias do evolucionismo biológico (Gêneses,
cap. X), coisa que negava veementemente no Livro dos Espíritos (cap. I). Óbvio
que isso é um problema quando sua última opinião desagrada mais que as
anteriores. Nesse caso, podem surgir desculpas como perseguição (no caso de
Orígenes), debilidade senil, etc., o que pode até ser verdade, dependendo da
sustentação em fatos.
No caso de
Orígenes, o argumento acima foi utilizado por Elizabeth Clare Prophet em Reencarnação – O Elo
Perdido do Cristianismo, Nova Era, cap. XVI, p.
Neste
ponto [a identificação de João Batista com Elias], não me parece que se
falava da alma de Elias, com receio eu de cair na doutrina da
transmigração, que é estranha à Igreja de Deus, não sendo ensinada pelos
apóstolos, nem encontrada nas escrituras. Comentário sobre Mateus, Livro
XI, cap VII |
Sua alegação,
porém, esbarra no uso que faz uma anterior de Orígenes, que é citada na nota de
número 15, também do capítulo XVI de Reencarnação, como sendo favorável à reencarnação:
(...)Orígenes pode ter tido algo a acrescentar sobre
a questão de se os judeus acreditavam ou não |
Esquisito! O
extrato de Comentário de João que usei logo acima é antirreencarnacionista.
Então, vejamos o que diz o capítulo VII do sexto livro dessa obra:
Nosso primeiro erudito, cuja visão da transcorporação
vimos ser baseada em nossa passagem, pode prosseguir com um exame mais
detalhado do texto e argumentar contra seu antagonista que se João foi o
filho de um homem como o sacerdote Zacarias e se nasceu quando seu pais já
eram ambos idosos, contrariando todas as expectativas humanas, não é
provável que tanto judeus em Jerusalém o desconhecessem, ou os sacerdotes
e levitas por eles enviados não estariam a par dos fatos de seu
nascimento. Não declara Lucas que “o temor veio sobre todos os que viviam por perto”
(Lc 1:65), - claramente por perto de Zacarias e Isabel – e que “todas essas
coisas foram divulgadas por toda terra montanhosa da
Judeia”? E se o nascimento de João a partir de Zacarias foi
matéria de comum conhecimento e os judeus de Jerusalém já enviaram
sacerdotes e levitas para perguntar, “És tu Elias?”
então está claro em dizer que eles consideravam a doutrina da
transcorporação com verdadeira e que ela era uma doutrina corrente de seu
país, e não estranha aos seus ensinos secretos. João, portanto, diz, “Eu não sou
Elias”, porque não sabe sobre sua vida prévia. Estes pensadores,
assim, cogitam uma opinião que não deve de forma alguma ser desprezada.
Nosso membro da Igreja, contudo, pode replicar à
alegação e perguntar se é digno de um profeta, que é iluminado pelo
Espírito Santo, que foi previsto por Isaías, e cujo nascimento por
pressagiado antes que sucedesse por tão grande anjo, que recebeu da
plenitude de Cristo, que partilha de tal graça, que sabe que a verdade vem
por meio de Jesus Cristo e ensinou coisas tão profundas a respeito de Deus
e do unigênito, que está no seio do Pai, é digno de tal individuo mentir
ou mesmo hesitar, em razão da ignorância do que era. Pois com relação ao
que estava obscuro, ele deveria ter se abstido de confessar, e não ter nem
afirmado, nem negado a proposição que foi posta. Se a doutrina [da
transcorporação] fosse largamente corrente, não deveria João ter hesitado
em se pronunciar sobre isto, com receio de sua alma ter realmente estado
em Elias? E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus
antagonistas para perguntarem aos mestres nas doutrinas secretas dos
hebreus se eles na verdade sustentam tal crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento
baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento.
[grifo meu] Trecho Parte omitida pela mesma |
Senhores, está
claro que, quando Orígenes fala de um ensino “secreto dos hebreus”, ele o coloca
na boca de filósofos antagonistas. Depois ele diz com todas as letras que,
àquela altura, a transmigração ainda não entrara no judaísmo
místico. Quanto ao caso
de Fineias, Orígenes fala ao fim do capítulo:
Eu não
sei como os hebreus começaram a falar que Fineias, filho de Eleazar, que
admitidamente prolongou sua vida ao tempo de muitos dos juízes, como lemos
no Livro de Juízes (Jz 20:28), para dizer o que agora menciono. Dizem que
ele foi Elias porque Deus lhe prometera imortalidade, devido à aliança
concedida a ele (Nm 25:12-13) (...) . |
Aqui fica claro
que não se tratava de reencarnação, mas de uma imortalidade. Os judeus teriam
confundido o “sacerdócio eterno” de Fineias e sua descendência com uma espécie
de imortalidade para o próprio. Por todo o exposto acima, fica patente que
Prophet não leu nada do texto original de Orígenes e, além disso, ou pinçou
textos de suas fontes ou confiou demais nelas. Só falta alguns passarem a
considerar Comentário sobre João como “muito tardia”, já que,
agora, ela demonstra não ser mais útil para eles.
20 – Você
deveria se basear na opinião de autores que sejam lúcidos, imparciais e
abalizados, que fujam das opiniões dadas por dogmáticos que, presos a uma
verdade que lhes foi imposta, não percebem que a verdade poderia ser bem outra
daquilo que pretendem impor.
Não esquecerei
o episódio
Daí alguém pode
cogitar se, já que cada lado tem seus campeões, então qualquer afirmação é
válida. Dá para separar fontes sólidas de enganações? Bem, posso dizer que não
se compara autores, mas os argumentos que eles usam. Se um grupo de autores, ao
fazer pesquisa historiográfica, é incapaz de citar de fazer qualquer referência
precisa a um cronista de época; ou, nas vezes que cita, distorce textos contra a
reencarnação para que pareçam o contrário - quando não inventa, edita ou
condensa as palavras que lhe convém -, então fica difícil levar essa gente a
sério. O pior é a possibilidade de apologistas de aferrarem a qualquer fiapo de
pretensa incerteza para não abrir mão de sua bibliografia dúbia, em vez de
arregaçar as mangas e realizar uma pesquisa decente.
21 – Mas é
difícil saber o que realmente aconteceu, pois a história sempre é contada pelos
vencedores!
Engano seu! Na
crise origenista do século VI, temos ao menos o relato de dois perdedores:
Liberato de Cartago e Facundo de Hermiano: bispos latinos que ficaram p* da vida
com as maquinações origenistas que desencadearam a questão dos Três Capítulos.
Pois é, a Igreja Latina também foi uma perdedora em 553 e não ficou nem um pouco
de mãos dadas com o origenismo. Se isso não te satisfaz, pelo menos mostra que o
origenismo estava longe de ter a aceitação que você imagina. Ainda mais no
ocidente.
22 – O fato é
que a reencarnação no cristianismo começou a ser perseguida por Justiniano a
partir de 543...
O fato é que,
em sua infância, o cristianismo era uma religião apocalíptica, não dando muito
tempo para qualquer um reencarnar. O fato é que quando o clamor pelo fim de
nossa era diminuiu, os Pais da Igreja continuaram a combater a reencarnação.
Orígenes entre eles. O fato é que Orígenes nunca foi consenso e já não era bem
aceito ao final do século IV. O fato é que a segunda crise origenista foi um
problema local levado ao arbítrio do imperador e seu alcance nem de longe se
compara ao da questão dos Três Capítulos, de quem foi contemporânea. O fato é
que Teodora não teve nada a ver com esse caso. O fato é que o II Concílio de
Constantinopla de forma alguma representou uma mudança de rumos na religiosidade
da orla do Mediterrâneo, como fora a conversão de Constantino ou viria a ser a
expansão do Islã. O fato é que tudo não passou de um mito histórico criado por
espíritas/espiritualistas.
23 – Até parece
que isso invalidaria um dos princípios do espiritismo: a reencarnação!
Realmente, a
avaliação da reencarnação como fato não pode ser afetada pelo que se pensou sobre ela
no passado, mas o aspecto histórico dessa crença, esse sim, será
prejudicadíssimo. É muito estranho ter visto pessoas que defenderam arduamente
sua visão mítica do cristianismo primevo terminar sua apologia lançando algo
desse quilate. Parece que, de uma hora para outra, passaram a desconsiderar todo
o valor simbólico que haveria caso sua visão fantasiosa da história fosse
verdade.
É preciso
lembrar que o espiritualismo nasceu em meio a uma cultura há séculos habituada
com a ideia da “vida única”. Era mais que esperada uma reação acusando o
espiritualismo (ou, mais especificamente, suas vertentes reencarnacionistas) de
ser uma doutrina alienígena ao cristianismo. O contra-ataque se deu com
estratégia de transformar acusador em réu, passando ele a ser a fraude histórica
e o espiritualismo, a verdadeira reedição do cristianismo em seu estado mais
puro. Kardec já reinterpretava versículos bíblicos adotando um viés pró
reencarnação
Essa atitude
não deixa de remeter àquela do autor da Epistola de Barnabé que, ambicionando mostrar que o
judaísmo era uma religião falsa e que o cristianismo seria sua verdadeira
expressão, usou e abusou de alegorias e apelações. E note que, quando
escreveu, as comunidades cristãs ainda eram diminutas quando comparadas ás bem
estabelecidas colônias da diáspora. Está a história se repetindo? Sim e Não.
Todo o contexto onde o cristianismo nasceu e competiu com o farisianismo não
existe mais. Por outro lado, a disputa atual espelha a anterior baseada em
características atemporais da natureza humana: os desejos por respeito e
aceitação, nem para isso seja preciso absorver o antagonista e pegar para si
toda a tradição e respeitabilidade dele. Do ponto de vista agnóstico, por mais
que os religiosos esperneiem, a proto-ortodoxia cristã fez uma apropriação
indébita do judaísmo e, por algumas motivações similares, espiritualistas fazem
o mesmo hoje com o cristianismo tradicional e duas vezes com o judaísmo. Se
serão bem sucedidos, só o tempo dirá.
Talvez alguém,
irritado com o parágrafo anterior, saia postando no livro de visitas ou em meu
e-mail uma série de citações de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Pastorino, José
Reis Chaves, Severino Celestino da Silva, etc. Agindo assim, vai apenas
“incorporar” o autor da Epístola de Barnabé e me dar razão, por mais que queira
me refutar. Uma alternativa a ser explorada seria fazer uma reedição da heresia
marcionistas e tornar o espiritismo um sistema verdadeiramente anew. Muitos
adeptos não gostarão da ideia, afinal se intitular cristão é uma coisa e dizer
que meramente segue moral cristã é outra, e bem menos chamativa. Ter que
descartar o espiritismo como o “Consolador Prometido” em Jo 14:26 é mais
frustrante ainda, entretanto talvez seja uma forma de reduzir os atritos com
cristãos “tradicionais” se cada um “estiver na sua”, da mesma forma que poderia
se cogitar um menor antissemitismo ao longo da história caso o cristianismo
tivesse rompido de vez os laços com o judaísmo (216).
24 – Esses
embustes são obras de indivíduos, não do espiritismo/espiritualismo em si!
O escritor de
ficção-científica Isac Asimov registrou em seu livro A Memoir, cap. CV,
um curioso diálogo que teve:
Lembro-me de certa vez um amigo judeu [Asimov também
o era] assinalando com satisfação a alta percentagem de ganhadores do
prêmio Nobel que eram judeus. - Isso te faz sentir superior? – disse. - Claro! – disse ele. - E se eu lhe dissesse que 60% dos pornógrafos e 80%
dos manipuladores trapaceiros de Wall Street fossem
judeus? Ele ficou surpreso. – Isso é verdade? - Eu não sei. Inventei as estatísticas. Mas e se
fosse verdade? Isso te faria sentir inferior? Ele teve de pensar a respeito. É muito mais fácil
encontrar razões para se considerar superior do que inferior. Mas um
indivíduo é apenas a imagem refletida do outro. A mesma linha
argumentativa que toma crédito individual pela conquista real ou
imaginária de um grupo artificialmente definido pode ser usada para
justificar a sujeição e humilhação de indivíduos pelas delinquências reais
ou imaginárias do mesmo grupo. |
E isso pode ser
aplicado a coisas bem mais amenas como, por exemplo, futebol. Se um time vence o
campeonato, um grupo de torcedores poderá dizer: “Ganhamos a taça!”. A questão é
que nenhum deles esteve em campo ou no banco de reserva, nem sequer distribuindo
isotônico aos jogadores durante o intervalo entre um tempo e outro. “Ah! Nós
torcemos”. Bem, a torcida do time perdedor também se empenhou, só que, em vez de
fazer um mea
culpa por não ter se esgoelado o bastante, prefere bradar: “O juiz é
ladrão”, “Fulano é perna-de-pau”, “O técnico é uma besta”, e outras coisas do
gênero, sempre contra aqueles que efetivamente poderiam decidir a partida.
Essa é uma
pequena amostra de uma terrível tendência humana: coletivizar méritos e
individualizar fracassos. Pergunto-lhe se, por acaso, as teorias conspiratórias
a respeito de Orígenes, Justiniano e Teodora fossem verdadeiras, o quanto de
material de propaganda para o movimento isso não serviria? Ou melhor, está
servindo, pois o mito ainda continua firme no imaginário espírita, um meme a se
multiplicar continuamente nas palestras dos centros. Agora, pergunto se
conseguiriam dissociar rapidamente o movimento espírita do mito quando a casa
cair? Será fácil jogar toda a culpa em espiritualistas, newagers, teósofos,
e assemelhados? Bem ou Mal, aceitaram uma nota falsa deles sem ao menos
verificar a marca d’água e, à media que a foram repassando, ela se tornou cada
vez mais entranhada em seu meio.
Mas lamento
informar que o estrago já está feito. Talvez seja uma bomba de efeito retardado,
mas ela já foi acionada e causará bons estragos se sua explosão estiver ao
alcance dos ouvidos de “detratores” bem menos educados. O que se pode fazer
agora é minorar os danos e parar de difundir embustes. Algum confrade poderá se
gabar: “Olha só! Nós
espíritas somos melhores, pois largamos uma ideia tão logo ela se mostre
falsa!”. Quem sabe? A própria ciência se engana às vezes e abraça fraudes
perpetradas por gente acima de qualquer suspeita. O caso do “homem Piltdown” é
emblemático (217). A diferença é que, nesse último, a fraude foi descoberta por
cientistas, também. Nenhum criacionista teve competência para desmascará-la. No
caso do origenismo e da literatura patrística, quem deu o alerta foram
justamente aqueles a quem o movimento espírita chama de “detratores”.
Ironia...
25 – Aguarde,
pois virá uma refutação arrasadora contra você!
Que “meda”!
Pode até ser que venha, apesar de me considerar ao lado das melhores evidências,
não sou o máximo da argumentação. Parodiando certa frase que ouvi de um antigo
opositor, se a resposta a este artigo for breve, não será completa; se for
completa, não será breve. Afinal este artigo, que já está imenso, ainda não
esgotou todo o assunto. O que me chatearia um pouco são certas noções e atitudes
errôneas que, sinceramente, desestimulam qualquer pessoa mais instruída, caso
ela já não tenha chegado à conclusão de que o debate não vale o esforço.
·
Dar qualquer resposta: há gente achando que resolve tudo pelo
simples fato de ter escrito qualquer comentário a cada parágrafo, mesmo que seus
argumentos sejam mais fracos que os supostamente refutados.
·
Tática da água: tal como um filete d’água escorrendo pelo
chão, a refutação sempre percorre o trajeto de menor resistência, contornando os pontos
que seriam mais cabeludos e, ao chegar ao final, dá a ilusão de que refutou
tudo.
·
Clamar vitória e pular o fora: desdobramento natural dos
dois anteriores. Há também quem clame vitória só porque a outra parte parou de
responder, iludindo sua “plateia” com isso, quando, na verdade, o opositor pode
simplesmente chegado à conclusão de que não valia a pena continuar um freak show.
·
Regurgitar citações de “autoridades” tresloucadamente: é
uma forma de impressionar os confrades leigos, intimidar “detratores” e
aparentar uma erudição que você não tem. E se por acaso você a tiver, estará
apenas demonstrando que não conseguiu transformá-la em sabedoria, em razão de
seu uso desastrado de uma ferramenta que poderia ser útil. O maior erro é alguém
querer usar autoridades para encerrar uma discussão, quando elas deveriam ser
justamente o começo delas. Em outras palavras, deveríamos confrontar seus
argumentos e não seus nomes. A pior forma de usar suas reputações é
mencionar alguém que não é autoridade em nada ou não é perito no ramo
·
Fiar-se numa única autoridade: não que isso seja errado, a
questão é que dificilmente ela coincidirá com o seu ponto de vista em todos os
casos. Um exemplo interessante é o Bart Ehrman. Após a publicação no Brasil de
seu livro “O que
Jesus disse o que Jesus não disse”, houve um frenesi em fóruns de discussão,
principalmente contra os debatedores religiosos. Só que Ehrman não tem
compromisso com qualquer grupo religioso e o relato que traz das pesquisas
quanto ao Jesus histórico em outros livros são capazes de frustrar até mesmo os
espíritas. Só para constar: seu livro A Verdade e a Ficção
·
Atacar a forma, e não o conteúdo: há os que têm orgasmos só
com a hipótese de me fazer provar do próprio veneno. “Se é um catador de
erros, achemos os erros dele”, pensam. É um direito deles. Só acho muito
estranho quando o tema em questão é história (como neste artigo), física ou biologia, e o
que usam para desqualificar é a formatação, o estilo ou a gramática. Talvez
sejam do tipo de gente que julga as pessoas pelas roupas que vestem ou considera
inteligente quem lhe cacareje o mais ininteligível “bacharelês”. Até concordo que
“primeiras impressões” são determinantes numa entrevista de emprego ou numa
conquista amorosa, pois aí o tempo é restrito para se tomar uma decisão e
prejulgamentos servem de atalhos, mas e quando se deseja buscar a verdade?
Conseguir se comunicar já não seria o suficiente? Se numa roda de amigos os
temas discutidos vão de futebol a Star Trek e alguém soltar um “nós vai” ou “a gente fumo”, seus
argumentos poderão continuar perfeitamente válidos, dependendo do caso. Quanto
aos livros dos autores que critico, nem me preocupo em catar esse tipo de erro,
pois sei que eles muito provavelmente passaram por revisores. Acontece que
também sei que a maioria de suas editoras não é acadêmica, ou seja, seus
argumentos não são revisados por pares. É essa a fraqueza que acabo explorando.
E, por sinal, há um lado bom para mim quando atacam apresentação do texto: os
adversários provam que são incapazes de refutar meus argumentos. Não existe
elogio maior que esse.
·
Questionar minhas traduções: o problema não é que haja
erros em minhas traduções, mas as correções que são propostas. Há muita gente
por aí que, seja por malandragem ou ingenuidade, acha que dicionário é rei. Quem
manda realmente no sentido da palavra é o falante e dicionários, no máximo,
tentam correr atrás dos vários usos de cada palavra. Assim, quando for traduzir
qualquer coisa, verifique se o sentido que buscou se enquadra no contexto não só
pedaço que quer traduzir, mas de todas as vezes que o autor faz uso dessa
palavra. É ele quem decidiu seu significado, não você. Cuidado, também, com
receituários de gramáticas normativas de qualquer idioma. O grego koiné popular não é
exatamente a língua de Platão, nem o latim medieval segue as mesmas regras do
clássico. Prefira, então, livros que deem enfoque linguístico em de prescritivo
a esses idiomas, mostrando suas mutações e flexibilidades. Do contrário, vai
cair na arapuca ao julgar erradas certas construções que eram perfeitamente
válidas para seus falantes séculos atrás e eu terei uma boa quantidade de
contraexemplos para mostrar (220).
·
Dois pesos, duas medidas: é quando o mesmo padrão de
qualidade que exige dos outros não se aplica a você. Por exemplo, quando minora
a gravidade das citações maquiadas feitas por espiritualistas nos textos de Contra Celso e De Principiis.
Óbvio que
defenderá que elas não influenciam tanto assim, embora grite aos quatro
ventos que reencarnação foi retirada da Bíblia por escribas ortodoxos (sem
provas, claro) em alguma das 400.000 alterações catalogadas. Há uma linha tênue
que separa a defesa desse embuste da falácia “tu também”: a parte que acusa
também reconhece estar em erro e não se orgulha disso, como um fumante que
recomenda a jovens não experimentar cigarro algum, embora seu vício seja mais
forte que ele.
·
Usar a Bíblia (incluindo deutero-canônicos e apócrifos)
contra mim: isso só funcionaria contra adeptos da inerrância bíblica. Quando o
adversário trata a Bíblia como literatura, muito apologista espírita fica sem
saber o que fazer, porque, entre outras coisas, não é possível prendê-lo na
armadilha de ter de lidar com contradições. Ele sabe da existência delas, pois
encarar os diversos livros como “literatura hebraica clássica” e “literatura
cristã primitiva” é uma visão bem diferente da que os cristãos tradicionais têm,
assim como a de muitos espíritas. A própria tarefa de interpretar se torna mais
abalizada. Enquanto para grupos religiosos qualquer interpretação se torna
possível quando se extrai o que quiser das entrelinhas, os que adotam um enfoque
literário têm de respeitar o contexto social em que os livros foram escritos.
Assim, o apocalipse joanino devia ser bem mais fácil de entender para seus
primeiros leitores, ainda aguardando a parúsia para a geração apostólica, do que
para aqueles que creem que o mundo vai acabar no fim deste ano. Segundo Baruque
apresenta um entendimento claro quando se sabe que ele foi escrito para uma
comunidade ainda atordoada pela destruição do templo. Ter Jesus como profeta
apocalíptico ou filósofo cínico gera resultados bem discrepantes daqueles que se
teria tomando-o como o Verbo ou o espírito mais evoluído que já encarnou na
Terra. Enfim, enquanto religiões modernas tentam provar sua teologia com esse ou
aquele versículo – usando e abusando de alegorias -, a abordagem
literária busca entender qual era a real crença de seus primeiros leitores, não
hesitando em recorrer, para isso, a fontes extrabíblicas. Assim, interpretações
não-condizentes com o ambiente dos personagens históricos devem ser descartadas.
Por isso as leituras que gnósticos faziam de Paulo não devem ser intenção
original do apóstolo. As leituras reencarnacionistas de versículos escolhidos a
dedo na Bíblia não encontram respaldo, pois o conceito de gigul só ganhou
fôlego no judaísmo em tempos medievais, não havendo vestígio dela no clamor
apocalíptico dos textos intertestamentários. A pré-existência, sim, possui forte
base nos documentos da época.
·
Desconsiderar a patrística: se a teoria conspiratória
acerca do origenismo afirma a reencarnação ter sido dominante no mainstream cristão
até o século VI, então é inviável descartar os escritos dos que justamente
moldaram a ortodoxia da Igreja. É possível que, ao admitirem que os Pais da
Igreja não lhes sejam mais úteis, os apologistas passem a execrá-los relatando
os ensinos heterodoxos existentes nas obras de muitos (p.e., Justino era
milenarista). Isso não deixa de ser tremenda covardia, pois a ortodoxia foi um
processo de convergência que demorou séculos. O próprio Orígenes não escaparia a
acusações de idiossincrasia por ter se castrado na juventude, fato que alguns
não negam, embora relevem (221). Sem contar que essa atitude pode se revelar a
um tiro no pé: se o grupo que viria a ser majoritário não serve nem de base para
estudos, então ela deve ser buscada em livros dos que foram considerados
heréticos. Por vias tortas, a pesquisa espírita entraria nos eixos. Só que eu
não esquecerei que a patrística foi um dia utilizada quando era conveniente.
·
Refutar o que não discordo: isso pode ser um sinal de que
não se leu o artigo direito ou não se leu tudo antes de começar a refutar.
Também pode ser uma tremenda malandragem, pois, caso eu faça uma concessão a um
ponto de vista espiritualista no fim de um artigo, um apologista fica tentado a
começar seu texto agindo como se eu ignorasse esse ponto e terminar sua
refutação das minhas explicações.
·
Refutar o que não é discutido: não deixa de ser uma
variante da “falácia do espantalho” (222). Seria o caso
de refutar não
um argumento meu, mas uma adaptação dele bem mais fácil para o opositor. Aqui
isso apareceu quando se tentou enquadrar a reencarnação inter-eras de Orígenes
no esquema de mundos múltiplos do espiritismo.
·
Cobrar demonstração de negativas: o principal caso seria
exigir provar que Teodora não matou 500 prostitutas. Tal cobrança não deixa de
ser uma inversão do ônus da prova, dada a incapacidade de se provar que ela
efetivamente tenha matado.
·
Apelo emocional: recurso mais eficaz quando se lida com um
público em uma plateia ou por meio de recursos audiovisuais. Nesse caso o
locutor vai clamar à memória da cruzada contra os cátaros (que nada tem a ver
com a questão origenista), das terríveis perseguições que o espiritismo sofreu
no século XX (embora ninguém tenha sido queimado ou devorado por feras, ao que
eu saiba), das alterações bíblicas feitas contra o espiritismo (como se
estivessem em todas as edições ou na pauta de discussão), etc. Tudo para fazer o
público acreditar que o movimento se torna mais uma vez vítima de um detrator
malvado. No caso da internet, isso se manifesta com textos em caixa alta,
excesso de negritos, pontos de exclamação e outros artifícios que tornam a
leitura um saco. Atitude também conhecida como “tentar ganhar no grito”.
·
Tática do avestruz: fingir que nunca fizeram pesquisa
bibliográfica ruim, nunca pinçaram textos, nunca usaram citações errôneas de
Orígenes e passar a usar as que eu expus aqui, etc. O pior é ter de ouvir um
cara-de-pau assumir que fez tudo porque “os detratores também fazem”.
·
Ataque pessoal: se é apenas mais um detrator, então esse é
bom para levar pedrada.
Obviamente,
todas as más práticas acima são encontradas em maior ou menor grau nos sites
apologéticos por essa internet afora. Estou dando essas dicas para poupar seu
tempo e o meu, ou para que você entenda que não sou idiota para de perder meu
tempo discutindo com idiotas que querem me rebaixar ao nível deles.
Notas:
(186) Outrora
ele seria chamado de herético. Felizmente os tempos mudaram.
(187) No
original cordially – “cordialmente”. Também pode ter o mesmo sentido que em
português, mas, como
o Oxford Advanced Learner’s Dictionary registra outro
uso – very much,
principalmente verbos que Indicam rejeição – resolvi adaptar a expressão para
outra equivalente em português.
(188) Via
pública principal de Constantinopla à época de Justiniano. Começava perto da
catedral de Hagia Sofia, passava pelos foros de Constantino, Teodósio e Arcádia,
desembocando no Portão Dourado da Muralha de Teodósio.
(189) Cf.
Procópio, Guerras,
Livro VII, cap. XXXI.
(190) Certa vez
achei estranhíssimo alguém ficar constrangido por ter de usar um texto virtual
de História Secreta, se ao mesmo tempo seu próprio artigo também era uma fonte
virtual. Mesmo que a página que usou deixasse de existir, o texto de
História Secreta – por ser um clássico - permaneceria em algum outro portal
ou mesmo
(191) É engraçado, por exemplo, ver que outros
espiritualistas, interessados
“Deve-se
admitir que (...) o favorecimento imperial não era ganho pelo discurso
sincero; contudo temos diante de nós um homem que não podia se obliterar o
bastante para bancar o abjeto bajulador sempre; e deu-nos, também, o
reverso desse brilhante retrato (em) Anecdota ou
História
Secreta. Aqui ele se liberta de todas as restrições de respeito ou
medo e registra sem escrúpulos tudo que fora levado a suprimir ou atenuar
Langley,
Noel; Edgar
Cayce on the Reincarnation, Papaerback Library, 1969, cap. XI, p.
189 |
Compare esse texto com o trazido pela edição portuguesa da
biografia de Teodora feita por Franzero. É engraçado ver a citação de um
espiritualista contradizendo a de outro.
(192) Sugiro a leitura da história de Machado de Assis
chamada “Quem conta um conto”, publicada em sua coletânea “Histórias sem Data”.
Quem quiser uma versão de internet, aqui um portal que a
contém. É a curiosa investigação feita por certo cidadão na busca de
um boato envolvendo sua sobrinha, onde se vê, passo a passo, como uma
maledicência se origina a partir de um comentário inocente.
(193) O filósofo Arthur Schopenhauer, em seu livro
“A Arte de Ter
Razão” (ou Dialética
Erística e ainda, na edição comentada por O. de Carvalho,
Como Vencer um
Debate sem Precisar Ter Razão), descreveu uma série de estratagemas falaciosos a serem
usados em debates e que dariam a seu usuário o poder de passar à plateia a
impressão de ser mais competente que o adversário, independentemente da asneira
que propusesse. Na verdade, Schopenhauer não defendia a desonestidade, como fica
claro ao fim do livro, mas resolveu criar uma espécie de guia às avessas em tom
irônico, justamente por estar cansado de ver tanto mau uso da retórica. No
estratagema XXX - Argumentum ad
verecundiam (argumento ao respeito, à autoridade) – aparece um
comentário que cai como uma luva aqui:
O que se
chama de opinião geral reduz-se, para sermos precisos, à opinião de duas
ou três pessoas; e ficaríamos convencidos disto se pudéssemos ver a
maneira como nasce tal opinião universalmente válida. Então descobriríamos
que, num primeiro momento, foram dois ou três que pela primeira vez as
assumiram e apresentaram ou afirmaram e que os outros foram tão
benevolentes com eles que acreditaram que as haviam examinado a fundo;
prejulgando a competência destes, outros aceitaram igualmente essa opinião
e nestes acreditaram por sua vez muitos outros a quem a preguiça mental
impelia a crer de um golpe antes que tivessem o trabalho de examinar as
coisas com rigor. Assim crescem dia após dia o número de tais seguidores
preguiçosos e crédulos. De fato,
uma vez que a opinião tinha um bom número de vozes que a aceitavam, os que
vieram depois supuseram que só podia ter tantos seguidores pelo peso
concludente de seus argumentos. Os demais, para não passar por espíritos
inquietos que se rebelam contra opiniões universalmente admitidas e por
sabichões que quisessem ser mais espertos que o mundo inteiro, foram
obrigados a admitir o que todo mundo já aceitava. Neste
ponto, a concordância torna-se uma obrigação. E, de agora em diante, os
poucos que forem capazes de julgar por si mesmos se calarão, e só poderão
falar aqueles que, totalmente incapazes de ter uma opinião e juízos
próprios, sejam o eco das opiniões alheias. E estes, ademais, são os mais
apaixonados e intransigentes defensores dessas opiniões. Pois estes, na
verdade, odeiam aquele que pensa de modo diferente, não tanto por terem
opinião diversa daquela que afirma, quanto pela audácia de querer julgar
pó si mesmo, coisas que ele nunca poderão fazer, sendo por dentro
conscientes disto. Em suma,
são muito poucos os que podem pensar, mas todos querem ter opiniões. E que
outra coisa lhes resta senão tomá-las de outros no lugar de formá-las por conta
própria? E, dado que isto é o que se sucede, que pode valer a voz de
centenas de milhões de pessoas? Tanto, por exemplo, quanto um fato
histórico que se encontre em cem historiadores, quando se constata que
todos se copiaram uns aos outros, com o que, enfim, tudo se reduz a um só
testemunho. (Segundo Bayle,
Pensées sus les Comètes, vol. I,
p. 10.) Dico ego, tu dicis, se denique dixit et ille; Dictaque post toties, nil nisi dicta
vides. (“Eu
digo, tu dizes e, no fim, o diz também ele; depois de dar-lhe tantas
voltas, ninguém mais vê aquilo que se disse.”) |
Ah! Dizem que
Schopenhauer era reencarnacionista.
(194) Segundo a
Enciclopédia
Barsa, verbete sobre Plotino, vol. XI, 1999:
O
pensamento de Plotino foi em síntese uma reelaboração do idealismo de
Platão, com notável influência de concepções cosmogônicas de Aristóteles.
Seu propósito fundamental era estabelecer a relação entre o princípio
espiritual da realidade, o Uno, e as coisas engendradas por ele. Segundo o
sistema de Plotino, o Uno incognoscível e transcendente a qualquer
definição, seria a origem de tudo o que existe, por meio de uma sucessão
de emanações. A primeira deles é o Nous – o intelecto ou princípio ordenador – e a
segunda é o Espírito ou Alma do Mundo, da qual participam as almas
individuais aprisionadas na matéria, ordem inferior da realidade. A função
primordial da filosofia seria elevar a alma, por meio do entendimento, em
direção ao divino, processo do qual decorreria, em última instância, a
fusão mística com o Uno. A matéria pura é o mal e o Uno identifica-se ao
bem. |
É interessante
a similaridade entre esse retorno ao Uno e o final quase panteísta da Apokatastasis de
Orígenes. Óbvio que, mesmo tendo se inspirado em seu contemporâneo Plotino,
Orígenes teve de adaptar alguma coisa ao gosto cristão. Por exemplo, Deus (seu
equivalente ao Uno) não criou coisas más e, por isso, a matéria não é ruim em
essência, mas um instrumento para possibilitar esse retorno.
(195) E nisso
se inclui a citação que Jerônimo faz na cara a Ávito, erroneamente acusada de
ser pitagórica e platônica:
E de novo: “mas talvez este
grosseiro e terreno corpo deva ser descrito como névoa e escuridão; pois
ao fim deste mundo e quando for necessário passar
ao outro, o similar à escuridão levará ao similar nascimento físico
[ou fisicamente nascido]”. Falando assim ele claramente pleiteia pela
transmigração das almas como ensinado por Pitágoras e Platão. [grifo
meu] |
E que, na
verdade, é inter-eras.
(196) J.R.
Chaves não faz tal declaração, mas,
(197) Seita
muçulmana, presente em partes da Síria e do Líbano, que acredita num sistema
reencarnacionista sem karma: ao longo dos tempos cada alma é submetida a
inúmeras experiências diferentes, não havendo relação de “causa e efeito” entre
elas. Na consumação final, é feito um balanço das ações feitas em sua existência
total, o que decidirá se o destino dela será o paraíso ou o inferno.
(198) A
principal diferença entre as duas maiores correntes do islamismo – sunitas e
xiitas – é sobre como deveria ser a liderança da comunidade após a morte do
profeta Maomé. Os primeiros defendiam a escolha de líderes entre os membros da
comunidade, ao passo que os últimos defendem que sucessão sempre pertença aos
descendentes da união entre Ali e a filha de Maomé chamada Fátima. Perseguidos
desde o princípio pela maioria sunita, o movimento xiita ganhou um perfil
radical e uma de suas mais extremadas facções era a dos ismaelitas, crentes na
figura do imã, um infalível e inspirado descendente de Ali e Fátima, por
intermédio de Ismael, a ser obedecido sem objeção. No século X, o poder no Egito
foi tomado por uma dinastia que alegava esse parentesco e estabeleceu o califado
fatímida (de Fátima) do Cairo, para rivalizar com o califado sunita de Bagdá.
No tempo das
cruzadas, o império fatímida entrou em declínio e foi finalmente tomado por
lideranças sunitas oriundas da Síria. Pela mesma época, um grupo de ismaelitas
da Pérsia, sob o comando de Hasan Ibn al-Sabbah, estabeleceu-se nas montanhas da
Síria e do Líbano, onde montou um complexo de fortalezas que serviu de base para
suas campanhas de conversão e ataques aos sunitas, visando restaurar o reinado
fatímida. Seu principal método era o terrorismo político: membros da seita se
infiltravam entre a população próxima ao alvo e, quando sua comitiva passava,
tentavam matá-lo e também todos os que estivessem ao redor. O nome de
“assassino” (do árabe hashshashîn), atribuído a um fiel da seita, vem de seu
hábito de tomar haxixe (hashish) para praticar um atentado em estado alterado
e, assim, mais imune ao medo. A seita foi extinta no século XIII, com a ascensão
de uma casta de guerreiros-escravos que tomou o poder do Egito à Síria – os
mamelucos - e também destruiu os últimos redutos cruzados.
Uma
curiosidade: a palavra “assassino” chegou ao ocidente por via italiana e, até
hoje, no idioma inglês (assassin) se refere a
quem atenta contra a vida de pessoas importantes.
(199) Seita
gnóstica que atribuía à serpente (do grego ophis) a missão de
ter revelado o conhecimento para Adão e Eva, coisa que o demiurgo queria
ocultar.
(200) Ordem
militar da Igreja Católica cujos membros também tinham status de monges.
Sua principal missão era guardar os lugares santos nas terras cruzadas e zelar
pelo bem-estar dos peregrinos. Também foram usados como exército regular no
combate a tropas muçulmanas. Por desenvolver sofisticada rede de abastecimento
para suas tropas no Levante, a Ordem dos Cavaleiros Templários despertou a
cobiça do rei francês Felipe IV e, principalmente após a perda de prestígio com
o fim do ciclo das cruzadas, foi alvo de uma campanha difamatória promovida por
ele, envolvendo acusações de sodomia, feitiçaria e prática secreta do islamismo.
A ordem foi extinta, seu líderes queimados e seus bens confiscados. Em tempos
modernos, desenvolveu-se toda uma mística em torno do destino dos templários,
com direito a teorias especulativas alegando a existência de remanescentes,
responsáveis por guardar o Santo Graal ou o tesouro de Salomão.
Por outro lado,
sua ordem-irmã – os Hospitalários – sobreviveu à Idade Média, em parte por ter
uma base segura em na ilha de Rode e, depois, em Malta, onde poderiam se
refugiar. Além do mais, própria sorte dos templários os convenceu da importância
de manterem um corpo de advogados profissionais para defender seus interesses,
coisa com que seus rústicos irmãos não puderam contar. Com o tempo, o Hospital
perdeu seu caráter militar e essa transição suave fez com ela praticamente não
tivesse mítica alguma junto ao grande público leigo.
(201)
“Continentais” no sentido de “pertencentes à Europa continental”, para
diferenciar da maçonaria do arquipélago britânico.
(202) A de
Geoffrey Arthur Williamson, por
exemplo.
(203) Procópio diz: “Além disso, a punição dos samaritanos e dos chamados
heréticos encheu o Império Romano com massacres”. Ao que tudo indica, os
massacres não estariam localizados em um lugar específico do Oriente e poderia
envolver diversos grupos de heréticos, como arianos, monofisistas, nestorianos,
etc.
(204) Não está claro se esse número (cem mil mortos) se
refere somente aos rebeldes ou também aos não combatentes mortos por ambos os
lados. Malala, no livro XVIII de sua Crônica, falha em vinte mil mortos em combate e número
igual vendidos como escravos, crianças entre esses. Há, também, uma quantidade
indeterminada de refugiados nas montanhas que foram mortos posteriormente. São
mencionadas chacinas de cristãos pelos samaritanos, tanto por Malala quanto por
Cirilo de Citópolis (A Vida de Saba, cap. LXX), mas seu total de
vítimas também é desconhecido.
(205) Embora a narrativa de A Vida de Saba mostre monges origenistas inflamando populares contra seus pares ortodoxos, a maior parte da narrativa mostra a segunda crise como uma série de “intrigas palacianas”, com a maior parte do origenismo se difundindo dentro do monacato e seus adeptos a ocupar ou influenciar postos preeminentes. O rápido declínio do movimento após um cisma interno e a posterior destruição de suas bases sugere que ele não fincara raízes muito profundas na população palestina. Do contrário, daria tanto trabalho como foi com o arianismo dois séculos antes ou estava sendo com o monofisismo contemporâneo seu. Cirilo de Citópolis fala de uma expulsão dos monges do Nova Laura, apenas. O silêncio dos demais cronistas quanto ao destino dos adeptos do origenismo após o concílio pode sugerir que talvez não fossem relevantes quando comparados com outras “heresias”. João de Éfeso, por exemplo, relatou em pormenores o ataque aos maniqueus feito por Justiniano:
Nesse
tempo, descobriram maniqueus em Constantinopla e foram queimados. Havia
àquela época um grande número de pessoas partidárias do erro dos maniqueus.
Costumavam se encontrar em casas e ouvir os mistérios daquela doutrina
impura. Quando foram presos, foram levados à presença do imperador, que
tinha a esperança de convertê-los. Discutiu com eles, mas não pôde
convencê-los. Com obstinação satânica, gritaram sem medo que estavam
prontos para encarar o suplício pela religião de Manes e sofrer cada
tortura. O
imperador ordenou que seu desejo fosse realizado. Foram queimados no mar
para que pudessem ser sepultados nas ondas e seus bens foram confiscados.
Entre eles havia mulheres ilustres, nobres e senadores. E assim muitos
maniqueus pereceram pelo fogo e não quiseram deixar seus erros. Sobre os
pagãos que descobertos em Constantinopla sob o imperador Justiniano. João de
Éfeso, extrato de História Eclesiástica, vol. II, contido em [Nau,
p. 481] |
A data estimada
para o episódio acima é de 545 d.C. Boa parte dos “hereges e pagãos” mortos por
Justiniano deve vir de ações desse tipo, em várias partes do império. O
maniqueísmo, em particular, já estava na mira imperial desde a edição do código
de Justiniano, que tornou ilegal a própria existência de um maniqueu. Por outro
lado, o ano seguinte marcaria o apogeu do poder origenista na Palestina, mesmo
após o edito de 543 e mais de dez anos depois de Abba Saba ter alertado
Justiniano. Ao que parece, o origenismo não estava entre suas prioridades. E a
execução das ordens do V Concílio, como relata Cirilo, ficou a cargo do
Patriarca de Jerusalém. Em suma, a segunda crise origenista foi um problema
local levado ao arbítrio do imperador e, dado seu aval, solucionado no mesmo
âmbito onde surgiu.
Se for para ser
“advogado do diabo”, deve-se alertar que nem sempre a força era usada por
Justiniano. O próprio João de Éfeso relata um trabalho missionário feito por ele
com a ajuda do imperador, e que resultou na conversão de setenta mil pagãos
[Nau, p. 482]. Óbvio que isso não funcionou com credos que possuíam doutrina
mais organizada, como foi o caso dos maniqueus e samaritanos.
A intolerância
de Justiniano era generalizada e um dissidente que abraçasse mais de uma heresia
poderia ser afetado de diversas formas. Por exemplo, um acéfalo origenista (como
Ascidas) seria vítima de perseguição ao monofisismo. Sem contar que certas
fontes são suspeitas de tender ao exagero, como Procópio. De qualquer forma, ao
especular sobre os mortos na segunda crise origenistas com as fontes que temos,
corre-se o risco de computar indevidamente os mortos de outras religiões e
heresias.
(206) Na
verdade, esse conselho é válido a qualquer grupo religioso, político ou
familiar.
(207) Paul
Koetschau foi o mesmo responsável pela edição alemã de De Principiis em
que se baseou a tradução em língua inglesa de Butterworth. Uma característica do
texto de Koetschau foi a inclusão das citações feitas por adversários do
origenismo em detrimento ao texto de Rufino. Apesar de algumas inconveniências
dessa atitude (cf. [Rombs]), ela pelo menos nos garante que Koetschau não estava
interessado
(208) É
interessante ver o uso do artigo definido nesses casos. Em ta?t?? t?? ?????, um artigo é
usado junto a um demonstrativo, uma construção gramatical que não existe em
português (nem em inglês), logo devendo ser adaptada. Talvez um dia eu escreva
um artigo falando dessas sutilezas do artigo grego, claro que sem chances de ser
tão exaustivo no assunto quanto A Doutrina do Artigo, de Middleton.
(209) Nesse
ponto, Chadwick oferece a nota nº 7 ao rodapé da página 420, contendo uma
citação de outra obra de Orígenes:
Cf.
Origen, ap. Method. de Ressurrectione I, 22, 4-5 “Pois é necessário
para alma que está existindo em lugares corpóreos usar corpos apropriados
a tais lugares. Da mesma forma, caso nos tornássemos seres aquáticos e
tivéssemos de viver no mar, sem dúvida seria necessário para nós adotar um
estado diferente, similar ao dos peixes, então se iremos herdar o reino do
céu e existir em lugares superiores, é essencial para nós usarmos
corpos espirituais. Isso não significa que nosso corpo anterior
desapareça, embora ele venha a mudar para uma condição mais gloriosa.” |
(210) José
Carlos Leal, em seu livro Reencarnação, Ed. Leon Denis, 2009, p. 58, faz menção
justamente a esses dois trechos de Contra Celso a partir do livro de Santesson. Sua falha
seria justamente confiar demais e, por isso, passar boatos adiante. Pergunto-me
quantos autores que citam Orígenes realmente têm seus livros na prateleira.
(211) Parece
que Mário Cavalcanti de Mello atribui essa citação ao capítulo XVIII, em vez do
anterior. Como o cito de segunda mão, deixo essa informação por confirmar.
(212) Para quem
não sabe, são estes os axiomas:
1.
Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre
si;
2.
Se quantidades iguais são adicionadas a iguais, os totais
são iguais;
3.
Se quantidades iguais são subtraídas de iguais, os restos
são iguais;
4.
Coisas que coincidem uma com a outra são iguais;
5.
O todo é maior do que qualquer de suas partes.
E os
postulados:
1.
Uma linha reta pode ser traçada de um ponto a outro,
escolhidos à vontade;
2.
Uma linha reta pode ser prolongada indefinidamente;
3.
Um círculo pode ser traçado com centro e raio
arbitrários;
4.
Todos os ângulos retos são iguais;
5.
Em um mesmo plano, por um ponto dado, pode-se traçar uma
reta paralela a outra reta dada e somente uma (redação moderna do postulado).
Justamente por
não ser tão intuitivo quanto os demais, o quinto postulado foi alvo de muita
discussão e tentativas de prová-lo a partir dos anteriores. Até que no século
XIX, alguns matemáticos tiveram a ideia de substituí-lo por outro que não fosse
equivalente, abrindo caminho para novas geometrias, tão válidas quanto a
tradicional.
(213) Na
geometria esférica (ou de Reimann), o quinto postulado foi estabelecido de forma
a não haver retas paralelas a uma reta dada. Vale lembrar que, nessa geometria,
uma reta é um “círculo máximo” sobre essa esfera. Assim, lembrando as aulas de
geografia, todos os meridianos seriam retas, mas, dos paralelos, apenas o
equador seria.
(214) Para uma
apresentação geral, sugiro o livro Convite às Geometrias não-Euclidianas, de Lázaro
Coutinho, Interciência, 2001.
(215) Lembrando
que o cristianismo era uma seita apocalíptica em sua infância. Orígenes não
desconsiderava essa faceta de seu credo.
(216) Talvez o
antissemitismo até aumentasse por não haver respeito algum à tradição do Antigo
Testamento, já que Marcião detestava tudo que era judeu. Entretanto o mais
provável, como afirma Ehman [2003, cap. V, p. 111], é que isso levaria a uma
negligência benigna, com judeus e sua religião sendo considerados sem relevância
e, certamente, sem chances de competir com os cristãos. “A história do
antissemitismo poderia ter sido evitada, ironicamente, por uma religião
antijudaica”.
(217) O “homem
de Piltdown” foi um suposto hominídeo cujos fósseis foram encontrados em 1913
numa vila inglesa que lhe deu o nome. A reconstituição do crânio revelava uma
calota craniana próxima à atual associada a uma mandíbula ainda simiesca. Desde
cedo o homem de Piltdown foi um “corpo estranho” quando comparado com os
hominídeos de outras partes do mundo, que revelavam um padrão oposto - crânios
ainda simiescos junto a mandíbulas mais humanizadas – deixaram muitos
paleontólogos posteriores com “uma pulga atrás da orelha”. A fraude foi
desmascarada em 1953, quando os fragmentos foram finalmente liberados pelo Museu
Britânico para análise independente e submetidos à datação radiológica, sendo os
originários de humanos e símios modernos, escurecidos quimicamente. A autoria da
fraude nunca foi determinada, embora haja uma lista de suspeitos que vai desde o
autor da descoberta – Charles Dawson – ao zelador de geologia do Museu Britânico
- Arthur Smith Woodward - nenhuma das evidências contra cada um deles chega a
ser conclusiva.
O homem de
Piltdown já é página virada na ciência e ninguém o defende hoje
Para saber mais
do assunto, sugiro o livro de Kenneth L. Feder Frauds, Myths, and Mysteries – Science and Pseudoscience in
Archeology, McGraw Hill, 4ª ed., cap.
IV.
(218) Muito
instrutiva a leitura do capítulo III do livro As Nove Ideias mais
Malucas da Ciência, de Robert Ehrlich, publicado no Brasil pela Prestígio
Editorial.
(219) Dois
termos sem tradução específica para o português. “Misquotation”, grosso modo,
pode significar “má citação”, “citação equivocada” ou, criando um neologismo,
“descontextualização”. Ocorre quando a citação feita de um autor omite frases
anteriores ou subsequentes que mudam todo o sentido. A omissão de frases
internas também pode causar o mesmo efeito com o uso indevido de lacunas, nem
sempre assinaladas por reticências, para omitir comentários cruciais para
entendimento correto.
Um “cherry picking”
(“seleção/coleta de cerejas“) consiste na escolha de argumentos ou dados de um
autor que lhe sejam úteis e descarte daqueles que não lhe convêm. A misquotation pode ser considerada
um caso particular dele.
(220) Sugiro o
livro de Sidwell para o latim medieval constante em na bibliografia e, para o
grego, A Grammar of the Greek New Testment – In the Light of
Historical Research, de A.T. Robertson.
(221) Cf. J.R.
Chaves, A
Reencarnação na Bíblia e na Ciência, 7ª ed., ebm, cap.VI, p. 203.
Isso [a
mutilação dos genitais], sem dúvida, foi um erro, nem tanto, talvez para a
mentalidade da época. Mas de qualquer maneira, é um exemplo de seu elevado
sentimento de religiosidade. |
Conforme relata
Eusébio de Cesareia, (História Eclesiástica, livro VI, cap. VIII), Orígenes
teria levado muito ao pé da letra Mt 19:12 - “Há eunucos que se castrara a sim mesmos pelo reino dos
céus”. Parece que o próprio mestre do método alegórico não estava imune a
coisas desse tipo. É muito questionável se isso era aceitável à mentalidade da
época, ao menos na comunidade cristã, pois o bispo de Alexandria, Demétrio,
invejoso dos êxitos de Orígenes e irritado por ele ter sido ordenado em Cesareia
sem seu consentimento, armou um escândalo contra Orígenes, valendo-se justamente
da castração voluntária.
(222) A falácia
do espantalho (“straw man”) consiste em criar uma ideia mais fraca e
fácil de refutar, muitas vezes caricatural, e atribuí-la ao adversário. Seu nome
vem do hábito que se tinha de criar espantalhos fazendo as vezes de inimigos
para o treinamento de soldados. Um inimigo postiço e fácil de atacar, pois não
tem como reagir.
20 - Epílogo – O Fim de Dois Sonhos
O II Concílio
de Constantinopla pareceu, à primeira vista, ser uma vitória da Igreja de
Constantinopla. Havia dobrado um papa, colocado a cristandade oriental no bolso
e agora o patriarcado da capital possuía uma cristologia distintiva, explicitada
no oitavo anátema:
Se alguém
usa a expressão “duas naturezas,” confessando que uma união foi feita da
Divindade e da humanidade ou a expressão “a natureza feita carne de Deus,
o Verbo” e então não entenda tais expressões como os santos Padres
entendiam, a saber: que entre a natureza humana e a divina havia uma união
hipostática, da qual há um Cristo; mas dessas expressões tentar introduzir
uma natureza ou substância [feita da mistura] da Divindade e da humanidade
de Cristo, que seja anátema. Pois ao ensinar que o unigênito Verbo está
unido hipostaticamente à humanidade no entendemos que foi feita uma
confusão de naturezas, mas, em vez disso, cada [natureza] permanecendo o
que era, entendemos que o Verbo estava unido à carne. Assim, há um Cristo,
tanto Deus e homem, consubstancial com o Pai ao tocar sua Divindade e
consubstancial conosco ao tocar sua humanidade. Portanto, sejam igualmente
condenados e anatematizados pela Igreja de Deus quem dividir ou
particionar o mistério da divina revelação de Cristo ou quem introduzir
confusão em tal mistério. (223) |
O V Concílio
por um lado eliminava os resquícios de nestorianismo de Calcedônia sacrificando
três teólogos caros ao ocidente e, pelo outro, repreendia a confusão de
“hipóstases” (pessoas da Trindade) dos monofisistas da Igreja oriental, apesar
de conceder o uso da expressão “união hipostática” com a humanidade. Até foi
ofertada mais uma concessão aos últimos no décimo anátema:
Se alguém
não confessar que nosso Senhor Jesus Cristo, que foi crucificado na carne,
é verdadeiro Deus e o Senhor da Glória e um da Santa Trindade: que seja
anátema. (224) |
O que
assegurava que “um da Trindade sofreu na carne”, como pregava a fórmula de
conciliação teopasquita (225), embora, mesmo assim, o grande feito do Concílio
foi conseguir desagradar a todos. Os latinos relutaram a aceitá-lo e, inclusive,
as dioceses de Milão e da Aquileia entraram em cisma, tendo a última permanecido
em rompimento até o começo do século VII. Por sua vez, os monofisistas do
oriente não se animaram em discutir a fórmula cristológica expressa acima.
Talvez se dispusessem a fazê-lo com Anastácio ou Zenão, mas não com Justiniano,
em quem já não confiavam e nem tinham mais o intermédio da falecida Teodora. O
Henoticão dos antigos imperadores, pelo menos, procurava evitar dissensão, em
vez de impor dogmas. Foi dado, então, mais um passo em direção à ruptura
definitiva: os monofisistas começaram a se organizar em uma hierarquia paralela
(226).
Na política,
Justiniano sofreu sérios reveses que ameaçaram boa parte das conquistas dos
primeiros anos de governo. A guerra na Itália, por exemplo, estendeu-se por
longos anos e deixou toda a província arrasada. Roma, que ainda possuía algo de
sua glória imperial, ficou
Justiniano
faleceu em 565 d.C., desgastado, impopular e com um império humanamente
exaurido. Talvez pudesse terminar melhor seu governo caso seguisse a linha
defendida por Teodora, dando mais enfoque às cultas e prósperas províncias do
oriente e, claro, sendo mais tolerante com os monofisistas. Mas ela morrera na
metade de seu reinado e, mesmo que tivesse sobrevivido ao marido, sua influência
teria limites. Ela não era uma Cleópatra, uma Catarina da Rússia ou uma
Elizabeth I – seu poder não lhe era inerente. O paralelo mais próximo que pode
ser feito a ela é a figura de Evita Perón: influente, sim, porém subalterna. Por
outro lado, graças a sua intransigência, Justiniano pode ser considerado,
dependendo do critério que se utilizar, como o “último imperador romano”. De
fato, foi um dos últimos a ter o latim como língua materna e a ter realmente
alguma influência decisiva no Ocidente. Seus sucessores abandonaram as ambições
de um império universal e tentavam preservar a todo custo seu legado (227).
Mesmo mais
modesta, não era de forma alguma tarefa fácil. Três anos após sua morte, uma
nova tribo bárbara – os lombardos – invadiu uma mal defendida Itália e deixou
Constantinopla apenas com uma faixa central, que ia de Roma a Ravena, e o
extremo sul da península. Os visigodos, por sua vez, tentavam reduzir a presença
do Império no seu litoral sul. O grande desafio do império, porém, veio com o
início do século VII, com o recrudescimento da ameaça parta.
Aproveitando-se
do fim da linhagem de Justiniano com a deposição e assassinato do imperador
Maurício e sua família (582-602), Cosroe II rompeu a tênue paz entre os dois
impérios e lançou avassaladora campanha de conquista do Mediterrâneo Oriental. O
usurpador, Focas, revelou-se um inepto a desperdiçar recursos em perseguições
religiosas enquanto os persas tomavam a Síria, a Palestina, o Egito e, por fim,
avançavam pela Anatólia rumo a Constantinopla. O próprio histórico de
intolerância religiosa, por sinal, contribuiu para que judeus e remanescentes
pagãos considerassem os persas como libertadores, uma espécie de novo Ciro a
destruir a sucessora de Babilônia. Cristãos foram chacinados em Jerusalém e sua
mais valorosa relíquia – a Verdadeira Cruz foi levada como troféu.
A reação veio
da província norte-africana reconquistada por Justiniano, de onde Heráclides, o
exarca (vice-rei) local, reuniu exército e frota grandes o bastante para tomar a
capital. Com sua morte pouco depois, foi seu homônimo filho que levou adiante a
tarefa de reorganizar o claudicante império preparar o contra-ataque, feito, por
sinal, com um louvor digno dos antigos imperadores: Heráclio retomou quase todos
os territórios perdidos – estando pessoalmente nos campos de batalha – e fez uma
entrada triunfal em Jerusalém para devolver a Verdadeira Cruz.
A glória,
porém, foi breve. Enquanto se digladiavam, os dois impérios destruíram dois
estados-tampões – os reinos gassânida e lakhmida - que lhes serviam de linha
defensiva contra as incursões de tribos nômades do deserto arábico. Isso até não
teria gerado graves problemas se as tribos ainda estivessem desunidas e brigando
entre si, porém algo mudara radicalmente: elas agora estavam unidas pela
pregação de um recém-falecido profeta – Maomé – e altamente motivadas por seus
sucessores (califas) a expandir o domínio a nova religião chamada Islã, que
reunia alguns ingredientes do judaísmo e do cristianismo.
As hostes
árabes até não eram tão numerosas de início, por outro lado tiveram a vantagem
de pegar dois impérios combalidos por anos de guerras, além de saberem lutar no
deserto como ninguém. Com o exército do Império do Oriente parcialmente
desmobilizado e a Pérsia ainda por se recuperar devido a uma conflituosa crise
dinástica, o mundo assistiu a mais rápida expansão territorial e reorganização
política já feita desde Alexandre da Macedônia. A Síria caiu nas mãos dos árabes
em 636, junto com a Mesopotâmia (Iraque), seguida pela Palestina (637-40). A
conquista do Egito começou em 639 e a capital Alexandria caiu em 642, mesmo ano
em que as batalhas de Jalula e Nehavend selaram o destino da Pérsia, cujo último
rei foi morto em combate no ano de 651. O ímpeto da conquista islâmica diminuiu
um pouco na segunda metade do século VII, mas prosseguiria firme por toda costa
sul do Mediterrâneo e, no começo do século VIII, cruzaria o estreito de
Gibraltar para dominar a Espanha (711-4) e ameaçar o reino dos Francos (732 –
740). O lado oriental não foi menos bem sucedido, estendendo o domínio do
império até o rio Indo (710-3), no atual Paquistão.
Quando o
maremoto árabe inundava o território greco-romano, Heráclio já estava
envelhecido e adoentado para reagir com a veemência que teve contra os persas, o
que não significou que Constantinopla desistiria passivamente de suas
províncias. Tentaram-se duas malogradas expedições navais para a reconquista do
Egito em 645 e 654, além de um êxito temporário em deter a conquista do Magreb
(685 – 690). Os árabes contra-atacaram construindo sua própria frota e sitiaram
Constantinopla por três vezes no século VII (669, 673 e 677) e só a muito custo
foram repelidos. Embora a resistência tenha levantado o moral do Império, uma
coisa já era patente: os árabes vieram para ficar.
Apesar de
Constantinopla sempre ter ostentado o título de “capital do Império Romano”, a
segunda metade do século VII assinalou a transição definitiva da Antiguidade
tardia para a Idade Média na metade oriental do Império. Não só por
transformações em suas ambições políticas passou Império do Oriente, mas também
por culturais, que realçaram cada vez mais seu caráter helênico. Heráclio
instituiu o grego como idioma oficial em 630 e, por fim, adotou o título de Basileu (rei, em grego) em substituição ao latino Augusto. Com a perda das províncias latinas, coptas e
siríacas, o poder de Constantinopla ficou restrito praticamente aos Bálcãs e à
península da Anatólia, fazendo mais jus ao nome de Império Bizantino (i.e.,
centrado na região de Bizâncio, o antigo sítio da capital), em vez de Romano.
Nenhum esforço amplo foi feito para reverter as perdas territoriais e,
excetuando alguns períodos de reerguimento – como o reinado de Basílio II (976 –
1025) –, o Império Bizantino permaneceu a maior parte do tempo na defensiva e
perdendo territórios para diversos invasores, até Constantinopla ser tomada
pelos turcos otomanos em 1453. O sonho de Justiniano de um império romano,
cristão, ortodoxo e universal, contudo, acabara oitocentos anos antes.
Para os tão
queridos monofisistas de Teodora, a conquista árabe também foi um divisor de
águas. De início, pareceu ser vantajoso estar livre das diretrizes de
Constantinopla e o jugo árabe era bem leve quando comparado com o dos antigos
senhores: podiam praticar sua religião contanto que pagassem um imposto
específico, em geral mais leve que as antigas taxas de Constantinopla. A segunda
metade do século VII foi afortunada para o monofisismo, com a conversão de
núcleos calcedonianos e a expansão da autoridade de patriarcas monofisistas
(228). Só de 700 d.C. em diante é que as desvantagens da dominação estrangeira
ficaram aparentes. Ao contrário do confronto constante dos grego-romanos com os
dissidentes, os árabes realizaram um gradual e bem efetivo processo de
assimilação dos conquistados. A conversão ao islamismo era fácil e, além de
liberar de impostos, dava um status de primeira
classe ao convertido; levas de imigrantes difundiram o idioma árabe, que
substituiu progressivamente o siríaco e reduziu o copta a uma língua litúrgica.
Era essa religião dos dominantes, de teologia mais simples e redigida em um
vocabulário estranho a cuja expansão os teólogos monofisistas não conseguiam
resistir. Era o fim do sonho de Teodora, pois “ao
aceitar os 'ismaelitas' como instrumento de Deus para punir os calcedonianos, os
monofisista não compraram sua liberdade, mas sua tumba” (229).
Não só de
sonhos frustrados gostaria eu de falar, mas também de um pesadelo que chegava ao
fim. Desde a conquista lombarda em
Assim,
gradualmente a Igreja Católica fez as pazes com Orígenes ao colocar uma pedra em
cima de suas ideias mais heterodoxas. Seu verbete na Catholic Encyclopedia (publicada em 1913), por exemplo,
é francamente simpático a ele, guardando, claro, ressalvas. Na segunda metade do
século XX, Orígenes encontrou um importante advogado no frade Henri Crouzel,
cuja obra o torna um genuíno “Pânfilo moderno” a defender o caráter ortodoxo de
Orígenes e deixar o que produziu de controverso para as indefinições
doutrinárias de sua época. Por fim, na audiência geral de 25 de abril de 2007, o
papa Bento XVI dedicou seu catecismo a Orígenes e, entre outros elogios, teceu
que:
[Orígenes] consegue promover de forma eficaz a
‘leitura cristã’ do Antigo Testamento, respondendo brilhantemente ao
desafio dos hereges, principalmente os gnósticos e marcionitas, que
opunham entre si os dois Testamentos, chegavam ao ponto de rejeitar o
Antigo (234). |
Pode-se dizer,
então, que o catolicismo reproduz hoje a atitude de Jerônimo ao aceitar o
comentarista e apologista, embora mantenha um pé atrás em relação ao teólogo. A
diferença é ele não vive mais os conflitos íntimos do tradutor da Vulgata.
Notas:
(223) Extraído
de [Percival, The Fifth Council - The
Capitula of the Council].
(224) “Um da Trindade sofreu” – fórmula teológica
usada por
monges por monges citas (i.e., naturais da Cítia - uma província na foz do
Danúbio) em 519 para se opor ao nestorianismo. Em 533, Justiniano a adaptou para
“Um da Trindade sofreu na carne”, o que além continuar antinestoriano, era
nebuloso o bastante para ser aceito tanto por calcedonianos como por
monofisistas, pois não definia exatamente qual era a relação entre o Verbo e a
carne. Era uma tentativa de encontrar um substituto para o Henoticão de Zenão,
que fora suprimido para agradar Roma.
(225) Extraído de
[Percival, The Fifth Council - The
Capitula of the Council].
(226) Cf. [Frend, cap. VII, pp. 282-3]
(227) Para saber mais sobre o declínio do Império Romano do
Oriente após Justiniano e começo da ascensão árabe, recomendo ler
[História das
Civilizações, vol. II, pp. 48-50 e 68-73], [Angold, cap. III, pp. 49-51], [Lewis, cap. III, pp
59-88 e cap. IV, pp. 106-9] e [Frend, cap. IX e epílogo].
(228) É tradicional a visão de que os monofisistas
encararam os árabes como libertadores, mas também há outra opinião:
Os bizantinos perderam a Síria, a Palestina e o Egito
com igual rapidez. Não era muito surpreendente, considerando-se que no início do
século a Síria e a Palestina haviam estado em mãos persas durante quase
vinte anos, e o Egito, durante dez. A restauração da administração
bizantina ainda estava apenas num estágio preliminar quando os exércitos
do Islã atacaram. A perda das províncias é muitas vezes atribuída à
deslealdade das comunidades cristãs, que, segundo consta, viram os árabes
como libertadores do jugo bizantino. Isso é bobagem. Essas comunidades
simplesmente seguiam o que se tornara prática tradicional nas guerras com
os persas: era melhor render-se e esperar o desfecho da guerra. Os
bizantinos sempre haviam sido vitoriosos, mas não dessa vez. [Angold, cap. III, p. 50] |
(229) [Frend,
epílogo, p. 359].
(230) [Backus,
cap. XIV, pp. 567-9].
(231) [Backus,
cap. XII, p. 499].
(232) [Backus,
cap. XV, pp. 615-620] e [Backus, cap. XVII, pp. 687-8].
(233) [Backus,
cap. XVIII, pp. 709-710]
(234) Catholic News Agency, acessado em 01/08/2010.
Este artigo
cresceu muito além do esperado. De início, almejava apenas traduzir as partes de
A Vida de Saba correspondentes à segunda crise
origenista e dar um breve complemento a ela. Esse complemento, porém, ganhou
cada vez mais corpo até ficar praticamente mais importante que o texto de
abertura. Não houve outro jeito, pois o tema Origenismo revelou-se tão complexo
que qualquer tentativa de explanação sucinta corria o risco de cair em erros
similares aos que tanto critiquei e, além disso, não é possível entender a
própria evolução que a memória de Orígenes teve sem descrever o pano de fundo:
as idas e vindas na consolidação da ortodoxia cristã.
Nos três anos
em que me dediquei a este texto, vi ao longe mudanças em duas personagens que me
motivaram a começar a tarefa, ainda que involuntariamente. No primeiro caso,
José Reis Chaves lançou no final de 2009 o livro “A Bíblia e o Espiritismo”, que
é uma coletânea de artigos seus no jornal O Tempo relacionados de alguma forma
ao tema-título. Sinceramente, fiquei honrado em saber que o artigo “Críticas sem
Persuasão” - justamente a maior propaganda gratuita que já me deram - é logo o
primeiro. Vale assinalar que não é o artigo original postado na época, mas uma
versão com as correções de uma errata, que, por sinal, piorou as coisas. Não foi
à toa que fiquei contente: se Chaves concluiu dizendo que “as críticas desse site não persuadem ninguém” e ao
mesmo tempo me deu esse destaque, então, de algum jeito, eu tive importância,
ainda que não da forma mais producente.
Uma postura
distinta, mas não exatamente oposta, foi tomada por Paulo da Silva Neto
Sobrinho. Também profícuo articulista, Paulo Neto dedicara um artigo à questão
origenista “Reencarnação no Concílio de Constantinopla - Orígenes x Império
Bizantino”. Bem, na verdade, há três versões desse artigo circulando pelo veio
virtual. A primeira, de 2005, transcreve textos de autores que defendem uma
teoria conspiratória no século VI e não os questiona praticamente. A versão de
2007 se deu após o autor tomar ciência do pouco embasamento de alguns dos
autores que utilizara. Uma sirene de alarme foi acionada e artigo ganhou mais
extratos de autores espiritualistas, perdeu alguns trechos dúbios, e Paulo Neto
se dedicou um pouco mais à análise de evidências, em particular, à História Secreta, de Procópio. Foi essa a versão
destrinchada dois capítulos antes. A última mudança foi em 2010, e o estado
atual do artigo pode ser resumido a duas palavras: concessão e cautela. Algo da
primeira e um bocado da última. A historicidade do episódio de Teodora e as 500
prostitutas é vista com ressalvas, finalmente se reconhece que o “Orígenes
histórico” não corresponde ao “Orígenes idealizado” por muitos
espíritas/espiritualistas - embora o perfil do alexandrino apresentado ainda
deixe a desejar - e admite-se que há pouca evidência para a uma alegada multidão
de teólogos ortodoxos reencarnacionistas até o século VI. Sem dúvida, foi
mudança e tanto de postura, mas o autor ainda é um apologista espírita e tem de
cumprir esse papel. Talvez por isso não tenha esmiuçado os textos de outros
autores que traz, evitando, apenas, comprometer-se com eles. Botar para valer o
dedo em feridas seria pedir muito. O que mais chamou atenção, porém, foi ainda
ter se detido
Ambos os
autores acima possuem seus méritos intelectuais e arriscaria dizer que isso se
estenderia a outros membros do grupo apologético a que pertencem. Contudo,
justamente pelo seu compromisso assumido e, em parte, por reputações estarem
jogo, suas capacidades não são usadas plenamente. Um exemplo interessante de
situação similar foi dado pelo próprio Orígenes.
Numa das poucas
trocas de correspondências que chegaram até nós, preservada em Filocalia, Orígenes discutiu com Júlio Africano, um erudito cristão romano que lhe
escrevera questionando a autenticidade da história de Susana e os Anciãos, no livro de Daniel, que fora
objeto de um dos trabalhos de Orígenes. Júlio observa que, além de não pertencer
ao texto hebraico adotado pelos judeus do século III, a história possuía um
estilo que destoava do restante do livro, sendo provavelmente espúria. Orígenes
não só lançou uma defesa apaixonada da canonicidade da passagem, mas também de
outras como Bel e o Dragão, a Oração de Azarias e o Cântico
dos Três Judeus, que existem somente na versão dos LXX. Essa carta, ainda
que involuntariamente, acabou por se tornar o exemplo de quando Orígenes
enfrentou uma mente tão eclética quanto a sua, ao ponto de não ter sido capaz de
refutar os argumentos literários de Júlio Africano e preferir calcar sua defesa
num apelo à tradição da Igreja. O irônico é que Gregório de Nissa e Gregório
Nazianzeno – os compiladores de Filocalia –
preservaram a carta justamente por considerarem que foi bom o desempenho de
Orígenes.
Guardada as
devidas proporções, diria que a situação de muitos apologistas espíritas é
análoga: são capazes de agir com destreza contra padres e pastores – gente mais
comprometida ainda e seguidores de doutrinas bem engessadas – mas têm muita
dificuldade com quem não encara a Bíblia como matéria de fé e que muito menos
está presa ao Sola Scriptura ou à infalibilidade
papal. Muitos de seus argumentos, infelizmente, não vão além de um conhecimento
emprestado e que lhes dá uma rasteira quando descobrem esse autor não é a última
palavra em gramática de uma língua antiga ou aquele outro é incapaz de
fundamentar sua pesquisa histórica em documentos de época, ou pelo menos em
outros pesquisadores realmente embasados. Os membros desses grupos muitas vezes
se exercitam com pesos de isopor por não colocar a si mesmos à prova. Falta-lhes
alguém que lhes dê o contraditório, um “advogado do diabo”. Algo que só
detratores (como gostam desse rótulo!) com mais musculatura e menos amarras
podem oferecer.
Por falar em
diabo, antes que me recomendem para uma longa estadia no pior lugar do umbral,
lembrem-se que Satanás originalmente não era o “diabo” que hoje conhecemos e,
sim, um anjo que gozava de intimidade com seu deus, cumprindo apenas seu papel
de promotor. Talvez por fazê-lo tão bem, tornou-se tão detestado. Assim vejo a
mim e a vocês, meus caros espiritualistas: promotor e defensor, as duas faces de
uma mesma moeda e, de certa forma, a razão de ser um do outro. Nossa relação
conduz ao progresso mútuo, não por simbiose, mas por pura corrida armamentista.
Talvez possamos tomar uma cerveja após cada sessão, porém, diante do júri,
devemos fazer o que esperam de nós.
Outra limitação
que vi aqui foi a maneira como lidam com o tema “Orígenes” que, em vez de ser
algo merecedor de atenção por si só, tornou-se apenas um artifício, uma carta na
manga para ser usada
Confesso que
inicialmente também buscava em Orígenes e Teodora apenas material que me fosse
útil no portal. Foi a prazerosa leitura da biografia de Evans que realmente me
despertou interesse pela figura de Teodora. Não queria mais saber apenas se ela
mandara 500 prostitutas para o carrasco ou não e, sim, responder a mesma
indagação (ou lamento) que Procópio fez: como pôde Justiniano escolher uma
atriz/meretriz quando ele tinha ao seu dispor as mais casadouras donzelas da
nobreza? A resposta só pode ser uma: era uma mulher extraordinária, em todos os
sentidos que essa palavra possa assumir. O fato de vir da ralé social de sua
época acabou se convertendo em uma vantagem, pois Teodora aprendeu na escola da
vida muitas coisas que a vasta educação formal do futuro imperador nunca
ofereceria e muito menos teriam a oferecer as ricas herdeiras preparadas para a
submissão. Deve ter sido uma forte atração entre opostos que, em vez de
enfraquecer passada a impressão inicial, evoluiu para uma estreita simbiose.
Chamo-a de
extraordinária, sim, porque minha admiração não é pela devassa de A História Secreta, mas pela mulher de fibra que
liderou a reação contra a revolta de Nika e que também segurou as rédeas do
governo quando Justiniano quase morreu da peste, pela devota monofisita tida por
santa pelos seus confrades, pela mão amiga estendida à desamparada Preiecta, por
aquela que financiava a liberdade de prostitutas, pela provável inspiradora das
leis em prol das mulheres no Código de Justiniano e pela esposa dedicada cuja
morte abalou profundamente seu marido. Enfim, Teodora vai além de uma simples
obra de Procópio e os livros espiritualistas com quem me deparei não conseguiram
buscá-la nas demais obras dele e muito menos em outros autores do período. Não
sei se por ignorância, comodismo ou conveniência, para eles existe apenas uma
“prostituta” para suas teses conspiratórias.
O despertar de
meu interesse por Orígenes foi um pouco diferente, mas também partiu de uma
pergunta capciosa: “quem foi esse indivíduo que provocava tão intensas emoções
de amor e ódio, às vezes na mesma pessoa?” Foi algo estupidamente mais difícil
de responder. O alcance de Teodora, bem ou mal, não foi muito além de sua vida e
seu protegido movimento monofisita já estava revitalizado o bastante para
continuar pelas próprias pernas. Já com Orígenes, temos o oposto:seu poder foi
maior APÓS sua morte. E não era por menos, pois, ao contrário de Teodora, ele
deixou vários escritos que foram lidos e relidos por gerações. Portanto, não é
exagero dizer que existiram diversos “Origeneses” do século IV ao VI, ou melhor,
cada grupo de teólogos relembrava Orígenes de um jeito. Estudá-lo acabou por ser
algo como lidar com aquelas bonequinhas russas chamadas matrioskas: quando se abre uma, aparece outra dentro.
Da mesma forma, um pequeno pormenor das crises origenistas encaminhava a análise
para outro assunto. Orígenes se tornou tão instigante e desafiador por sua
complexidade que, se você reler a cada cinco anos sobre os temas que o envolvem,
vai sempre revisar esse ou aquele ponto sobre sua obra e de seus seguidores e
detratores.
Então,
apaixonei-me por meus objetos de estudo e maltratei muito meu cartão de crédito
comprando livros que me fornecessem o máximo possível da vida, obra e época dos
dois. Isso significou investir em literatura estrangeira, importada,
especializada e, às vezes, esgotada das prateleiras. Mas assevero que valeu cada
centavo. Lamento não ter tido desde início à minha disposição livros como When the Souls had Wings (“Quando as Almas tinham
Asas”, de Terryl L.Givens) ou The Rise of Monophisite
Movement “ (“A Ascensão do Movimento Monofisita, de William H.C. Frend), que
fornecem informações valiosas sobre esse período turbulento da consolidação do
cristianismo e,infelizmente, decidi não inserir para não ter que reorganizar a
estrutura do artigo demasiadamente.
Há outras
coisas que lamento não ter avaliado de primeira, como a necessidade de uma
melhor descrição de quais teses reais de Orígenes – que deixei na forma de um
link para outra página do portal, ainda insuficiente para mim, – e não ter
deixado o texto A Vida de S. Saba.em apêndice,
substituindo-o por um resumo na apresentação das fontes primárias. São coisas
que deixariam o texto mais completo, estruturado e didático, algo para se
degustado e não uma mera refutação a outros artigos.
Por isso, caros
leitores (espiritualistas ou não), venho dizer que resolvi dar um tempo nas
atualizações do resto do portal (não significando que vou abandoná-lo) e partir
atrás de Orígenes e Teodora, suas pessoas históricas e seus mitos, e re-escrever
todo o texto atual a partir da autocrítica que acabei de fazer:
http://falhasespiritismo.6te.net/textos/origenes.html
Isso é só um
aperitivo, pois não pretendo publicar esse texto on-line. Óbvio que ele será
calcado em grande parte do artigo atual e, portanto, já podem ter um boa ideia
do futuro conteúdo. É por isso que lhes digo em primeira mão que me dedicarei a
esse projeto pessoal a partir de agora. O portal não será abandonado, mas sua
atualização ficará (ainda) mais lenta e algumas refutações que me fizeram não
serão respondidas tão cedo, pois … não mexeram tanto comigo como as crises
origenistas. Seria leviano estimar quanto tempo eu levarei para completar, se o
acaso me permitir viver o bastante. Afinal levei três anos para uma tarefa que
julgava não consumir mais que seis meses. Durante esse tempo, amadureci muito
minha prosa e hoje já me considero capaz de conversar com meus leitores sobre as
análises que tenho em mente, em vez de ser um mero catador de “falhas” ou
compilador de citações como no início deste portal. Devo tudo isso a vocês e
venho aqui deixar meu agradecimento pessoal e que possamos um dia “jogar
conversa fora” em um território neutro e ameno.
Até mais e obrigado por tudo!!!
Para saber
mais:
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