Contendas do Deserto – Orígenes, Justiniano, Teodora e o caso da Reencarnação no II Concílio de Constantinopla.
Parte IV
Não basta apenas dizer onde está o erro. Todo erro tem uma razão para existir e aquilo que se toma como "correto" não foi aceito sem bons argumentos. Tal é a tarefa desta terceira parte.
17 – Pretérito Imperfeito:
Quando o passado não é exatamente aquilo que se gostaria
14 – O II
Concílio de Constantinopla e seu Contexto Histórico.
Em 381 d.C., o bispo homoousiano Gregório de Nissa foi a Constantinopla para
participar do Concílio Ecumênico convocado por Teodósio I. Lá chegando, ficou
estupefato com interesse da plebe por questões teológicas e deixou este famoso
testemunho:
Em suma,
não desconhecem a quem o sermão se refere. Todos os lugares da cidade
estão cheios deles, os becos, os mercados, as praças, os distritos
residenciais, os vendedores de roupas, os chefes das mesas de câmbio, os
que vendem nossa comida. Se você pede o troco (101), ele filosofará
contigo acerca do Criado e do Incriado; se você perguntar o preço do pão,
ele responderá que “o Pai é maior e o filho é subordinado”; e se você
disser, “o banho está pronto?” ele irá declarar que o Filho vem do
não-ser. Eu não sei de como chamar esse mal, será que é uma loucura ou
delírio, ou alguma outra doença que se espalhou pelo povo e desestabiliza
a mente. Sermão da
Divindade do Filho e do Espírito Santo. Extraído de Patrologia
Graeca, vol. 46, col. 557 |
Este trecho pode ter contribuído para o estereótipo
desenvolvido no Ocidente de que seus irmãos do Levante perdiam tempo demais em
infindáveis discussões teológicas. O termo “bizantinice” virou até sinônimo para
falatório inútil. De fato, a religião era uma presença constante no
Império Cristão, mas deve-se levar em conta que Gregório de Nissa estava
justamente na capital imperial e, também, sede do concílio, bem no ano de sua
realização; além de Constantinopla ter sido por quarenta anos um reduto de
arianos, facção que agora estava na defensiva. O cotidiano “médio” da capital
deve ter sido mais calmo. Dando, a título de comparação, uma ideia do que
poderia estar acontecendo, lembremos de como fica nossa sociedade em época de
Copa do Mundo, eleições e plebiscitos. Quando a decisão passa, o calor das
emoções diminui e seguimos nossa vida normal, embora os assuntos que elas
levantaram continuem latentes nas mentes dos leigos. Futebol permanece uma
paixão nacional, só que repartida entre vários times locais, em vez de seleções;
a questão da violência ainda está aí, apesar de o plebiscito do desarmamento já
ser página virada.
O insight que o relato de Gregório de Nissa pode nos dar
é sobre o quanto a questão religiosa é capaz de sair da sobriedade teológica e
ganhar ares de confronto entre turbas: mais de cento e setenta anos depois e em
uma nova controvérsia envolvendo calcedonianos e monofisistas, algo similar se
repetia. De
certa forma, a acusação de nestorianismo procedia. Bastaria uma simples leitura
das obras de Teodoro de Mopsuéstia para verificar que ele era um “nestoriano
antes de Nestório” (102). O problema é que a questão não era tão simples assim.
Teodoro, bem ou mal, não fora controverso em vida, morreu no seio na Igreja e,
diferentemente de Orígenes, foi defendido por ortodoxos e condenado por hereges
(monofisistas). Atacar a memória dos teólogos dos Três Capítulos era tido pelos
clérigos latinos como uma afronta ao Concílio de Calcedônia, cuja teologia o
ocidente adotou como marca distintiva do resto do império. Era inaceitável fazer
média com uma heresia na esperança de reconciliação quando o esperado seria
reprimi-la. Em
suma, a querela dos Três Capítulos estava mais para uma briga de torcidas
organizadas que uma discussão filosófica. Poderia ser que Justiniano se iludisse
pensando estar diante da última alternativa, mas Teodora era mais pragmática.
Vigílio já lhe fugira uma vez, não haveria nada de mais em fazê-lo cumprir
antiga promessa e retribuir a deposição de Silvério. Se alguém tinha que
ceder nesse equivalente eclesiástico de rixa entre Azuis e Verdes, não seria o
lado monofisista (103). Entre o breve período que vai da chegada de Vigílio a
Constantinopla (547 d.C.) até sua morte no ano seguinte, a imperatriz conseguiu
ao menos providenciar uma reconciliação entre Vigílio e o patriarca Mena, após
haverem se excomungado mutuamente (104).
O desenrolar dos fatos durante o resto da estadia do Papa
na capital foi conforme o já citado aqui anteriormente por Mosheim e corroborado
por Bury e Evans [cap.
IX, p. 101-104], com Vigílio tentado se equilibrar entre Justiniano e os bispo
latinos. O resultado final foi a derrota de Roma seguida por uma demorada
aceitação do V Concílio no ocidente. Quanto à questão origenista, digamos que
ela simplesmente pegou carona com a dos Três Capítulos e Justiniano decidiu
acabar com dois problemas com um golpe só. Mas para que essa junção de duas
pendengas ocorresse foi necessário – primeiro – a morte de Nono, cuja liderança
talvez evitasse a ruptura entre o origenismo-maconha dos protoktistas e a versão
LSD dos isocristas, e – segundo – a ida de uma delegação de monges palestinos
até Constantinopla para levar o caso ao imperador. Tanto em 553 d.C. como dez
anos antes, a segunda crise origenista foi problema local levado ao arbítrio do
imperador. O relato de Cirilo contando que ortodoxos foram postos na defensiva
pelo origenistas deve ter um fundo de verdade, afinal não pediriam ajuda se
pudessem vencer por conta própria. origenismo, por sua vez, não era o ponto
nevrálgico do V Concílio. Sua primeira condenação em 543 d.C. fora subscrita sem
grandes problemas por todos os cinco patriarcas, o romano Cassiodoro falou dela
sem comoção alguma e os partidários dos Três Capítulos execraram as manobras
origenistas. Apesar de seu poder local, os seguidores de Orígenes estavam longe
de serem amplamente aceitos no império. A não ser nas obras de ficção de
editoras newagers e espiritualistas.
Alguns podem estar perguntando se não era mais fácil
assinar um edito de tolerância e governar a todos sem distinção do que se
desgastar em longa controvérsia? A Roma pagã não havia regido diversas religiões
por tanto tempo? Por que não seguir seu exemplo? Não, não seria tão simples
assim. No mundo helênico não havia problema algum em colocar mais um deus no
panteão. Se o povo adorador do Grande Pires Sagrado era conquistado pelos
adeptos da Magna Xícara, então o deus deles não estava com nada e deveria mesmo
é ficar por baixo da deidade dos vencedores. E assim todos os habitantes do
Mediterrâneo prestavam suas homenagens à religião estatal romana, embora
mantivessem -
e até exportassem – seus deuses tradicionais. Os judeus, por outro lado, eram
uma exceção devido a sua devoção estrita a um único deus e o respeito às
instituições locais fazia parte, muitas vezes, da política imperial. Quando
algum imperador resolvia que também deveria ser adorado na Judeia, apenas
passava a senha desencadear uma rebelião. Mesmo após a dispersão final dos
judeus, seu credo continuou a ser tolerado, pois era considerada uma religião
étnica e,
enquanto ficasse restrita aos filhos de Abraão, não traria problemas à ordem
estabelecida. Pior era um certo grupo de arruaceiros que tinham, em sua maioria,
origem pagã e de uma hora para outra deixaram de cultuar os deuses antigos – que
passaram a ser demônios para eles (105) - e desdenhavam das obrigações civis em
nome de uma seita oriental fundada por um tal de Cristo. Os judeus não queriam
estátua do imperador no Templo de Jerusalém, mas esses ditos “cristãos” não a
queriam no Capitólio!
Bem, o resto da história foi contado no capítulo
V. Fiz apenas uma pequena recapitulação para exibir a
diferença entre os modos de tratar a religião do paganismo e do cristianismo. No
paganismo, com uma miríade de credos convivendo e intenso sincretismo, a
situação era fácil de lidar: bastava dar uma cipoada na seita que se engraçasse
e as demais tocariam a vida normalmente. Quando, no século IV, adotou-se o ideal
de “um imperador, um credo, um deus”, as coisas começaram a complicar. Manter a
coesão com ambições hegemônicas em um grupo demasiadamente grande de pessoas é
uma tarefa ingrata, para não dizer inviável devido às dissensões cada vez mais
prováveis. As controvérsias ariana, monofisista e nestoriana foram apenas
exemplos do famoso “fogo amigo” se desenvolvendo dentro do cristianismo. Para
dar uma amostra mais familiar a nós, tomo um paralelo feito em [Bridge, cap. II,
p. 26-27] que é bem ilustrativo:
Visto que
qualquer coisa é preferível à desastrosa desunião dos dias de Constantino,
imperador após imperador, tentou forçar concórdia em seus súditos
cristãos, embora alguns ombreassem com o partido ortodoxo e outros
ombreassem com os oponentes da linha estritamente ortodoxa. Perseguição
após perseguição foi lançada sobre os cristãos que se atreveram a ameaçar
a unidade do império ao discordar das doutrinas defendidas pelo imperador
da ocasião, e qualquer um que fizesse a temeridade de se desviar do
estreito caminho da ortodoxia contemporânea o fazia por seu próprio risco.
Os caçadores de heresias comunistas de nosso próprio século [XX] e as
amargas disputas entre marxistas ortodoxos, trotskistas,
maoístas, partidários de Tito e discípulos do infeliz Dubcek têm sido
muito similar aos violentos e polêmicos conflitos entre o partido
eclesiástico ortodoxo e os que eram considerados heréticos nos dias
bizantinos; e essa similaridade não é inteiramente acidental. Tanto o
estado Russo e a Igreja Ortodoxa Russa, que são os pais da Rússia
Soviética, foram eles mesmos filhos da civilização bizantina (106),
herdando muitas das falhas de Bizâncio, bem como algumas de suas
virtudes. |
A comparação
não chega a ser exagerada. O comunismo dos séculos XIX e XX tem muitas
similaridades com um credo messiânico: um profeta (Marx), apóstolos (Engels,
Lênin, Rosa Luxemburgo, etc.), um livro sagrado portador da revelação (O
Capital), pessimismo com realidade presente (o modo de produção capitalista), a
esperança do término iminente dessa ordem corrupta de forma cataclísmica (a
revolução socialista) e o início de uma nova era com a redenção do Bem (a
ditadura do proletariado). Acontece que Marx não era capaz de lidar com todos os
detalhes possíveis sobre como chegar à salvação
revolução, além de a realidade em que ele viveu ter evoluído de forma não muito
esperada, com melhorias para o proletariado. Não deu outra: ao longo do século
passado vários “sabores” de comunismo pipocaram, cada um procurando tapar os
buracos a sua maneira e reinterpretar O Capital conforme o andar da História
(107). Talvez algum filiado do PSTU que leia isso se irrite, mas o que pretendia
ser originalmente uma ciência ganhou ares de religião. E não foi o único
caso...
Guardadas as
devidas proporções, Justiniano viveu desafio político similar ao dos antigos
chefes da Cortina de Ferro, onde uma dissidência poderia levar a uma crise da
autoridade central, apenas trocando a natureza da “ideologia”. Num mundo marcado
por sectarismos, não tomar partido de ninguém significava ser atacado por todos
(108). Isso não justifica sua intolerância aos olhos do ecumenismo do terceiro
milênio, embora ajude a entender a preocupação que pode ter tido com o risco de
alguma “heresia”sair de controle. Foi assim dois séculos antes com o arianismo,
era então com o monofisismo. Sim, ele reprimiu o origenismo enquanto ainda era
“problema” local, assim como fez com diversas outras dissidências e crenças não
cristãs (arianos, nestorianos, samaritanos, maniqueus, pagãos, etc.). E aí?
Nesse aspecto, os monges do Nova Laura não tiveram nenhum tratamento “especial”.
Não ocorreu nenhuma guinada de 180 graus nos caminhos que a ortodoxia já vinha
trilhando. Aliás, até demorou um pouco para que Justiniano realmente agisse
contra eles, se considerarmos que Saba (supostamente) já o avisara em 532 e o
apogeu dos origenistas palestinos se deu bem durante a questão dos Três
Capítulos. Parece que ele tinha outras prioridades.
Notas:
(101) Aqui é
usada a palavra “obolos”, que correspondia à sexta parte da unidade dracma. Grosso
modo, funcionaria como nossos “trocadinhos”. No episódio neotestamentário do
“óbolo da viúva”, essa fração monetária deixa claro o quão pouco ela tinha para
ofertar.
(102) Vide Catholic Encyclopedia, Three Chapters.
(103) Cf.
[Evans, posfácio, p. 107]
(104)
Informação retirada de [Theophanes Confessor, 349, p. 103], também disponível em
[Malala, vol. XVIII] em nota da página 288 da edição de Jeffreys & Jeffreys.
Segundo eles, é provável que Teófanes e o copista do manuscrito de Baroccanius Graecus
182, que serviu de base para sua edição, tenham feito um resumo tosco de um
original mais amplo de Malala.
(105) Vide nota
número (15).
(106) Vide
[Diehl, livro IV, cap. II, p. 407- 412] para uma análise da influência de
Bizâncio para formação da Rússia moderna.
(107) Um
interessante episódio está contido no volume I, p. 244-245 da coleção, Grandes Fatos do Século
Vinte, da antiga Rio Gráfica (talvez ainda achem em sebos):
Na
primavera de 1898, Eduard Bernstein, um dos mais prestigiosos líderes do
Partido Social-Democrata alemão, publicou nos jornais uma série de artigos
criticando duramente a tese marxista de que o capitalismo estava condenado
a perecer em razão de suas próprias e insolúveis contradições. Segundo
Bernstein, o capitalismo não só podia sobreviver, como ainda era capaz de
realizar reformas sociais que resultassem em progresso econômico e
liberdade política para toda a sociedade. Bastava olhar, sugeria ele, para
a Inglaterra ou mesmo para a Alemanha, onde o nível de vida dos operários
melhorava a olhos vistos e seus direitos políticos, como legalização dos
sindicatos e direito de voto, ampliavam-se cada vez mais. A
social-democracia devia, portanto, adequar-se a essa realidade não
prevista por Marx, deixando de ser uma força revolucionária para
tornar-se, no Parlamento e nos sindicatos, um advogado das reformas
sociais. As “teses
revisionistas” estremeceram o partido de alto a baixo, provocando fissuras
que jamais seriam sanadas. Dentre as vozes que se ergueram em defesa do
marxismo ortodoxo, sobressaiu-se a de Rosa [Luxemburgo], que, no ensaio Reforma Social ou
Revolução, polemiza duramente com os “revisionistas”, repudiando o
abandono da luta revolucionária em troca do que classifica como “miuçalhas
do jogo parlamentar”. |
Quando leio
isso, não consigo deixar de pensar nas reações que kardecistas ortodoxos têm
quando se sugere a criação de um novo Livro dos Espíritos, baseado em perguntas
que não foram feitas e nas mudanças da ciência de sociedade ocorridas ao longo
de 150 anos. Muda-se o pano de fundo, os atores, etc., mas o roteiro da peça
continua a ser o mesmo...
(108) Um exemplo: por querer agradar a
“gregos e troianos”, o Henoticão de Zenão conseguiu desagradar aos radicais de
ambos.
15 – Anátemas contra Orígenes
Este capítulo é
um bocado longo, mas recomendo ao leitor que, ainda que faça por partes, leia
cada uma das análises que serão feitas. Digo isso porque, primeiro, a maioria
das fontes espiritualistas cita apenas o anátema I, que trata da pré-existência,
e, segundo, mesmo quando citam mais de um anátema (p.e, Manuela Pompas – Reencarnação),
evitam aqueles que também pareceriam esdrúxulos até para o público moderno e,
terceiro, entender a diferença entre o que Orígenes escreveu e o que foi feito
depois de suas palavras é fundamental para a compreensão de o quanto dele
realmente há em suas duas condenações do século VI. Portanto, respire fundo e vá
até o final.
- Anátemas de
543 d.C. Originais constantes
I. Quem quer que diga ou pense que as almas humanas
pré-existiram, i.e., que previamente foram espíritos e santas potestades,
mas que, saciadas com a visão de Deus, voltaram-se ao mal e dessa forma o
amor divino nelas esmorecera (ap???e?sa?) e, portanto, elas se tornaram almas
(???a?) e foram
condenadas ao castigo em corpos, que seja anátema. II. Se alguém diz que a alma ou pensar que a alma do Senhor pré-existia e estava unida a Deus, o Verbo, antes da Encarnação e Concepção da Virgem, que seja anátema. III. Se alguém diz ou pensar que o corpo de nosso
Senhor Jesus Cristo foi formado no ventre da santa Virgem e que, depois,
lá foi unido a Deus, o Verbo e à alma pré-existente, que seja anátema.
IV. Se alguém diz ou pensa que o Verbo de Deus se
tornou similar a todas as ordens celestes, de modo que para os querubins
ele foi um querubim; para os serafins, um serafim: em suma, similar a
todas as potestades superiores, que seja anátema. V. Se alguém diz ou pensa que, por ocasião da
ressurreição, os corpos humanos se erguerão em forma esférica e distinta
de nossa forma atual, que seja anátema. VI. Se alguém diz que o céu, o Sol, a Lua, as
estrelas e as águas que estão acima dos céus têm almas e são seres
racionais, que seja anátema. VII. Se alguém diz ou pensa que Cristo, o Senhor,
numa época futura será crucificado por demônios como foi por homens, que
seja anátema. VIII. Se alguém diz ou pensa que o poder de Deus é
limitado e que criou tanto quanto era capaz de abranger, que seja anátema.
IX. Se alguém diz ou pensa que o castigo dos demônios
e homens ímpios é apenas temporário e um dia terá um fim, e que a
restauração (ap??atastas??) tomará o lugar de demônios e homens ímpios, que
seja anátema. Anátemas a Orígenes, o tal Adamâncio, que lançou essas opiniões junto com sua nefanda e execrável doutrina e a qualquer um que pense assim, ou defenda essas opiniões, ou que de agora em diante de alguma, em qualquer ocasião, presuma protegê-las. |
Anátemas de 553
– Extraídos de The
Seven Ecumenical Councils, em Nicene and Post-Nicene
Fathers, série II, vol. XIV, de Phillip Schaff.
Fazendo uma
leitura total dos anátemas, nota-se que muitos deles seriam estranhos até para
vários espiritualistas modernos, como a dotação racional dos corpos celestes
(mundo habitado mesmo seria a Terra. Ou o céu para os anjos e o inferno dos
demônios), a nova crucifixão de Cristo e o fim panteísta da apocatástase. Aposto
que muitos dos que resmungam contra os eventos de 543-553 jamais abraçariam o
origenismo pessoalmente e erguem sua bandeira mais como uma postura “o inimigo
do meu inimigo é meu amigo”.
Deixando de
lado o que os espiritualistas e esotéricos fazem do origenismo nos dias de hoje,
convém que se centre em como o origenismo do século VI era visto por seus
contemporâneos, defensores e adversários. Os anátemas de cada década não
concordam em número e nem sempre coincidem plenamente
Doutrina |
Anátemas
de 543 |
Anátemas
de 553 |
Referência provável |
I |
I, II, IV
e V |
De
Principiis, I. 6 | |
II e
III |
VI, VIII,
IX, XIII |
De
Principiis, II. 6 | |
IV |
VII |
Comentário de João I.34 | |
VII |
- |
Jerônimo,
carta a Ávito (n. 124) | |
VI |
III |
De
Principiis, I. 7 | |
VIII |
- |
Jerônimo,
carta n. 98
| |
V |
X |
Desconhecida | |
- |
X e
XI |
De
Principiis I.6.4, I.2 e III.6 | |
- |
XII |
De
Principiis III.6.9 | |
IX |
XII e
XV |
De
Principiis, III.6 | |
- |
XIV |
Jerônimo,
carta a Ávito (n. 124) |
Vale lembrar
que a coluna “referência” não significa necessariamente o único local onde a
doutrina é encontrada, mas aquela onde ela foi apresentada, podendo se repetir
em outros locais da mesma obra ou em de autores posteriores. Tecendo alguns
comentários sobre elas:
1) Beatitude Original e Queda: sem dúvida um aspecto
marcante da doutrina de Orígenes. Em sua época duas doutrinas eram dominantes
para a origem da alma: traducianismo e criacionismo. O primeiro advogava a
formação da alma junto com corpo, através da semente paterna; ao passo que, no
segundo, ela teria sido em algum instante criada em separado por Deus e, então,
implantada no embrião. Ambas eram passíveis de ataque de marcionistas e
gnósticos, que consideravam a união da alma com o corpo como uma
artimanha feita pelo demiurgo inferior ao verdadeiro Deus e suposto criador do
mundo material. O verdadeiro e bondoso Deus jamais criaria as almas para o
sofrimento. Em razão desse desafio, Orígenes propõe sua teoria das quedas, como
uma forma de conciliar a existência do sofrimento, o livre-arbítrio e bondade
divina. De certa forma, ela não é totalmente inédita, pois já existiam histórias
de queda dos anjos para uma condição demoníaca no judaísmo intertestamentário
(109) e livro de Gênese traz a famosa “queda de Adão”. Vale lembrar até o final
do século IV e começo do V, a origem da alma ainda era uma questão
2) Cristologia Subordinacionista: no prefácio de De Principiis,
Orígenes expõe o que considera como consenso entre a ortodoxia de sua época e,
quando fala de Jesus, fica estabelecido o seguinte:
Segundo: que o próprio Jesus Cristo, que veio (ao
mundo), nasceu do Pai antes de todas as criaturas; que, depois de ter sido
o servo do Pai na criação de todas as coisas – pois por Ele foram feitas
todas as coisas (cf. Jo 1:3) – nos últimos tempos, despojou-se (de Sua
glória), tornou-se um homem e esteve encarnado, embora (fosse) Deus; e ao
mesmo tempo que foi feito um homem, permaneceu o Deus que era; que assumiu
um corpo como o nosso próprio, diferindo nesse aspecto apenas que nasceu
de uma virgem e do Espírito Santo: que este Jesus Cristo realmente nasceu,
e realmente sofreu, e não suportou esta morte comum (ao homem) apenas na
aparência, mas realmente morreu; que realmente se levantou dos mortos; e
que após Sua ressurreição conversou com Seus discípulos e foi levado acima
(para o céu). |
Em cima desse
pressuposto, Orígenes desenvolve a seguinte doutrina cristológica: Cristo não
teria sido apenas “gerado” (e não criado) pelo Pai, mas seria continuamente
gerado por ele ao longo da eternidade, de modo que se a existência de um tivesse
como derivado imediato a do outro, da mesma forma como a luz é consequência do
acender de uma vela.
De principiis I.2.1 Em primeiro lugar, devemos notar que a natureza da
deidade que está em Cristo com relação a ser o unigênito Filho de Deus é
uma coisa e aquela a natureza humana que assumiu nestes últimos tempos
para o propósito de distribuição (de graça) é outra. E,
portanto, temos primeiro de determinar o que o unigênito Filho de deus é,
vendo que Ele é chamado por muitos nomes diferentes, conforme o dito de
Salomão: “O Senhor me criou – o começo de Seus caminhos e entre
Suas obras, antes que fizesse qualquer outra coisa; fundou-me antes das
eras. No começo, antes que formasse a terra, antes que originasse as
fontes das águas, antes que as montanhas fossem firmadas, antes de todos
os outeiros, Ele me originou.” (cf. Pv 8:22-25, versão LXX). Ele também é
intitulado Primogênito, como o apóstolo declarou: “que é o primogênito de
toda a criação” (Cl 1:15). O primogênito, entretanto, não é diferente por
natureza da pessoa da Sabedoria, mas una e a mesma. Finalmente, o apóstolo
Paulo diz que “Cristo (é) o poder de Deus e sabedoria de
Deus.” (1 Cor 1:24) (...) De principiis I.2.9 Vejamos agora qual é o significado da expressão que é
encontrada na Sabedoria de Salomão, onde se diz que a Sabedoria
“é um tipo de sopro do poder de Deus, e o mais puro
eflúvio da glória do Onipotente, e o esplendor da eterna luz, e o espelho
sem mácula da atividade e poder de Deus, e a imagem de Sua
bondade”(Sb 7:25). Essas, então são as definições que ele dá
a Deus, assinalando por meio de cada um delas determinados atributos que
pertencem à Sabedoria de Deus, chamando de sabedoria o poder, e a glória,
e a luz eterna, e a atividade, e a bondade de Deus. Não diz, porém, que a
sabedoria é o sopro da glória do Todo-poderoso, nem que a luz eterna, nem
a operosidade do Pai, nem Sua bondade, pois não seria apropriado que sopro
devesse designar qualquer uma dessas; mas, com toda propriedade, diz que a
sabedoria é o sopro do poder de Deus. Agora, pelo poder de Deus deve ser
entendido o que pelo qual Ele é forte; pelo qual determina, restringe e
governa todas as coisas visíveis e invisíveis; que basta para todas as
coisas que rege em Sua providência; entre as que está presente, como se
fosse um indivíduo. E embora o sopro de todo esse poderoso e imensurável
poder e vigor produzido por si mesmo, por assim dizer, devido a sua
própria existência, procedeu do poder em si mesmo, como a vontade o faz a
partir da mente, ainda que mesmo essa vontade de Deus seja, contudo, feita
para se tornar o poder de Deus. Consequentemente um outro poder é produzido, que
existe com suas próprias propriedades, - um tipo de sopro, com diz a
Escritura, do primordial e incriado poder de Deus, derivando dEle seu ser
e nunca em tempo algum inexistente. Pois se alguém afirmar que ele não
existia anteriormente, mas veio à existência depois, que ele explique a
razão pela qual o Pai, que deu origem (ao poder), não o fez antes. E caso
ele admita que existiu um começo, quando tal sopro procedeu do poder de
Deus, perguntaremos de novo, por que não ainda antes do começo que ele
aceitou; e dessa forma, sempre exigindo uma data anterior e levando
adiante nossos questionamentos, chegaremos à conclusão que, já que Deus
sempre possuiu poder e vontade, nunca houve razão inerente ou outro motivo
por que Ele não possa ter sempre possuído aquela benção que desejou. Por
isso fica demonstrado que o sopro do poder de Deus sempre existiu, não
tendo começo, salvo o próprio Deus. Nem seria adequado que devesse ter
outro começo salvo o próprio Deus, de quem ele origina seu nascimento. E
conforme a expressão do apóstolo, que Cristo “é o poder de Deus” (1 Cor 1:24), ele deve ser chamado não apenas de
sopro do poder de Deus, mas poder a partir de poder. |
Orígenes, aqui,
trata da natureza divina de Cristo, estabelecendo-a como co-eterna com a do Pai
e colocando-a em igualdade de natureza e essência, porém existiria uma
hierarquia de origem de poder. Já no último livro de De Principiis, ele
expande esse assertiva para as três pessoas da Trindade:
De principiis IV.28 (...)Como a luz, portanto, nunca poderia existir sem esplendor, então nem pode o Filho ser compreendido sem o Pai; pois Ele é chamado de “expressa imagem de Sua pessoa” (cf. Hb 1:3) e o Verbo e a Sabedoria. Com, então, pode-se declarar que outrora houve uma época quando Ele não era o Filho? Pois isso não nada mais do que dizer que outrora houve uma época quando ele não era a Verdade, nem a Sabedoria, nem a Vida, embora em todos esses seja considerado ser a perfeita essência de Deus, o Pai; já que essas coisas não podem ser retiradas dEle ou mesmo separadas de Sua essência. E apesar de se dizer serem muitas, em entendimento, essas qualidades, e ainda que em sua natureza sejam uma, e que nelas está a plenitude da divindade. Agora essa expressão que empregamos – “que nunca houve uma época quando Ele não existia” - devem ser entendidas como uma concessão. Já que essas mesmas palavras “quando” ou “nunca” têm um significado que está relacionado ao tempo, ao passo que as declarações feitas acerca do Pai, do Filho e do Espírito Santo devem ser compreendidas como transcendendo todo o tempo, todas as eras e toda a eternidade. Visto que é somente a Trindade que excede a compreensão não apenas temporal, mas até da eterna inteligência; enquanto as outras coisas que não estão incluídas nela são medidas por épocas e eras. (111) |
Que ninguém
pense ter sido esse viés trinitário um acréscimo feito por Rufino, pois Atanásio
de Alexandria – o campeão oriental do credo niceno durante a controvérsia ariana
– citou explicitamente Orígenes em grego como sendo partidário da co-eternidade
de Pai, Filho e Espírito Santo.
Atanásio, De Decretis, cap. VI E quanto a eterna co-existência do Verbo com o Pai e
que Ele não é de outra essência ou hipóstase, mas da própria do Pai, como
os Bispos no Concílio [de Niceia] disseram, podes ouvir outra vez também
do laborioso Orígenes. Já que o que escrevia era questionando ou como
forma de exercício - que ninguém tome como sendo expressivo de seus
próprios sentimentos, mas de partidários a competir numa investigação –
mas o que ele definitivamente declara é que é o sentimento do laborioso
homem. Então, após suas preliminares (por assim dizer) contra os hereges,
ele introduz diretamente sua crença pessoal desta forma: “Se há uma Imagem do Invisível Deus, é uma Imagem invisível; não apenas isso, mas, serei claro em acrescentar que, como sendo a semelhança do Pai, ela nunca inexistiu. Pois quando que esteve tal Deus, que, segundo João, é chamado de Luz (pois 'Deus é Luz'), sem uma irradiação de Sua própria glória, para que um homem presumisse declarar a origem da existência do Filho, como se antes ele não existisse? Mas quando não havia tal Imagem da hipóstase Inefável e Inominável e Indescritível do Pai, tal Expressão e Verbo, e Ele que conhece o Pai? Pois que entenda bem quem se atreve a dizer, 'Outrora não existia o Filho', que ele está dizendo, 'Outrora não existia Sabedoria', e 'não existia o Verbo', e 'não existia Vida'.” (...) |
Fica no ar a
qual obra ele está exatamente se referindo, mas o que importa é esse relato ser
uma fonte independente de um pensamento similar ao encontrado
Quem leu os
anátemas correspondentes à cristologia, deve ter reparado que eles não falam
exatamente da relação entre o Pai e o Filho, mas de uma “alma de Cristo”. Até
agora, foi vista apenas sua parte “divina”, tendo Orígenes tratado do episódio
da “Encarnação” no livro II de De Principiis. Foi essa solução que o alexandrino deu para a
união entre o Criador e uma Criatura o que sofreu distorções ao longo do
tempo.
De
Principiis, II, 6 (...)
Assim, o Unigênito de Deus, através do qual, como previamente se
demonstrou no curso da discussão, todas as coisas foram criadas, visíveis
e invisíveis, conforme a opinião da Escritura, tanto fez todas as coisas e
ama o que fez. Pois já que Ele mesmo é a imagem invisível do invisível
Deus, invisivelmente transferiu uma parte em Si mesmo para todas as
criaturas racionais, para que cada uma obtivesse uma parte dEle
proporcionada exatamente para o total de afeição com que O estimou. Mas já
que, segundo a faculdade do livre-arbítrio, variedade e diversidade
caracterizaram as almas individuais, de modo que uma estava mais vinculada
ao Autor de seu ser com um amor mais caloroso e outra com uma estima mais
débil e fraca, tal alma (anima) – considerando que Jesus disse, “Ninguém tirará
minha vida (animam) de mim” (Jo 10:18) – estando inerentemente, desde
o princípio da criação e depois, nEle de forma inseparável e indissolúvel,
como sendo a Sabedoria e Verbo de Deus, e a Verdade e genuína Luz, e
recebendo-O plenamente, e adentrando em Sua luz e esplendor, formou com
Ele um grau pré-emitente (principaliter) de espírito uno, conforme a
promessa do apóstolo aos que zelassem a isso imitar, que “ele foi unido ao
Senhor em um espírito” (1 Cor 6:17). Vindo de uma alma essa
substância, então sendo intermediária entre Deus e a carne – sendo
impossível para a natureza de Deus entremesclar-se com um corpo sem um
instrumento mediador – nasce o homem-Deus, como dissemos, tal substância
sendo intermediária, sua natureza não é contrária a assumir um corpo. Mas
nem, por outro lado, era oposto à natureza daquela alma, como uma
existência racional, receber Deus, para dentro do qual, como acima
declarado, como para dentro do Verbo, e da Sabedoria, e da Verdade ela já
havia plenamente entrado. E assim ela merecidamente é chamada, junto com a
carne que assumira, de Filho de Deus, e o Poder de Deus, o Cristo, e a
Sabedoria de Deus, seja porque estava plenamente no Filho de Deus, ou
porque recebeu o Filho de Deus totalmente dentro de si mesma. E ainda, o
Filho de Deus, por meio do qual todas as coisas foram criadas, é chamado
Jesus Cristo e Filho do homem. (...) |
De todas as
almas criadas, uma única não teria se afastado deles e decaído. Muito pelo
contrário: manteve contato tão estreito com o Filho que sofreu uma infusão de
todas as suas características e se tornou também Deus por transferência de
poder. Foi essa alma divinizada que, ao se mesclar com um dos membros da
Trindade, se tornou o instrumento para a Encarnação de Cristo. Também não há
razão duvidar do texto que Rufino os trouxe, visto que ideia similar aparece
Infelizmente, a
cristologia de Orígenes é muitas vezes apresentada como se fosse “apenas” isso,
esquecendo outros aspetos que ele discutiu. Quem ler o verbete Cristianismo do Dicionário
Filosófico de Voltaire, notará que ele atribui aos arianos do começo do
século IV o uso de um trecho dessa obra de Orígenes e que simplifica demais a
ideia do teólogo (114). Até o atualmente famoso Bart Ehrman [2003, cap. VII] dá
uma versão demais centrada só na Encarnação. Talvez uma abordagem mais plena da
cristologia origenista requeira uma obra totalmente dedicada a ele, como
[Crouzel] ou [Malaty].
E foi
justamente o uso isolado de uma das análises de Orígenes que levou a doutrinas
cristológicas de uma safra um tanto sui generis no século IV: numa série de ditos – Kephalaia Gnostika
– escrita pelo monge Evágrio Pôntico, alma que daria origem à parte humana
Cristo também interagiu com o Verbo, mas sua união com o Verbo deixou de ser o
bastante para que fosse considerada como parte da Trindade.
I, IV, IV, V, |
De certa forma,
esses extratos de Kephalaia podem nos dar um vislumbre de como pode ter
surgido a facção origenista dos tetraditas, que teriam transformado a Trindade numa
Tétrade pela adição do Cristo-alma aos três demais. Ao contrário dos isochristas, para
eles a alma de Cristo ainda manteria uma distinção em relação às demais quando
chegasse a consumação final. O nome de protoktistas (primeiros da criação) pode estar associado
não apenas à crença na pré-existência, mas também por associação a Cristo como
primeiro ser criado e mediador da criação material:
IV, 58 Deus, quando criou os ??????? (intelectos), não estava em nada; mas, quando ele
cria a natureza corporal e mundos que surgem dela, ele está em seu
Cristo. |
Outras
passagens de Kephalaia que também trazem esse Cristo no papel de
demiurgo, aliadas àquelas que abrem a possibilidade de suas prerrogativas serem
compartilhadas por outras almas que se ligarem ao conhecimento, podem ter dado a
base teológica para o desenvolvimento facção isochrista:
IV, 8. O
co-herdeiro de Cristo (Rm 8:17) é o que chega à Unidade e se deleitar
em contemplação com o Cristo. IV, 9. Se
o herdeiro for uma coisa e a herança outra, o Verbo não é o que se herda:
em vez disso, o Cristo (herda) o Verbo que é a herança; porque quem quer
que herde está, assim, unido à herança; e o Verbo-Deus é livre da (ou
“para a” ?) união. V, 81. Quando o ???? tiver recebido conhecimento essencial, então ela também será chamada de “Deus”, porque também será capaz de criar mundos variados. |
O raciocínio é
simples: se a alma de Cristo se ligou ao Verbo por não ter caído, então aquelas
que ascendessem novamente ao estado primordial também teriam essa capacidade.
Daí não é difícil entender as passagens finais do Livro de Hierotheos
mencionando uma alma a
criar éons ao fim de sua jornada. [voltar]
3) Encarnação de Cristo entre Anjos: Pela lógica de seu
sistema, os anjos também haviam sofrido a queda original. Não tanto quanto os
humanos e os demônios, mas, tais como os últimos, seriam seres racionais e
dotados de livre-arbítrio e em necessidade superar imperfeições rumo ao estado
original. Para os homens, o papel de Cristo seria o de mestre e catalisador
dessa restauração:
Contra
Celso, III, 28 Os
cristãos veem que com Jesus a natureza divina e a natureza humana
começaram a se entrelaçar, para que a natureza humana, pela participação
na divindade, seja divinizada, não só em Jesus mas também naqueles todos
que, com fé, adotam o gênero de vida que Jesus ensinou e eleva até à
amizade por Deus e à comunhão com ele quem vive conforme os preceitos de
Jesus. Idem, VI,
68 Expresso
em termos corporais e pregado como carne, ele chama a si aqueles que estão
para torná-los conformes ao logos que se fez carne, e em seguida,
fazê-los
subir, para que o vejam assim como era antes de ser tornar carne;
de tal modo que recebem este benefício, se elevam a partir dessa iniciação
segunda a carne e podem dizer: “Mesmo se conhecemos a Cristo segundo a carne, agora
já não o conhecemos assim” (2 Cor 5:16). |
Assim, foi
natural que Orígenes cogitasse papel similar para Cristo entre os anjos:
Curiosamente,
aqui os demônios ficaram de fora. Isso gera indagações sobre o próximo grupo de
anátemas. [voltar]
4) Crucifixão por Demônios: Da carta de Jerônimo a
Ávito:
Tal passagem
não pode ser encontrada na tradução de Rufino de De Principiis. No
capítulo III foi apresentado um trecho de Comentário sobre a Epístola aos Romanos (V.10.14) – que
também chegou até nós via Rufino – em que a possibilidade de um novo sacrifício
de Cristo fosse necessário é atribuída a terceiros e é rechaçada por Orígenes. É
provável, como lá comentado, que a tese fosse exposta por Orígenes, mesmo, só
para questioná-la. Era assim sua maneira de agir, conforme o relato de Atanásio
exposto acima neste capítulo. Não há razão, então, para duvidar que uma restauração dos demônios fosse cogitada
I.6.3 E é a partir daqui que toda esta vida mortal fica
cheia de lutas e provações causadas pela oposição e inimizade dos que
caíram de uma condição melhor sem nem olhar para trás e são chamados de
diabo e seus anjos, e as outras ordens do mal que o apóstolo classificou
entre os poderes opositores. Mas se qualquer uma dessas ordens que agem
sob o governo do diabo e obedecem a seus ímpios comandos serão num mundo
futuro convertidas à retidão por causa sua posse da faculdade de
livre-arbítrio, ou se impiedade persistente e inveterada pode ser
transformada pelo poder do hábito numa natureza, é um resultado que você
mesmo, leitor, pode dar aprovação, se nem nesses presentes mundos que são
visíveis e temporais, nem naqueles que são invisíveis e eternos, tal
porção deva diferir totalmente da unidade e bom estado finais das
coisas. III.6.2 Já que, então, está prometido que no final Deus será
tudo em todos, não devemos supor, como apropriado, que animais, sejam
carneiros ou outro gado, chegam a tal final, para que não se deduza que
Deus habita até em animais, sejam carneiros ou gado; e também da mesma
forma com fragmentos de madeira ou rochas, para que não se diga que Deus
também está neles. Então, mais uma vez, nada que é iníquo há de alcançar
tal final, para que, enquanto se afirma que Deus está em todas as coisas,
não se possa afirmar que Ele seja um receptáculo de iniquidade. Pois se
agora declaramos que Deus está em todo lugar e em todas as coisas,
baseados em que nada pode estar vazio de Deus, no entanto não dizemos que
Ele agora é todas as coisas em que está. E daqui por diante devemos tomar
mais cuidado quanto ao que é que significa a perfeição de santidade e o
final das coisas, que não é apenas dito Deus está em todas as coisas, mas
também [que é] tudo |
Uma passagem
pouco após essa última declara qual será o “último inimigo” que há de se render
ao chamado e se sujeitar a Cristo:
III.6.5 Além disso, afirma-se por essa razão ser o ultimo
inimigo, que é chamado de morte, destruído, que não pode haver nada de
pesaroso deixado quando a morte não existir, nem nada que seja adverso
quando não há inimigo. A destruição do último inimigo, na verdade, deve
ser compreendida não como se fosse sua substância, que foi formada por
Deus, destinada a perecer, mas porque de sua mente e vontade hostil, que
não veio de Deus, mas de si mesmo, serão destruídas. Sua destruição,
portanto, não será sua inexistência, mas seu cessar de ser inimigo e (de
ser) morte. Pois nada é impossível ao Onipotente, nem nada é incapaz de
restauração ao seu Criador: pois Ele fez tudo que possa existir e tais
coisa feitas para a existência não podem cessar de existir. |
Não é difícil
associar “morte” – último inimigo – com o diabo, já que “o salário do pecado é a
morte” (Rm 6:23) e pecado é com ele mesmo. Em oposição a esse trecho, chegaram
até nós, por vias indiretas, dois supostos documentos de Orígenes que refutariam
claramente a tese da “salvação do diabo”. O primeiro é uma carta endereçada “a
alguns amigos de Alexandria” citada por Rufino:
“Algumas das pessoas que se comprazem em acusar seus
vizinhos trazem contra nós e nosso ensino a acusação de blasfêmia, embora
de nós nunca tenham ouvido nada do tipo. Que prestem atenção a si mesmas
em como recusam a atentar para aquela solene injunção que diz que
‘maldizentes não herdarão o reino de Deus’ quando declaram que o pai da
iniquidade e perdição e dos que estão expulsos do reino de Deus, ou seja:
o diabo, será salvo, algo que nenhum homem pode dizer mesmo que tenha
perdido o juízo e esteja manifestadamente insano. Embora não surpreenda,
imagino se meu ensinamento é falsificado por meus adversários e está
corrompido e adulterado da mesma foram que as epístolas de Paulo, o
Apóstolo.” Rufino – Da adulteração das Obras de Orígenes, parágrafo 7 |
O segundo foi
trazido por seu antagonista, Jerônimo de Aquileia. Após acusar Rufino e haver
editado a carta supracitada, ele dá uma nova fonte onde Orígenes negaria a
salvação do diabo:
Existe em grego um diálogo entre Orígenes e Cândido,
o defensor da heresia de Valentino, em que, admito, parece-me que quando o
leio estou assistindo a uma luta entre dois gladiadores andabacianos.
Cândido alega que o Filho é da substância do Pai, caindo no erro de
declarar uma Probolé ou Produção. Por outro lado, Orígenes, como Ário e
Eunômio, recusa a admitir que Ele seja produzido ou gerado, por temor que,
assim, o Pai deve ser dividido em partes: mas diz que Ele era uma sublime
e excelentíssima criação que veio a existir pela vontade do Pai como as
outras criaturas. Eles, então, passam para uma segunda questão. Cândido
declara que o diabo é de uma natureza totalmente má que nunca pode ser
salva. Contra isso, Orígenes declara corretamente que ele não é de uma
substância perecível, mas que é por sua própria vontade que
caiu e pode ser salvo. Isso Cândido falsamente transforma numa censura
contra Orígenes, como se ele tivesse dito que a natureza diabólica poderia
ser salva. Por essa razão, aquilo de que Cândido tinha falsamente o
acusado, Orígenes refuta. Contudo, vemos que nesse apenas nesse Diálogo
Orígenes acusa os heréticos de ter falsificado seus escritos, não nos
outros livros, acerca dos quais nenhuma questão foi levantada. De outra
forma, se tivermos de acreditar que tudo que é herético não devido a
Orígenes, mas aos heréticos, ao passo que quase todos os seus livros estão
cheios desses erros, nada de Orígenes permanecerá, mas tudo deve ser
trabalho daqueles cujos nomes ignoramos. Jerônimo – Apologia própria contra os Livros de Rufino, livro II, 19 |
Pena que
Jerônimo não traga exatamente qual foi o argumento para a refutação ao
valentiano, mas não importa qual dos dois fale a verdade, pois se tem tanto um
defensor quanto um detrator de Orígenes afirmando que ele chegou a negar uma
tese dedutível a partir de De Principiis, pode-se cogitar que muitos antagonistas
dele transformaram um exercício especulativo em afirmação categórica. (117)
Em Comentário
sobre o Evangelho de João – uma obra que, embora incompleta, chegou até nós em
grego – traz passagens um tanto antagônicas, sugerindo a ideia de “universal,
mas nem tanto”. Logo no início:
Comentário de João I.16 Falamos de um começo em referência a uma transição.
Aqui tem a ver com uma estrada e com comprimento. Isso aparece no dito:
“O começo de
um bom caminho é fazer justiça.” (Pr. 16:7, versão LXX). Já que o bom
caminho é longo, então com referência ele tem de ser primeiramente tratada
a questão relacionada com a ação, e esse lado é apresentado nas palavras
“fazer justiça”; o lado contemplativo surge para consideração depois.
Nesse último, o fim dele chega para descansar finalmente na dita
restauração de todas as coisas, já que nenhum inimigo com quem lutar lhes
é deixado, se for verdadeiro o que se diz: “Pois Ele tem de
reinar até que tenha posto todos os seus inimigos sob Seus pés. Mas o
último inimigo a ser destruído é a morte” (I Cor 15:25-26). Pois então
apenas uma atividade será deixada para os que vierem a Deus em razão de
Seu verbo que está com Ele, tal é, a saber, a de conhecer Deus, de modo
que, encontrando-se pelo conhecimento do Pai, possam todos ser Seu Filho,
como agora ninguém além do Filho conhece o Pai. (...) |
O que lembra
bastante a passagem III.6.5 de De Principiis. Mais tarde, temos a sugestão de que o
fim dos inimigos não necessariamente significaria um perdão para todos eles,
dependendo da falta cometida:
Idem, XIX, parágrafo 88 (v. nota 118) Mas sei que alguns são dominados por seu próprio
pecado não apenas nesta era, mas também na era vindoura, como os de quem o
Verbo fala: “Se alguém blasfema contra o Espírito Santo, ele não
tem perdão nem nesta era, nem na vindoura” (cf. Mt 12:32, Mc 3:29, Lc
12:10). Se, contudo, não perdão na era vindoura, nem há também nas eras
que vêm depois dela. (cf. Ef 2:7) |
No que se
refere especificamente ao diabo, Orígenes advoga que sua opção e contínua ação
no Mal tenham modificado definitivamente sua natureza:
Idem, XX, parágrafo 174
|
O quadro geral
é, em suma, um tanto contraditório e hesitante na obra de Orígenes. A própria
ideia de apotacatástase apresenta uma contradição intrínseca: se
todos devem retornar ao Pai, o que é feito de seu livre-arbítrio, então? O
respeito à vontade dos seres racionais e a aplicação de justiça são os dois
pilares de De
Principiis, mas a tese de que o princípio e o fim são os mesmos – i.e. todas
as almas puras – os faz conflitar. Talvez, como salientou Crouzel, no fundo
Orígenes fosse um otimista, firmemente convencido que o apelo divino é tão
irresistível que todos acabariam cedendo em algum instante. [voltar]
5) Astros como Seres Racionais: livro I. 7 de De Principiis:
2. Então, em primeiro lugar vejamos qual juízo
pode-se descobrir acerca do sol, da lua e das estrelas – se a tese,
defendida por alguns, de sua imutabilidade está correta – e sejam as
declarações da santa Escritura, o tanto quanto possível, as primeiras
mencionadas. Já que Jó parece afirmar que não apenas estão as estrelas
sujeitas a pecar, mas também que elas não estão limpas do contágio por
ele. O seguinte são suas palavras: “As estrelas também não são limpas ao Teu olhar”
(cf. Jó
25:5). Nem isso deve ser entendido como o esplendor de sua substância
física, como se fosse para falar, por exemplo, de uma peça de roupa que
não está limpa; pois se tal fosse o significado, então a acusação de uma
limpeza insuficiente no esplendor de sua substância corporal implicaria
numa injuriosa reflexão quanto ao seu Criador. Pois se elas são incapazes
de, por meio de seus próprios esforços diligentes, adquirir por si mesmas
um corpo de maior brilho, ou por sua preguiça, tornar os que elas têm
menos puros, como deveriam incorrer em censura por serem estrelas que não
estão limpas, se elas não recebem nenhuma louvor por serem assim? 3. Mas para chegar a uma compreensão mais clara
dessas questões, devemos primeiramente indagar em sequência a esse ponto
se é permissível supor se elas são seres vivos e racionais; então, em
seguida, se suas almas vieram à existência ao mesmo tempo em que seus
corpos, ou se parecem ser anteriores a eles; e também se, após o fim do
mundo, entenderemos que elas serão libertadas de seus corpos; e se, como
cessamos de viver, então elas também cessaram de iluminar o mundo. Apesar
de esse questionamento poder parecer ser de algum modo ousado, no entanto,
como somos incitados pelo desejo de averiguar a verdade o tanto quanto
possível, não parece haver nenhum absurdo em tentar uma investigação do
assunto aprazível à graça do Espírito Santo. Pensamos, pois, que elas podem ser designadas como
seres vivos, por essa razão dizem que elas obedecem às ordens de Deus, que
é ordinariamente o caso com seres racionais. “Dei uma ordem a
todas as estrelas” (cf. LXX, Is. 45:12), diz o Senhor. Então, quais
são essas ordens? Aquelas, a saber, para que cada estrela, em sua ordem e
curso, conceda ao mundo a porção de esplendor que lhe tem sido confiada.
Pois aquelas que são chamadas de planetas se movem em órbitas de um tipo e
as que são chamadas de ap?a?e?? são
diferentes. Então, segue-se manifestadamente disso que nem pode o
movimento de tal corpo se dar sem uma alma, nem podem coisas vivas estar
em alguma circunstância sem movimento. E vendo que as estrelas se movem
com tamanha ordem e regularidade, que seus movimentos nunca aparentam
estar em alguma circunstância sujeitos a desordem, não seria o cúmulo da
insensatez dizer que tão ordenada observância de método e planejamento
pudesse ser executado ou concluído por seres irracionais? Nos escritos de
Jeremias, de fato, a lua é chamada de rainha do céu (Jr 7:18). Entretanto,
se as estrelas são seres vivos e racionais, indubitavelmente surgirão
entre elas tanto avanços e quedas. Já que a fala de Jó, “as estrelas não
são limpas ao Teu olhar”, parece-me transmitir algo de tal ideia. |
Aqui se pode
ver o raciocínio de Orígenes em ação, especulando seu sistema a partir de livre
associação de fragmentos da Bíblia. É bom notar como o caráter investigativo de
seu discurso foi transformado em afirmação dogmática pelos anátemas do concílio.
Os que creem que ele defendia uma reencarnação em moldes ocidentais modernos -
embora em outro mundo - favor atentar que para Orígenes de mundo habitado,
mesmo, existiria apenas a Terra (ou o Céu, pelos anjos, e o inferno, pelos
demônios), pois os corpos celestes não eram outras “moradas da casa do Pai”, mas
seres vivos a partilhar da culpa na queda original. Para Orígenes os mundos eram
sequenciais, um para cada era distinta. [voltar]
6) Limitação ao Poder de Deus: este é um caso em que
efetivamente podemos perceber uma alteração no texto feita pela tradução de
Rufino. Em sua tradução de De Principiis, II, 9 aparece:
1. (...) Mas voltemos à ordem de nossa discussão
pretendida e seja o princípio da criação, até onde a compreensão pode
contemplar o começo da criação de Deus. Em tal princípio, pois, temos de
supor que Deus criou um número tão grande de criaturas racionais ou
intelectuais (ou qualquer nome pelo qual devam ser chamadas) - que
anteriormente denominamos intelectos - o quanto Ele anteviu que seria
suficiente. É certo que os fez conforme algum número definido,
predeterminado por Ele mesmo: visto que não é para imaginar, como alguns
teriam, que as criaturas não têm limite, porque onde não há limite, não
pode haver nem compreensão, nem limitação alguma. Portanto, se fosse esse
o caso, então as coisas criadas não poderiam ser nem sujeitadas ou
administradas por Deus. Já que, naturalmente, o que quer seja infinito
será, também, incompreensível. Além disso, como diz a Escritura, “Deus organizou
todas as coisas em número e medida” (cf. Sb 11:20); e por isso um
número será corretamente aplicado às criaturas ou intelectos. (...) |
Agora compare
com o trecho extraído por da “Carta a Mena” escrita por Justiniano:
Um resumo dessa ideia pode ser encontrado na carta de
número XCVIII de Jerônimo, onde ele traduz para o latim a condenação que seu
contemporâneo – Teófilo de Alexandria – fez contra Orígenes. Nota-se que Rufino
manteve as linhas gerais do discurso original, mas sem dúvida o suavizou ao
estabelecer a finitude da criação como uma necessidade para ela mesma, e não uma
limitação divina.
Dado o nó lógico que uma onipotência absoluta pode causar,
limitações a ela retornariam à teologia cristã tempos depois. Obviamente os
teólogos tomaram mais cuidado que Orígenes para não “chocar” seu publico. Tomás
de Aquino, por exemplo, restringiu o conceito de onipotência a todos os atos que
não gerassem contradição. [voltar]
7) Ressurreição “Esférica”: Nenhuma obra de Orígenes que chegou até nós traz tal tese. Nem Justiniano o cita aqui para justificar seu anátema. Um artigo de J. Festugière – De la doctrine “origéniste du corps glorieux sphéroïde” – é rapidamente comentado em [Perrone, p. 1174, n. 30], lançando a hipótese de que essa acusação teria surgido a partir da equação “corpo da ressurreição = corpo glorioso = corpo astral = corpo esférico”, que toma como premissa que Orígenes pode ser simplesmente tratado como um representante da sabedoria helênica, que considerava a esfera como a forma mais perfeita.
A raiz de tal transformação pode estar no seguinte trecho
de De
Principiis:
Indícios dessa crença em ressurreição esférica já final do
o século IV são encontrados já condenação de Teófilo de Alexandria contra
Orígenes. Como o V Concílio também condena [cf. Evágrio Escolástico] um
origenista chamado Dídimo, o cego, pode ser dele essa tese. [voltar]
8) Aniquilação da Existência corporal: Há algumas
passagens na tradução de Rufino de De Principiis onde Orígenes discute se o término será
corpóreo ou não. A saber:
De Principiis
I.6.4 Mas já que Paulo disse que certas coisas são visíveis
e passageiras e outras, diferentemente, são invisíveis e eternas,
procedamos a indagar como essas coisas que são vistas são passageiras – se
é porque afinal não haverá nada delas em todos os períodos do mundo
vindouro, no qual aquela dispersão e separação do início vão sofrer um
processo de restauração para o mesmo e único fim e similitude; ou porque,
enquanto as formas das coisas que são vistas passam, sua natureza
essencial não está sujeita à corrupção. E Paulo parece confirmar a última
opinião quando diz, “pois a aparência deste mundo passa” (I Cor 7:31)
Davi também parece declarar o mesmo nas palavras, “Os céus passarão,
mas Tu permaneces; e eles envelhecerão como uma peça de roupa, e os mudará
como uma veste, e como uma vestimenta serão mudados” (Sl 102:26). Já
que os céus vão mudar, certamente o que é mudado não perece e se a
aparência do mundo passa, não é de forma alguma uma aniquilação ou
destruição de sua substância material que se demonstrará ocorrer, mas um
tipo de mudança qualitativa e transformação de aparência. Isaías também,
ao declarar profeticamente que haverá um novo céu e uma nova terra, sem
dúvida sugere a mesma opinião. Já que essa renovação de céu e terra, e
essa transmutação da forma do mundo presente, e essa mudança de céus será
sem dúvida preparada pelos que estão caminhando por aquela via que
assinalei acima e tendendo para aquela meta de felicidade a que, diz-se,
mesmo os inimigos terão de se submeter, e na qual se diz que Deus é “tudo
|
Aqui ficam
expostos dois aspectos da visão de Orígenes acerca da ressurreição: em primeiro,
alguma “essência” do corpo é preservada e a restauração se dá a partir dela e,
segundo, não há, nesse passo, um descarte da matéria original como muitos
espiritualistas tendem a pensar, mas, sim, sua transformação em outra mais
sutil. Fica em aberto a decisão de se haverá uma aniquilação dessa matéria sutil
num estágio final.
De Principiis
II.2.1-2 1. Neste tópico, alguns estão acostumados a indagar
se, como o Pai gera um filho incriado e produz um Espírito Santo, não como
se Ele não tivesse existência prévia, mas porque o Pai é a origem e a
fonte do Filho ou Espírito Santo, e não se pode depreender como alguma
anterioridade ou posteridade exista neles; assim também pode-se depreender
um tipo similar de união ou relacionamento subsistindo entre a natureza
racional e a matéria corporal entre as criaturas racionais e a matéria
corporal. E para que este ponto pode ser mais plena e completamente
examinado, o princípio da discussão é geralmente direcionado a indagar se
essa mesma natureza corporal, que sustenta as vidas e contém os movimentos
de mentes espirituais e racionais, será igualmente eterna como ela ou irá
perecer e ser destruída. E para que a questão possa ser determinada com
maior precisão, temos, em primeiro lugar, de indagar se é possível para
criaturas racionais permanecer completamente incorpóreas após terem
alcançado o ápice de santidade e felicidade (que me parece ser o mais
difícil e quase impossível logro); ou se devem sempre necessitar estar
unidas a corpos. Se, pois, alguém puder mostrar uma razão pela qual fosse
possível a elas dispensar inteiramente corpos, então acarretará em
consequência que como a natureza corporal - criada do nada após intervalos
de tempo - foi produzida quando não existia, ela deve cessar de ocorrer
quando o propósito para o qual serviu não tiver mais existência. 2. Se, contudo, for impossível sustentar-se esse
ponto completamente, digo, que qualquer outra natureza além do Pai, do
Filho e do Espírito Santo possa viver sem um corpo, a necessidade de
raciocínio lógico nos compele a entender que as naturezas racionais foram,
na verdade, criadas no começo, mas a substância material foi separada
delas somente em pensamento e compreensão e aparenta ter sido formada para
eles, ou depois deles, e que eles nunca viveram nem vivem sem ela; já que
uma vida incorpórea deve ser corretamente considerada como exclusiva da
Trindade. Como assinalamos acima, portanto, tal substância material deste
mundo, possuindo uma natureza passível de todas as transformações
possíveis, é, quando é arrastada abaixo para seres de ordem inferior,
moldada na condição mais grosseira e sólida de um corpo, a fim de
distinguir as formas variáveis e visíveis do mundo; mas quando ela se
torna a serva dos mais perfeitos e abençoados seres, brilha no esplendor
dos corpos celestiais e adorna tanto os anjos de Deus quanto os filhos da
ressurreição com o revestimento de um corpo espiritual, fora de tudo o
diverso e variável estado do mundo será preenchido. Mas se alguém desejar
discutir essas questões mais plenamente, será necessário, com toda a
reverência e temor a Deus, examinar as sacras Escrituras com maior atenção
e diligência, para averiguar se o sentido secreto e oculto dentro delas
possa talvez revelar qualquer coisa quanto a essas questões; e algo pode
ser descoberto em sua recôntida e misteriosa linguagem por meio da
demonstração do Espírito Santo àqueles que são dignos, após muitos
testemunhos terem sido reunidos sobre esse ponto. |
As duas opções
para o estado final dos seres racionais são reapresentadas no livro segundo, mas
não chega a decisão alguma.
No sexto
capítulo do terceiro livro, Orígenes se dedica a especular sobre os eventos do
fim dos tempos, em especial sobre a ressurreição. Após uma espécie de
recapitulação de ideias expostas anteriormente, ele deixa a cargo do leitor a
escolha entre a melhor alternativa sobre o estado final dos seres racionais.
Vale, porém, expor uma citação de Jerônimo, provavelmente extraída do mesmo
capítulo:
Jerônimo
– Carta a Ávito “Visto que, como nós já frequentemente observamos, o
começo é gerado outra vez a partir do fim, é uma questão se então haverá
corpos ou se a existência será mantida em alguma ocasião sem eles, quando
tiverem sido aniquilados, e assim a vida de seres incorpóreos deve ser
tida como incorpórea, como sabemos que é o caso de Deus. E não há dúvida
que se todos os corpos que são denominados visíveis pelo apóstolo
pertencem ao tal mundo sensível, a vida de seres incorpóreos será
incorpórea.” E um pouco depois: “Também aquela
expressão usada pelo apóstolo, 'Toda a criação será liberta do cativeiro
da corrupção para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus' (Rm 8:21), então
entendemos que dizemos que foi a primeira criação de seres racionais e
incorpóreos que não está sujeita à corrupção, porque não foi revestida com
corpos: pois se há corpos, a corrupção se segue imediatamente. Mas depois
ela [a criação] será liberta do cativeiro da corrupção, quando eles
tiverem recebido a glória dos filhos de Deus, e Deus será tudo
|
Comparando as
duas, temos uma tremenda contradição: Rufino expõe duas alternativas – uma
derivada da crença de que apenas a Trindade é puramente espiritual e outra a
partir da lógica de seu sistema -, mas não bate o martelo por nenhuma; ao passo
que Jerônimo age como se Orígenes apenas tratasse da aniquilação corporal, pois,
após uma primeira etapa de ressurreição corporal, os corpos espirituais ainda
poderiam se corromper. Cada um teria seus motivos para manipular. Rufino queria
continuar exibindo seu ídolo como aceitável aos olhos dos ortodoxos do final do
século IV, enquanto Jerônimo fez de sua carta para Ávito uma coletânea de
heresias.
Buscando uma
obra que não tenha chegado a nós pelas mãos de ambos, o quadro se torna mais
favorável ao relato de Rufino:
Por outro lado,
o origenismo evagriano, contemporâneo aos dois contendedores, oferece assertivas
em prol da aniquilação do corpo e que devem ter repercutido nos monges
palestinos do século VI:
Kephalaia Gnostika II. 17 Acompanhando o conhecimento que diz respeito aos
???????, a
destruição dos mundos, a dissolução dos corpos e a abolição dos nomes,
onde [aí] permanece a igualdade de conhecimento conforme a igualdade de
substâncias. |
Kephalaia
Gnostika II. 62 Quando os
??e? tiverem
recebido a contemplação que lhes diz respeito, então também toda a
natureza corporal será removida; e assim a contemplação que diz respeito a
ela será imaterial. |
9) Término do reino de Cristo: Reapresentando De Prinicipiis
III.3.9:
Citada apenas
nos anátemas de 553 – e, portanto, sem as citações e refutações de Justiniano
que acompanham os de 543 - é um tanto estranho que uma mera alegação do “fim do
reinado de Cristo” cause tanto alvoroço, quando ela mesma possui base bíblica
E, então,
virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver
destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. Porque
convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés.
O último inimigo a ser destruído é a morte. |
Isso representa
apenas um fim do processo de salvação e redenção de Cristo, que Orígenes adaptou
ao seu sistema. Talvez, como será visto mais abaixo, com a dissolução do próprio
Nous-Cristo com os demais intelectos numa apocatástase panteísta, conforme o
origenismo tardio, isso passou a ser rejeitado.
10) Restauração universal: ver item quatro –
crucifixão por demônios. De certa
forma não está claro se Orígenes aceitaria a salvação de demônios com a mesma
facilidade que a homens pecadores. Pode-se alegar de Orígenes tenha mudado suas
declarações públicas quando o bispo de Alexandria começou a persegui-lo, embora
isso não coadune com a ideia sugerida por seu sobrenome (ou apelido): Adamâncio
– “homem de ferro”. Ou apenas trouxesse à baila uma opinião necessária à
teologia investigativa de De Principiis, mas que não partilhasse em termos
dogmáticos. [voltar]
11) Dissolução panteísta: Da carta a Ávito de Jerônimo:
E após
uma discussão muito longa, na qual declara que toda a natureza corporal
deve ser mudada em corpos espirituais de extrema sutileza e que toda a
matéria deverá ser transformada num simples corpo da máxima pureza, mais
claro que todo o brilho e de tal qualidade que a mente humana não pode
conceber. Ao final declara: “’E Deus será tudo em todos’, de forma que toda a
natureza possa ser mesclada em tal substância que é superior a todas as
outras, ou seja, na divina natureza, que nada pode superar.” |
Uma lida nessa
“discussão muito longa” pode demonstrar que Jerônimo simplificou demais as
coisas aqui:
De Principiis, IV.4.8-9 É necessário que a natureza dos corpos não seja
primária, mas que tenha sido criada em intervalos em função de certas
quedas que ocorreram com seres racionais, que vieram a necessitar de
corpo; e que mais uma vez, quando sua restauração é perfeitamente
alcançada, esses corpos são dissolvidos em nada, de forma que isso está
acontecendo para sempre (...) Todo aquele que partilha de alguma coisa é, sem
dúvida, de uma substância e uma natureza com quem partilha da mesma coisa.
Por exemplo, todos os olhos partilham da luz, e portanto todos os olhos,
que partilham da luz, são de uma natureza. Mas apesar de todo o olho
compartilhar da luz, como um olho vê claramente e outro de forma embaçada,
cada olho não partilha igualmente da luz. E ainda; todo ouvinte percebe a
voz e o som e, portanto, todo ouvinte é de uma natureza; mas cada pessoa é
rápida ou lenta na proporção à pura e saudável condição de sua faculdade
auditiva.
Então, passemos desses exemplos extraídos dos sentidos para a
consideração das coisas intelectuais. Cada mente que partilha da luz intelectual deve, sem
dúvida, ser de uma natureza com cada outra mente que partilha da nessa luz
de forma similar. Então se os poderes celestiais recebem uma parte de luz
intelectual, i.e., da natureza divina, em virtude do fato que partilham da
sabedoria e santificação, e se a alma do homem recebe uma parte da mesma
luz e sabedoria, então esses seres serão de uma natureza e uma substância
com cada outra mente. Mas as potestades celestes são incorruptíveis e
imortais; portanto sem dúvida a substância da alma do homem também é
incorruptível e imortal. E não apenas isso, mas como a natureza do Pai, do
Filho e do Espírito e Espírito Santo, a quem somente pertence a luz
intelectual de que a criação universal partilha, é incorruptível e eterna,
segue logicamente e de necessidade que toda existência que tenha uma parte
da natureza eterna deva ela mesma também permanecer para sempre
incorruptível e eterna, a fim de que a eternidade da divina bondade possa
ser revelada nesse fato adicional, para que elas que obtêm a bênção sejam
eternas também. Contudo, exatamente como em nossos exemplos, reconhecemos
alguma diversidade na recepção da luz quando descrevemos o poder
individual de visão como sendo embaçado ou aguçado, então também devemos
reconhecer uma diversidade de participação no Pai, no Filho e no Espírito
santo, variando em proporção à sinceridade da alma e à capacidade da
mente. (...) (121) |
Já no Livro de
Hierotheos, do século VI, o discurso se tornou francamente panteísta, para não
dizer pan-niilista, com o término até da própria Trindade. [voltar]
***
Existe uma
ponte entre os anátemas de 543 e os dez anos depois. Ela é uma lista feita por
um origenista desertor (ou obrigado a se retratar) – Teodoro de Citópolis - chamada Libelo sobre os erros
de Orígenes. Nela constam quase literalmente os nove anátemas de 543, mas
existem um três acréscimos que mostram as inovações desenvolvidas no partido
isochrista (122):
(4) O
reinado de Cristo terá um término. (11) “Seremos iguais a
(...) nosso redentor Cristo, nosso Deus; e o Deus-Logos deve ser unido a
nós, como ele foi unido à carne recebida de (...) Maria, conforme a
substância e a hipóstase”. (12) Os
corpos, o de Cristo também, estão destinados à dissolução. |
São inovações a
mostrar que o objeto tratado pelo V Concílio foi uma mescla do origenismo
tradicional com os partidários de ideias herdadas de Evágrio através de Bar
Sudaili. Não conseguindo separar claramente um dos demais, Justiniano e outros
teólogos ortodoxos do século VI efetivamente condenaram o conjunto todo, o que
será visto em detalhes no capítulo a seguir.
Notas:
(109) Por exemplo, I
Enoque, cap. 6-11. Uma edição está disponível
(110) “Dizei se a minha
infância sucedeu a outra idade já morta ou se tal idade foi a que levei no seio
da minha mãe? E antes deste tempo, que era eu, minha doçura, meu Deus? Existi,
porventura, em qualquer parte, ou era acaso alguém. Não tenho quem me responda,
nem meu pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória.
(...)”? (Confissões, livro I, cap. VI). Esta dúvida sempre acompanhou
Agostinho, que nunca se definiu como sendo a favor ou contra a existência antes
do nascimento, preferindo assumir sua ignorância quanto à origem da alma:
Pois você [Vincêncio Vítor] não apenas caluniou com
sua censura os que são afligidos com a mesma ignorância sob a qual eu
próprio estou penando, quero dizer, no que diz respeito à origem da alma
humana (apesar de eu não ser absolutamente ignorante mesmo quanto a esse
ponto, pois sei que Deus soprou a face do primeiro homem, e tal “homem então se
tornou alma vivente” [Gn 2:7] – uma verdade, porém, que eu nunca soube
por conta própria, exceto o que lera na Escritura); mas você perguntou tão
sucintamente. “Qual diferença há entre um homem e uma fera selvagem,
se ele não sabe como discutir e determinar sua própria qualidade e
natureza?” E você parece nutrir sua opinião tão distintamente, como
tendo pensado que um homem deva ser capaz de discutir e determinar
completamente os fatos de própria qualidade e natureza tão distintamente,
de modo que nada acerca de si mesmo deva escapar de sua observação. Agora,
se isto é realmente a verdade da questão, devo, então, compará-lo “ao
gado” se não puder me dizer o número preciso de fios de cabelo da sua
cabeça. Mas se, apesar do quanto possamos avançar nesta vida, você nos
permitir sermos ignorantes de diversos fatos pertencentes a nossa
natureza, então eu quero sabe o quão longe sua concessão se estende, que,
porventura, pode incluir o mesmo ponto que estamos tratando agora, que de
qualquer maneira não sabemos a origem de nossa alma, apesar de sabermos -
algo que pertence à fé – além de qualquer dúvida, que a alma é um presente
de Deus ao homem, e ainda que ela não é da mesma natureza do próprio
Deus. Da Alma e
Sua Origem, Livro I, cap. III |
Como muitos
espiritualistas esquecem, vale lembrar que, para Agostinho, o destino da alma
após a morte era bem definido: redenção ou danação eternas.
Devo agora, vejo eu, entrar na arena de afável
controvérsia com aqueles cristãos compassivos que renegam em acreditar que
qualquer ou todos os que o infalivelmente justo Juiz possa declarar
merecedor do castigo do inferno, sofrerá eternamente e quem supõe que eles
serão enviados a um período fixo de castigo, maior ou menor de acordo com
a quantidade de pecado de cada homem. Quanto a esta questão, Orígenes foi
ainda mais indulgente; pois acreditava que mesmo o próprio diabo e seus
anjos, depois de sofrerem das mais severas e prolongadas dores a que seus
pecados estão reservados, devam ser libertados de seus tormentos e
associados com os santos anjos. Mas a Igreja, não sem razão, condenou-o
por este e outros erros, especialmente por sua teoria de alternâncias
incessantes entre felicidade e miséria e uma interminável transição de um
estado a outro em períodos de eras fixas; pois nesta teoria ele perde
mesmo o crédito por ser misericordioso, ao distribuir aos santos misérias
verdadeiras misérias para a expiação de seus pecados e falsa felicidade,
que não lhes traz nenhuma alegria verdadeira e segura, isto é, uma
destemida certeza da eterna redenção. Muito diferente, porém, é o erro de
que falamos, que é ditado pela compaixão destes cristãos que supõem que os
sofrimentos dos que forem condenados no julgamento será temporário, ao
passo que a redenção de todos que serão cedo ou tarde libertos será
eterna. Cidade de
Deus, XXI, 17 |
(111) Nesta
citação, a referência segue a uma divisão do quarto livro de De Principiis em
parágrafos feita pela edição de Schaff na Ante-Nicene Fathers. Nos demais livros, a divisão é
feita em capítulos e parágrafos.
(112)
Comentário sobre a Epístola aos Romanos, I.5
Ele, que era um filho segundo a carne, veio realmente
da semente de Davi. Sem dúvida ele se tornou o que anteriormente não era,
segundo a carne. Segundo o Espírito, porém, primeiramente existia e nunca
houve um tempo em que não existiu. |
Existiu durante
a controvérsia ariana o slogan: ?? p?te ?ote ??? ?? - “houve um
tempo quando ele não era (i.e. não existia)”, referindo-se ao tempo antes de o
Filho ser criado. Aqui e
(113) Contra Celso, VI,
47.
Nada há de espantoso se, declarando que a alma de
Jesus está unida ao altíssimo Filho de Jesus por uma participação suprema
com ele, não a separamos mais dele. As santas palavras das divinas
escrituras conhecem igualmente outros exemplos de seres que, embora sendo
dois por natureza, são considerados e constituem uma só essência um com o
outro. Por exemplo, diz a escritura a respeito do homem e da mulher: “Já não são dois,
mas uma só carne” (Gn 2:24; Mt 19:6); e do homem perfeito unido ao
Senhor verdadeiro, logos, sabedoria, verdade: “Aquele que se une
ao Senhor, constitui com ele um só espírito” (I Cor 6:17). Ora, se “aquele que se une
ao Senhor, constitui com ele um só espírito”, quem então melhor ou
tanto quanto a alma de Jesus se acha unido ao Senhor, o logos em pessoa, a
sabedoria em pessoa, a verdade em pessoa, a justiça em pessoa? Sendo
assim, a alma de Jesus e o Deus logos, “primogênito de
toda criatura” (Cl 1:15), não são dois. |
(114) Na edição
da coleção “Os Pensadores”, vol. XXIII, p. 148, Abril Cultural, 1973
Constantino convocou em Niceia, sita defronte
Constantinopla, o primeiro concílio ecumênico, ao qual presidiu Ózio. Ali
se resolveu o grave problema que, por então, dividia a Igreja, a respeito
da divindade de Jesus Cristo. Uns fundavam-se na opinião de Orígenes, que
afirma no capítulo 6 contra Celso: “Fazemos as nossas preces a Deus por intermédio de
Jesus, que se conserva entre as naturezas criadas e a natureza incriada,
que nos traz graça de seu Pai e leva nossas orações ao grande e poderoso
Deus, na qualidade de nosso pontífice”. |
Pode-se ver que
os pormenores da união da alma de Jesus com o Filho para gerar um ser
intermediário (o “homem-Deus”) e a co-eternidade entre Pai e Filho eram
desconsiderados pelos arianos.
(115) Mônada –
palavra que assumiu vários sentido ao longo do tempo, conforme o sistema
filosófico-teológico que se apropriou dela. Segundo a Enciclopédia Católica:
Mônada, no
sentido de “unidade última, indivisível” aparece cedo na história da
filosofia grega. Nos antigos registros das doutrinas de Pitágoras, aparece
com o nome de unidade a partir da qual, como se um princípio (arché), todas
as enumerações e multiplicidades foram derivados. Nos “Diálogos”
platônicos, é usada no plural (monades) como um sinônimo para as Ideias. Na
“Metafísica” de Aristóteles, ocorre como o princípio (arché) de
enumeração, ele mesmo sendo vazio de quantidade, indivisível e imutável. A
palavra mônada é usada pelos neo-platônicos para significar o Uno; por
exemplo, nas cartas do cristão platônico Sinésio, Deus é descrito como a
Mônada das Mônadas. |
(116)Molland
[Origen, 5, p.159] é um que estabelece a salvação do demônio como consequência
lógica do sistema de De Principiis. O que outros autores, como Henri Crouzel
[Crouzel, XIII, p.262- 265] e Fr. Tadros Malaty [Malaty, p.253 - 261] (que
também se vale de Crouzel) tentam averiguar é a ausência de um raciocínio tão
linear assim dentro e fora de De Principiis. Mais precisamente, eles tentam
estabelecer uma separação entre o que Orígenes tratou na teologia especulativa
de De Principiis
e seu discurso em tratados dogmáticos.
A principal
crítica de Crouzel aos que defendem uma restauração universal é o fato de só
prestarem atenção na lógica do sistema de De Principiis, deixando de lado as nuanças e
alternativas que também são discutidas. O diálogo que Jerônimo comenta entre
Orígenes e Cândido (a ser visto mais adiante) insinua que Orígenes não se
prendia a uma camisa de força teológica. Para Crouzel [p. 264], Orígenes estaria
mais inclinado a aceitar a punição eterna para demônios que para humanos e
algumas passagens como a Homilia
(117) O leitor
deve ter reparado na contradição entre a cristologia origenista proto-ariana
comentada por Jerônimo no diálogo entre Orígenes e Cândido e a contida em outras
obras citadas anteriormente, e que foi até usada por Atanásio. Bem, há duas
formas de conciliar isso: (1) considerar como aqui presente uma mudança de
pensamento do teólogo ou (2) analisar a tese de [Crouzel, IX, p. 174-175] de que
Jerônimo às vezes se enrolava quanto ao significado de alguns termos gregos:
Nas acusações trazidas contra Orígenes, questões de
vocabulário ainda têm seu papel: através de sua falta de senso histórico e
conhecimento, seus detratores leram em expressões que ele usava o
significado que elas tinham em seus dias, o que não era o de Orígenes.
Assim, no prefácio de De Principiis ele declara, conforme a versão de
Rufino, que ‘Cristo nasceu (natus) do Pai antes de toda criação’ e então
pergunta se o Espírito Santo ‘nasce ou não’. Na carta |
(118) A coleção
Ante-Nicene
Fathers de Schaff numera sua edição de Commentary of the Gospel of John por livros e
capítulos, porém só abarca até o livro X. Os demais livros foram extraídos da
coleção The Fathers
of the Church da Catholic University Press, que prefere
numerar por livro e parágrafo.
(119) Antes que alguém saia falando besteira, Orígenes, ao
dizer que o diabo é “uma mentira”, não alega ser ele uma figura fictícia, mas,
sim, que a natureza de sua essência é a de um mentiroso. Quanto à citação de
Ezequiel, a palavra “destruição” consta na LXX, mas não no massorético. A
leitura “não existirás para sempre” não existe em nenhum deles dois. Talvez
Orígenes tivesse um manuscrito de outra tradição ou teve um ato falho ao tentar
citar de cor.
(120) O “Diálogo de Orígenes com
Heráclides e seus Companheiros Bispos sobre o Pai, o Filho e a Alma” é uma
transcrição estenográfica de um encontro com bispos similar a um sínodo, na
presença de leigos, para discutir questões de fé e adoração. Nele Orígenes
aparece como líder
autoritativo da discussão. Foi encontrado junto à outra obra de Orígenes – Peri Pascha (Sobre
a Páscoa) – em um de papiros encontrados na cidade de Tura, Egito.
(121) Esta
citação foi extraída de [Malaty, p. 271-273], que traz uma transcrição da edição
de Butterworth/Koetschau. Por alguma razão ignorada, a edição de Phillip Schaff
não traz o livro IV integralmente, mas apenas a parte onde o texto latino de
Rufino tem um equivalente grego preservado
(122) Extraído
de [Grillmeier, parte III, cap. III, p. 406]. A referência direta para o
original é Patrologia Graeca, vol. LXXXVI, cols.
232b-236b.
16 – Orígenes e o V Concílio
Afinal qual foi
o peso do V Concílio Ecumênico na condenação de Orígenes? Não é muito difícil
encontrar argumentos buscando diminuir a autoridade do Concílio de 553, seja
pela, entre outras coisas, pouca participação dos bispos do ocidente (123), pelo
fato de papa ter sido coagido, pela ausência de uma condenação explícita ao
origenismo nas atas do concílio. A maioria deles deriva de um artigo publicado
por Franz Diekamp (124) que foi transmitido
indiretamente a muitos pela Enciclopédia Católica
(125). Outros estudiosos como [Bury, cap. XXII, p. 383, nota 5] e [Crouzel,
cap. IX, p. 178] também se valeram desse artigo, em especial o último, que
mostra um viés para defender Orígenes como ortodoxo. Por outro lado, outra safra
de historiadores (126) defende, sim, que Orígenes tenha sofrido condenação e,
baseando-se neles e nas fontes primárias aqui expostas, muitas fraquezas em seus
argumentos são assinaladas. Por exemplo, tomando o que é dito na Enciclopédia Católica.
1.
É certo que o quinto concílio geral foi convocado exclusivamente para tratar com
a questão dos Três Capítulos e que nem Orígenes ou o origenismo foram a causa
dele.
Pode ser que
quando Justiniano já tinha em mente a convocação do Concílio para tratar dos
Três Capítulos, a chegada de uma delegação palestina tenha lhe dado uma razão a
mais. De qualquer forma, historiadores da Alta e Baixa Idade Média (Evágrio
Escolástico, Cirilo de Citópolis, Teófanes Confessor, Jorge Cedreno) dão ambas
as questões como pertencentes ao Concílio. A ênfase que cada cronista dá a cada
depende da importância pessoal que tinha para ele. Não é a toa que o palestino
Cirilo coloca o origenismo em realce, ao passo que o bispo africano Vitor de Tonena
é silente sobre ele (127).
2.
É certo que o concílio abriu em 5 de maio, 553, apesar dos
protestos do Papa Vigílio, que, embora em Constantinopla, recusou-se a
comparecer a ele, e nas oito sessões conciliares (de 5 de maio a 2 de junho)
apenas a questão dos Três Capítulos é tratada nas Atas que possuímos.
O nome de
Orígenes é explicitamente citado numa
das atas. Houve suspeitas por alguns autores de que isso fosse uma
inserção posterior, mas, como observou Hefele (Hist.
Councils, Vol. iv., p. 336. Em
nota do mesmo link). Todas elas
são fracas. E a principal dificuldade delas é ter de explicar a presença do
rumor da condenação de Orígenes desde os tempos de Justiniano (128).
3.
Finalmente, é certo que apenas as Atas a respeito da
questão dos Três Capítulos foram submetidas ao papa para sua aprovação, que foi
dada em 8 de dezembro, 553, e 23 de fevereiro, 554.
Não é o que é
dito por Evágrio Escolástico. A condenação de Orígenes fora aprovada até antes
de as discussões quanto aos Três Capítulo começarem.
4.
É um fato que os Papas Vigílio, Pelágio I (556-61), Pelágio
II (579-90), Gregório, o Grande (590-604), ao tratarem do concílio, lidam apenas com os
Três Capítulos, não fazendo nenhuma menção do origenismo e falam como se não
soubessem de sua condenação.
Justamente
porque os Três Capítulos constituíam a questão problemática no ocidente, a ponto
de provocar um cisma da diocese de Aquileia. A condenação ao origenismo, por sua
vez, não encontrou resistência. Vale lembrar que Cassiodoro declara ter Vigílio
realmente condenado Orígenes (não deixa claro se foi em 543 ou 553) e que
Pelágio I, como vimos, estava envolvido com a condenação de 543, em seus tempos
de aprocrisário.
5.
Deve-se admitir que antes da abertura do concílio, que fora
postergada pela resistência do papa, os bispos já reunidos em Constantinopla
tiveram de analisar, por ordem do imperador, uma forma de origenismo que não
tinha nada em comum com Orígenes, mas que era professada, como sabemos, por um
dos partidos origenistas na Palestina. Os argumentos em corroboração desta
hipótese podem ser encontrados em Dickamp (op. cit., 66-141).
Meia-verdade.
Boa parte dos anátemas contra
Orígenes atribuídos (em outro documento) ao V Concílio possuem
passagens correspondentes
Uma das defesas
que podem ser dadas para Orígenes é separar o teólogo investigativo do
comentarista e apologista. Assim fez Pânfilo, Jerônimo (em algum grau) e
Cassiodoro. Em tempos recentes, Henri Crouzel se mostra o maior entusiasta dessa
linha de ação, reunindo tudo o sobrou da obra de Orígenes para montar um retrato
o mais complexo possível dele. Conforme novas obras sejam desenterradas de algum
ermo lugar, talvez um quadro ainda mais paradoxal surja.
6.
Os bispos certamente subscreveram aos quinze anátemas
propostos pelo imperador (ibid., 90-96); e um origenista confesso, Teodoro de
Citópolis, foi forçado a se retratar (ibid., 12-129); mas não há prova que a
aprovação do papa, que se encontrava na ocasião protestando contra a convocação
do concílio, foi solicitada.
O papa não
protestou contra a condenação a Orígenes feita em 543. Aliás, nenhum dos
patriarcas. O ponto realmente nevrálgico era a questão dos Três Capítulos.
7.
É fácil de entender como essa sentença extra-conciliar foi
mal interpretada num período posterior como um decreto do verdadeiro concílio
ecumênico.
É mais fácil
ainda entender o conflito daqueles que querem resgatar Orígenes (ou pelo menos
parte dele) para a ortodoxia e ao mesmo tempo têm dificuldade em peitar a
decisão de um Concílio. As estratégias vão desde remover a autoridade do V
Concílio até a dissociação de Orígenes do objeto da condenação. Ambos os
extremos apresentam certa justificativa e algumas dificuldades. A principal
causa do Concílio – a questão dos Três Capítulos – teve, de fato, forte
interferência política de Justiniano, mas seu argumento teológico era válido, já
que teólogos acusados tinham, sim, um viés nestoriano. Orígenes não era apenas o
que os anátemas condenaram; contudo, algo dele estava lá.
O efeito
imediato do V Concílio não foi a suposta reviravolta nos rumos que a cristandade
trilhava desde os tempos dos mártires. Muito pelo contrário, seu efeito foi bem
mais pífio do que muitos espiritualistas gostariam que fosse (ou de
admitir):
A
condenação do origenismo em 553 não teve o eco de alcance mundial que a
disputa dos Três Capítulos criaria. A disputa foi bem sucedidamente
decidida em particular com os monges afetados antes e, dentro desse grupo,
especialmente os monges da Palestina. Mesmo lá, ele afetou
predominantemente, conforme os princípios do evagrianismo ascético, apenas
uma classe, na verdade um exótico grupo de monges, que após uma dura praktike
estavam treinados para a theoria e, após essa preparação, confessavam a
extrema cristologia evagrianista. Contudo, é adequado notar a explosiva
natureza dessa posição. Foi apenas no século sexto que ela teve efeito,
como os cânones de 553 e, posteriormente, nossas exposições sobre o
patriarcado de Jerusalém mostrarão. [Grillmeier, parte III, cap. III, p. 408] |
Em longo prazo,
a consequência mais infeliz do Concílio foi ter acelerado o processo de perda do
“Orígenes histórico”, que já se iniciara no século IV. Já nessa época passou a
predominar um “Orígenes lembrado”, que não era mais visto como alguém que tentou
dar consistência lógica à teologia cristã, a fim de combater o assédio de
hereges gnósticos e marcionistas, além angariar o respeito de filósofos pagãos.
Os gnosticismo e marcionismo já eram declinantes e, com o cristianismo no poder,
não era mais preciso obter respeito de pagãos, bastava coagi-los. Por outro
lado, novas e poderosas dissidências surgiram e que, devido a uma ou outra
semelhança superficial, passaram a ser associadas ao alexandrino, embora ele
talvez as combatesse caso fosse contemporâneo.
O processo de
perda deve ter se iniciado com a condenação do patriarca alexandrino Teófilo, na
virada entre os séculos IV e V. No arranca-rabo entre Jerônimo e Rufino,
apresentam-se menções a diálogos e cartas que hoje não existem mais. Parte das
obras pode, sim, ter se perdido devido a sucessivas séries de condenações. O
feliz achado do “Diálogo de Heráclides” e “Sobre a Páscoa” em 1941, numa caverna
da localidade de Tura, Egito, ao sopé de um mosteiro grego abandonado, ocorreu
em circunstâncias que reforçam essa tese. Os códices estavam escritos em letra
uncial cóptica do século VII – indicando que mesmo depois do V Concílio,
Orígenes ainda era copiado -, porém com as capas removidas, talvez para
reutilização. Isso seria um sinal de que os monges os teriam descartado como
material herético (ou lixo), em vez de protegê-los de alguma perseguição (129).
A destruição
não deve ter sido sistemática e arrasadora, mas uma gradual extinção dos códices
antigos que não eram repostos por novos. Quando os livros eram feitos à mão e em
edições limitadas, bastava simplesmente deixar de copiá-los para que a ação
corrosiva do tempo, o descuido, o desinteresse, ou o puro e simples azar
fizessem o resto (130).
Fócio,
patriarca de Constantinopla no século IX, escreveu famosa coletânea de resenhas
– Myriobiblon ou
Biblioteca –
dedicadas a seu irmão, quando era embaixador bizantino junto à corte árabe dos
Abássidas. Nela constam obras de teólogos cristãos, escritores pagãos, oradores,
gramáticos, sendo que várias delas não chegaram até nós. Na oitava resenha,
lê-se:
Lidos os
quatro livros de Sobre os Primeiros Princípios de Orígenes. O
primeiro lida com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nesse, suas
declarações são frequentemente blasfemas; assim ele declara que o Filho
foi criado pelo Pai, o Santo Espírito pelo Filho; que o Pai permeia todas
as coisas existentes, o Filho apenas as que são dotadas de razão, o Santo
Espírito apenas os que estão salvos. Também faz outras estranhas e ímpias
declarações, entregando-se a frívolas conversas sobre a migração de almas,
as estrelas sendo vivas e coisas similares. O primeiro livro é repleto de
ficções sobre o Pai, Cristo (como ele chama o Filho), o Espírito Santo e
as criaturas dotadas de razão. No segundo livro, ele trata do mundo e das
coisas criadas. Assevera que o Deus da Lei e dos profetas, do Antigo e
Novo Testamento, é um e o mesmo; que havia o mesmo Espírito Santo em
Moisés, no resto dos profetas e nos Santos Apóstolos. Posteriormente
discute a Encarnação do Salvador, a alma, a ressurreição, o castigo e as
promessas. O terceiro livro lida com o livre-arbítrio; como o diabo e os
poderes hostis, segundo as Escrituras, empreendem guerra contra a
humanidade; que o mundo foi criado e é perecível, tendo tido um começo no
tempo. O quanto livro trata da consumação final, da divina inspiração das
Escrituras, e da maneira correta de lê-las e compreendê-las. |
Não se sabe se
Biblioteca foi
compilada a partir de livros lidos antes de sua partida para o exterior ou ela
também contém obras que foram preservadas e traduzidas pelos árabes. O fato é
que Fócio – cerca de três séculos após o V Concílio - ainda dispunha de um
exemplar de De
Principiis que não pertencia à tradição de Rufino.
Pelo menos três
eventos da Idade Média assinalaram a perda definitiva desse exemplar e de outras
obras de Orígenes:
1.
A destruição da Biblioteca de Cesareia – Fundada pelo
próprio Orígenes e incrementada por seu discípulo Pânfilo, tornou-se afamada
biblioteca cristã do fim da Antiguidade. Foi importante centro produtor de
Bíblias no
século IV, quando contou com a presença de importantes pais da Igreja, como
Eusébio e Jerônimo. Foi destruída por volta de 637, pela devastação ocorrida e
Cesareia durante a conquista árabe. O exemplar da Bíblia multilíngue de
Orígenes, a Hexapla, deve ter sido perdido aí, pois, devido ao seu
tamanho colossal, nunca foi copiado integralmente.
2.
A Quarta Cruzada – Planejada originalmente contra o Egito,
interesses comerciais dos venezianos – responsáveis pelo transporte das tropas -
acabaram envolvendo os cruzados em um conflito dinástico
3.
A conquista mongol de Bagdá em 1257 – Apesar de um começo
pouco amistoso com o ocidente (131), os árabes se tornaram grandes difusores do
antigo saber grego. Porém, quando o esplendor de seu império passou, viram-se
assolados por uma série de invasores. Um deles, Hulagu Khan, descendente do
famoso Gêngis Khan, após uma carnificina de 500 mil vítimas, lançou os
manuscritos da biblioteca municipal no rio Tigre.
Esses dois
últimos episódios assinalaram o fim de boa parte do acervo de que Fócio se valeu
(132). A conclusão foi a aniquilação de diversas obras de autores que não foram
o suficiente copiados em outros lugares para sobreviver a um infortúnio local.
Alguns manuscritos escaparam por um triz: “Contra Celso” de Orígenes, por
exemplo, sobrevive completo em apenas um manuscrito do século XIII, pertencente
à biblioteca do Vaticano. Outros fragmentos da obra são encontrados na coletânea
de Basílio e Gregório, Philocalia Gnostica, redigida no século IV, mas cujos
manuscritos mais antigos datam do século X. As edições modernas desse livro
dependem exclusivamente da análise crítica dessas duas tradições (133).
Com uma visão
cada vez mais nebulosa de Orígenes, um novo enfoque de sua figura foi criado com
o advento do espiritualismo moderno: o de um mártir reencarnacionista. Daí vêm
as perguntas: baseando-se naquilo que sobrou de sua obra, o quanto esse retrato
de Orígenes corresponde ao do passado? O quanto é invenção, distorção ou pura
ignorância? Bem, passemos ao próximo capítulo.
Notas:
(123) Vigílio queria divisão meio a meio entre membros do
oriente e do ocidente, porém Justiniano forçou uma divisão por
patriarcados (Roma, Constantinopla, Antioquia, Jerusalém e Alexandria), o que
deixou o papa em evidente desvantagem. Para piorar, o boicote dos bispos
ocidentais nem permitiu que completasse sua cota. Cf. Catholic Encyclopedia – Second Council of
Constantinople.
(124) Die origenistichen Streitigkeiten, Munster, 1899. Vale ressaltar que Meyendorff [p. 221, nota nº 10] também usa esse mesmo
artigo para corroborar justamente a condenação de Orígenes, tendo Diekamp
assinalado o testemunho de contemporâneos, de autores medievais e até do papa
Nicolau I (858-867) em favor de uma condenação integral (Três Capítulos e
origenismo) feita pelo Concílio. Infelizmente não disponho dele para verificar,
mas podem ter ocorridos usos parciais desse artigo feitos por grupos de opiniões
opostas.
(125) Vide
notas (94) e (95). Kersten, também nas “Considerações Finais” de seu “Jesus Viveu na
Índia”, possui um parágrafo que parece ter sido adaptado de Catholic Encyclopedia, “Origen and
Origenism”:
Na verdade, os documentos que lhe foram apresentados
(os assim-chamados "Três Capítulos") versavam apenas sobre a disputa a
respeito de três eruditos que Justiniano, há quatro anos, havia por um
edito declarado heréticos. Nada continham sobre Orígenes. Os Papas
seguintes, Pelágio I (556-561), Pelágio II (579-590) e Gregório (590-604),
quando se referiram ao quinto Concilio, nunca tocaram no nome de
Orígenes. |
(126) Cf.
[Meyendorff, p. 48-49]
(127) Vítor de
Tonena não fala da questão origenista explicitamente, mas não devia
desconhecê-la, pois cita a defesa dos Três Capítulos feita por Facundo de
Hermiano [Victoris Tonnennensis, p. 202].
(128)
Traduzindo o texto da Christian Classics Ethereal Library
XI Cânon
do V Concílio
“Se alguém não anatematizar Ário, Eunônio, Macedônio, Apolinário, Nestório, Eutíquio e Orígenes, bem como seus ímpios escritos, como também todos os heréticos já condenados e anatematizados pela Santa, Católica e Apostólica Igreja, e pelos supracitados quatro Santos Sínodos e [se alguém não anatematizar igualmente] todos os que sustentaram e sustêm ou que em sua impiedade persistem em suster até o fim a mesma opinião daqueles heréticos já mencionados: que seja anátema.” Hefele
(Hist. Councils, vol. IV, p. 336) Halloix,
Garnier, Basgane, Walch e outros supõem, e Vincenzi sustém com grande
zelo, que o nome de Orígenes é uma inserção posterior nesse anatematismo,
porque (a) Teodoro Ascidas, o origenista, foi um dos mais influentes
membros do Sínodo e certamente teria evitado a condenação de Orígenes;
além disso, (b) porque nesse anatematismo apenas tais heréticos deveriam
ser nomeados como tendo sido condenados nos quatro primeiros Sínodos
Ecumênicos, que não é o caso de Orígenes; (c) porque esse anatematismo é
idêntico ao décimo na ?µ?????a
do
imperador, mas nesta última o nome de Orígenes está ausente e, finalmente,
(d) porque Orígenes não pertence ao grupo dos heréticos a quem o
anatematismo se refere. Os erros dele eram bem diferentes. Todas
essas considerações me parecer ser de força insuficiente, ou mera
conjectura, para fazer uma alteração no texto e arbitrariamente remover o
nome de Orígenes. Quanto a objeção em relação a Teodoro Ascidas, sabe-se
que este pronunciara uma anátema formal contra Orígenes e certamente fez o
mesmo desta vez, se o imperador assim desejou e assim parecia aconselhável
(*). A segunda e quarta objeções têm pouco peso. Quanto à terceira (c), é
bem possível que ou o imperador subsequentemente foi além do estava em sua
?µ?????a, ou que os bispos no quinto Sínodo, de comum acordo,
adicionaram Orígenes, seja por um ou outro antiorigenista em seu meio. O
que, contudo, principalmente nos leva a manter o texto é: que a cópia das
Atas sinodais restantes nos arquivos romanos, que tem a mais alta
credibilidade e foi provavelmente preparada para o próprio Vigílio, contém
o nome de Orígenes no décimo primeiro anatematismo; e (b) que os monges do
nova Lama (**) na Palestina,
que são conhecidos por seres zelosos origenistas, retiraram-se da comunhão
eclesiástica dos bispos da Palestina depois destes terem subscrito as Atas
do quinto Concílio. No anátema contra os Três Capítulos, esses origenistas
poderiam encontrar muito pouco fundamento para tal ruptura com seus amigos
e seu antigo colega Ascidas; isso só poderia ser pelo ataque do sínodo ao
seu querido Orígenes. (c) Finalmente, apenas baseando-se que o nome de
Orígenes realmente aparecia no décimo primeiro anatematismo podemos
explicar o antigo rumor grandemente espalhado de que o Sínodo anatematizou
Orígenes e os Origenistas. Notas: (*) Aqui,
refere-se ao fato de Ascidas ter assinado o sínodo local de 543. Em Excursus on the XV. Anathemas Against Origen,
apresenta-se uma fala atribuída a ele na quinta sessão do Concílio: “E encontramos
muitos outros que foram anatematizados depois da morte, e também mesmo
Orígenes; e se alguém recuar até os tempos de Teófilo, de abençoada
memória, ou mais além, encontrá-lo-ia anatematizado depois da morte; o que
também agora sua santidade e Vigílio, o religiosíssimo Papa de Roma, fez
em seu caso”. (**)Assim
consta no original |
Hefele,
curiosamente, crê que a relação do XV anátemas pertença ao sínodo de
543, ainda que afirme não ter como provar contundentemente. Apesar de argumentos
em favor de uma real condenação de Orígenes no V Concílio serem mais sólidos,
ainda é comum encontrar historiadores desejosos
(129) Vide a
introdução de Robert Daly a Dialogues with
Heraclides. Um outro achado dessa descoberta foram fragmentos de Comentários aos
Romanos, que melhoraram muito a avaliação feita da tradução de Rufino da
mesma obra.
(130) Vide
[Ehrman (2005), Introdução, p.25]:
Nesse sentido, devo assinalar que a Maioria dos
registros do passado – milhões e milhões de registros, de cada período do
passado – não chegou até nós, estando perdida para a posteridade. (...)
Ainda assim, no entanto, temos a nosso alcance uma parcela muito pequena
das fontes que acaso terão existido naquele momento. Algumas das fontes
não chegaram até nós certamente foram destruídas pelos cristãos que
considerava ofensivo ou equivocado seu conteúdo. Mas a maioria não
sobreviveu simplesmente porque em algum momento do passado ninguém se deu
ao trabalho de continuar a copiá-las. |
Leia também
[Báez, parte I, cap. X].
(131) Vale
ressaltar que NÃO está incluída aqui a suposta destruição da biblioteca de
Alexandria atribuída, também, à expansão islâmica. Tal fato tem sua
historicidade muito questionada e fontes pouco sólidas. O mais provável é que a
biblioteca tenha sido destruída aos poucos por guerras internas da Roma ainda
pagã, por cristãos fanáticos comandados pelo patriarca Teófilo no começo do
século V e por diversos terremotos que assolaram a cidade ao longo da história.
Vide [Báez, parte I, cap. IV].
(132) Para uma
descrição detalhada (e dolorosa) da destruição de livros na Idade Média, vide
[Báez].
(133) Dado
extraído da introdução à edição inglesa de Contra Celso feita
por Henry Chadwick, item VI, p. XXIX. Curiosamente, essa introdução data o
papiro encontrado de Diálogo com Heráclides como sendo do século VI.
17 – Pretérito Imperfeito: Quando o passado não é
exatamente aquilo que se gostaria
Abrindo este
capítulo com uma leitura que dará insumos para a discussão que virá em
seguida.
Dentro e
fora da história (...) Ora, a
história é a matéria-prima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou
fundamentalistas, tal como as papoulas são a matéria-prima para o vício da
heroína. O passado é um elemento essencial, talvez o elemento essencial nessas ideologias. Se
não há um passado satisfatório, sempre é possível inventá-lo. De fato, na
natureza das coisas não costuma haver nenhum passado completamente
satisfatório, porque o fenômeno que essas ideologias pretendem justificar
não é antigo ou eterno mas historicamente novo. Isso é válido tanto para o
fundamentalismo religioso em suas versões atuais – a versão do aiatolá
Khomeini de um Estado islâmico não é anterior ao início dos anos 70 –
quanto para o nacionalismo contemporâneo. O passado legitima. O passado
fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito a
comemorar. Eu me lembro de ter visto em algum lugar um estudo sobre a
civilização antiga das cidades do vale do Indus com o título Cinco mil anos de Paquistão. O Paquistão nem
mesmo era cogitado antes de 1932-3, quando o nome foi inventado por alguns
militantes estudantis. Apenas se tornou uma demanda política séria a
partir de 1940. Como Estado apenas existiu a partir de 1947. Não há
nenhuma evidência de haver mais conexão entre a civilização de Mohejo Daro
e os atuais governantes de Islamabad que entre a Guerra de Troia e o
governo de Ancara, que no momento reivindica o retorno, ainda que apenas
para a primeira exibição pública, do tesouro de Schliemann do rei Príamo
de Troia. Mas, de certo modo, 5 mil anos de Paquistão soam melhor do que
46 anos de Paquistão. Nessa
situação os historiadores se veem no inesperado papel de atores políticos.
Eu costumava pensar que a profissão de historiador, ao contrário, digamos,
da de físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora sei
que pode. Nossos estudos podem se converter em fábricas de bombas, como os
seminários nos quais o IRA aprendeu a transformar fertilizante químico
(...)Recentemente, fanáticos hindus destruíram uma
mesquita em Aodhya, a pretexto de que a mesquita havia sido imposta aos
hindus por Bahur, o conquistador muçulmano mongol, em um local
particularmente sagrado por ser onde se deu o nascimento do deus Rama.
Meus colegas e amigos nas universidades indianas publicaram um estudo
demonstrando que (a) ninguém até o século XIX tinha sugerido que Aodhya
fosse o local de nascimento de Rama e que (b) era quase certo que a
mesquita não fora construída no tempo de Bahur. Gostaria de poder dizer
que isso teve muitas consequências para o crescimento do partido hindu que
provocou o incidente, mas pelo menos cumpriram seu dever como
historiadores, em benefício daqueles que podem ler e estão expostos à
propaganda da intolerância, hoje e no futuro. Vamos cumprir o nosso. Poucas
ideologias de intolerância estão baseadas em simples mentiras ou ficções
para as quais não há nenhuma evidência. Afinal de contas, houve uma
batalha de Kosovo em 1389, os guerreiros sérvios e seus aliados foram
derrotados pelos turcos, e isso deixou cicatrizes fundas na memória
popular dos sérvios, embora não se depreenda que isso justifique a
opressão dos albaneses, que hoje representam 90% da população da região. A
Dinamarca não reivindica a enorme área da Inglaterra oriental, povoada e
governada por dinamarqueses antes do século XI, que continuou a ser
conhecida como Danelaw e cujas aldeias ainda possuem nomes filologicamente
dinamarqueses. O abuso
ideológico mais comum da história baseia-se antes em anacronismos que
Essas e
muitas outras tentativas de substituir a história pelo mito e a invenção
não são apenas piadas intelectuais de mau gosto. Afinal de contas, podem
determinar o que entra nos livros escolares, como sabiam as autoridades
japonesas quando insistiram em uma versão asséptica da guerra japonesa na
China para uso em salas de aula do Japão. Mito e invenção são essenciais à
política de identidade pela qual grupos de pessoas, ao se definirem hoje
por etnia, religião ou fronteiras nacionais passadas ou presentes, tentam
encontrar alguma certeza em um mundo incerto e instável, dizendo: “Somos
diferentes e melhores que os Outros”. São elas que nos preocupam nas
universidades porque as pessoas que formulam aqueles mitos e invenções são
cultas: professores primários laicos ou clericais, professores de colégio
ou universidade (não muitos, espero), jornalistas, produtores de rádio ou
televisão. Hoje, a maioria delas terá ido para a universidade. Não se
enganem a respeito. História não é memória ancestral ou tradição coletiva.
É o que as pessoas aprenderam de padres, professores, autores de livros de
história e compiladores de artigos para revistas e programas de televisão.
É muito importante que os historiadores se lembrem de sua
responsabilidade, que é, acima de tudo, a de se isentar das paixões de
identidade política – mesmo se também as sentirmos. Afinal de contas,
também somos seres humanos. (134) (...) [Hobsbawm, cap. I, p. 17-20] |
Bem, os que
chegaram até aqui já puderam constatar que o objetivo deste artigo é desmascarar
o mito histórico da condenação da reencarnação no II Concílio de Constantinopla.
De certa forma, ele é composto de uma mistura de duas situações trazidas por
Hobsbawn: mentira pura e anacronismo. A primeira parte corresponde à suposta
predominância da reencarnação no credo ortodoxo até o século VI, à participação
da imperatriz Teodora, à suposta resistência do Papa
Então por que
de vez em quando se esbarra com algum deles apontando para um partidário da
Igreja Católica dizendo: “vocês tiraram a reencarnação do cristianismo ao
condenar Orígenes!”? Simples, porque eles aprendem essa tese com outros
reencarnacionistas. Por experiência pessoal, infelizmente vejo que, para o
“espírita médio”, os fatos que ocorreram no cristianismo primitivo e posterior
não são aprendidos em obras acadêmicas dedicadas ao tema, mas de outros autores
reencarnacionistas. Quantos será que folhearam algum capítulo de De Principiis, Kephalaia Gnostica
ou Hierotheos
ou se debruçaram em autores dedicados ao tema como Clark, Crouzel, os
artigos da série Origeniana, etc.? Será que seu entendimento dos
meandros da corte de Justiniano e da sequência de fatos que levou à segunda
crise origenista foi auferido da leitura de Cirilo de Citópolis, Evágrio
Escolástico, Liberato de Cartago, Facundo de Hermiano, João de Éfeso, João
Lídio, Procópio de Cesareia ou Malala? Ou não leem historiadores modernos e mais
acessíveis como Bury e Evans? Será que reclamam por muitos textos estarem em
língua inglesa, logo eles membros de um segmento religioso que tem fama de ser
mais academicamente instruído?
As verdadeiras
fontes dos boatos propagados vêm de autores de obras cujo caráter é mais
jornalístico que acadêmico (como Prophet, Chaves, Kersten), de místicos
(Bizemont, Brunton, Prabhupada) ou até mesmo de Ph.D’s - muitos sem carreira
como historiador (Severino Celestino – dentista, John Algeo - filólogo); mas
todos reencarnacionistas e com graus variados de distância das fontes primárias,
quando dão alguma referência (136). De que adianta, então, ler apenas livros que
corroboram as expectativas de seu público-alvo e não dialogam entre si pelo
confronto de argumentos, para ver qual é a melhor defesa? Assim, se alguém se
gaba por diversos autores não espíritas defenderem esse mito, pode não ter noção
da troca de “seis por meia-dúzia” que estava fazendo. Afinal a “história” para o
público espírita, neste caso, é o que seus pares ou afins divulgam.
Não se pode
esquecer, contudo, que a condenação à reencarnação no século VI é um “mito
secundário”. Em outras palavras, ele existe para explicar outra alegação: a
crença de que a maioria dos cristãos até então era reencarnacionista. Essa tese
se encontra expressa, por exemplo, nas obras de Chaves e Severino
Celestino citadas no capítulo VIII. Como a
reencarnação não é historicamente aceita por católicos e protestantes, é natural
supor que ela foi proibida em algum instante. O II Concílio de Constantinopla
foi apenas um marco que se tornou o preferido pelos autores espiritualistas.
Assim, uma nova linha de investigação deve ser aberta: verificar se cristianismo
primitivo – i.e., o de bem antes de Niceia - era adepto ou não da reencarnação. Afinal, o
que era o cristianismo da era apostólica?
Notas:
(134) Eric
Hobsbawm é um historiador de orientação marxista e, apesar de não chegar ao
ponto de negar as catástrofes promovidas pelo socialismo real do século XX, seu
viés às vezes embaça seu senso crítico e passa meio que batido por elas. Bem,
dou-lhe um desconto por também “ser humano”, como ele mesmo lembrou e,
parodiando, “faça o que ele diz, mas não o que ele faz”. Curiosamente, o
capítulo X de Sobre
História traz críticas a versões de pensamento socialista – chamadas por ele
de “vulgar” – que eu adoraria que antigos professores de historia meus do ensino
médio lessem. Mas o que de fato poderia ser feito se eu voltasse no tempo e
jogasse esse livro no colo de meu “eu mais jovem”? Poderia me tornar um chato
“bem municiado” em sala de aula, mas, como tinha de passar de ano e no
vestibular, teria de colocar na prova o que o mestre gostava de ler. Enfim, as
humanas não servem para desenvolver o senso crítico dos estudantes, mas, sim,
para que pensem igual aos professores dessas disciplinas e aplaquem a frustração
deles causada pela revolução que não veio.
(135) Gregório
Nissa é um desses nomes e, também, Teodoro de Mopsuéstia, um dos envolvidos nos
Três Capítulos.
(136) O leitor
pode reparar que nem todos os nomes foram tratados aqui. Alguns eu descobri em
outras fontes virtuais e debates.
Bhaktivedanta Swami Prabhupada é um hare krishna autor do livro Coming back – The science of reincarnation (lançado no Brasil com o nome “Retornando – A ciência
da reencarnação” pela Bhaktivedanta
Book Trust) e que pode ser lido em uma versão on
line. Nesse livro, Orígenes aparece em dois pequenos trechos
bem suspeitos do capítulo I:
In the third century A.D., the theologian Origen, one
of the fathers of the early Christian Church, and its most accomplished
Biblical scholar, wrote, "By some inclination toward evil, certain souls
... come into bodies, first of men; then through their association with
the irrational passions, after the allotted span of human life, they are
changed into beasts, from which they sink to the level of... plants. From
this condition they rise again through the same stages and are restored to
their heavenly place."(6) [lacunas do autor] (6) (De Principiis, Book
III, Chapter 5. Ante-Nicene Christian Library,
editors, Alexander Roberts and lames Donaldson. Edinburgh: Clark,
1867) |
Quem quiser ler o capítulo V do III livro da edição
Roberts-Donaldson
de De
Principiis, poderá constatar que não há nada que lembre a citação dada. Na
verdade, aqui é feito um pastiche de um trecho da carta de Jerônimo a Ávito
vista no capítulo III, porém tendo sido removidas a informação do próprio
Jerônimo de que se tratava de uma hipótese analisada, muitos menos foram
comentadas outras passagens de Orígenes francamente contra a metempsicose. Mais
adiante no mesmo capítulo, lança-se a pérola:
Under circumstances that to this very day remain
shrouded in mystery, the Byzantine emperor Justinian in
|
As circunstâncias da condenação à pré-existência não estão
“envoltas em mistério” tanto assim para quem se dispuser a pesquisar as fontes
apropriadas e a remoção da reencarnação nas escrituras é a mesma tese infundada
trazida por Noel Langley no capítulo VIII.
John Algeo é um teósofo e seu livro Reincarnation explored (editado em português como Explorando a
reencarnação, pela Teosófica) consta na seção de teosofia de sua
página pessoal, não na acadêmica. Como ele parece ter feito uma alusão a
Geddes MacGregor nesse livro, preferi usar esse autor a Algeo.
18 – Cristianismo, versão 1.0
Olhando para o
panorama das vertentes que se encontravam no cristianismo da primeira metade do
século III, quando transcorreu a maior parte da vida de Orígenes, estamos diante
de um retrato que lembra mais um mosaico. As discrepâncias hoje existentes nas
principais igrejas do cristianismo moderno (católicos romanos, ortodoxos
orientais, protestantes e, inclusive, grupos para-protestantes como adventistas e
testemunhas de Jeová) parecem apenas variações de um mesmo tema quando
comparadas com as radicais diferenças que ocorriam em grupos autodenominados
cristãos do período pré-niceno.
Numa ponta, encontravam-se os judeu-cristãos, que guardavam o sábado, praticavam
a circuncisão masculina, seguiam estritas leis dietéticas e rejeitavam a
pregação de Paulo. Para eles não era possível ser cristão sem antes ser judeu.
No outro extremo, estavam os discípulos de Marcião, que, devido a uma leitura
literal de passagens “pesadas” do Antigo Testamento, consideram o Iahweh dos
judeus um demiurgo inferior e, portanto, Jesus era o enviado do verdadeiro e
amoroso Pai apresentado no Novo Testamento para a humanidade. Seu cânon
consistia de uma versão editada do evangelho de Lucas – podada de todas as
referências à origem judaica de Jesus – e das cartas paulinas. Entre esses dois
grupos, havia cristãos similares à maioria atual, a ter o deus judaico de o de
Jesus como o mesmo e único, porém subordinando a interpretação da Escritura
judaica aos evangelhos através de alegorias, que também suavizavam suas
passagens violentas. Atravessando esse espectro, diversas seitas gnósticas
ofereciam a libertação deste mundo por meio de um conhecimento (gnosis) secreto
revelado por Jesus. Possuíam certa afinidade com o dualismo dos marcionitas,
mas, ao contrário deles, partiam para um alegorismo extremado, inclusive no Novo
Testamento.
Após essa breve
exposição, surge um intrincado problema: todos esses grupos se julgavam “o”
verdadeiro cristianismo e, como muitos são mutuamente excludentes, não é
possível que todos estivessem certos ao mesmo tempo. Vem, então, o desafio de
descobrir qual deve ter sido a crença da geração que viveu entre a morte de
Jesus e pouco antes da elaboração do texto dos evangelhos. A tarefa é ingrata
porque é um período ágrafo, que só pode ser extraído do contexto histórico em
que viveram e das referências de registros feitos um pouco depois.
Bem, no tempo e
no espaço, o cenário
Finalmente, os estudiosos levam muito a sério a
conclusão a que chegam hoje em dia todos os que se detêm no personagem histórico de
Jesus: que ele era um judeu vivendo na Palestina do século I. Tratando-se
de relatos sobre o que Jesus disse e fez que não se adaptam de maneira
plausível a esse contexto, é praticamente impossível acreditar que sejam
historicamente exatos. (…) A título de exemplo, os ensinamentos de Jesus
que fazem mais sentido em algum outro contexto provavelmente derivam mesmo
desse outro contexto, e não de sua vida. À guisa
de exemplo, certos ensinamentos de Jesus encontrados no Evangelho Copta de
Tomé e em outros escritos da Biblioteca de Nag Hammadi têm um caráter
nitidamente gnóstico. O problema é que não temos qualquer indicação de que
o gnosticismo já existisse nas duas primeiras décadas do século I –
especialmente nas regiões rurais da Galileia. Esses ensinamentos de teor
gnóstico devem provir de tradições posteriores, tendo sido postos na boca
de Jesus em algum outro contexto (por exemplo, no século II, em lugares
como Egito ou Síria). Isso não quer dizer que devamos descartar todos os
ensinamentos contidos [Ehrman
(2005), cap. VI, p. 164-165] |
Por essas
razões, o gnosticismo cristão e marcionismo não devem ser o que se aproximaria
da doutrina dos primeiros cristãos. O primeiro por inserir ideias alienígenas ao
contexto terreno onde Jesus viveu e pregou, o segundo por querer descartar todo esse contexto.
Resta decidir
entre um judaísmo estrito e um credo suficientemente eclético para abranger “os
gentios”. Para tanto, deve-se extrair dos documentos que falam sobre Jesus
aquilo que pode ter sido genuinamente de sua autoria. Pela razão exposta acima,
ficam descartados os evangelhos gnósticos e os ditos de Tomé que seguem essa
linha. O evangelho de João, por ser protognóstico e apresentar uma versão mais
mística de Jesus, é o que, entre os canônicos, menos tem a oferecer dados
históricos sobre Jesus. Também ficam de fora os evangelhos da infância e outros
também mais preocupados em apresentar uma versão “folclórica” dele, cheia de
milagres e vazia de ensinamentos. As cartas neo-testamentárias falam muito da fé
em Jesus, mas pouco sobre o que essa personagem disse ou fez. Portanto, o
principal material de onde podem ser extraídas informações históricas sobre
Jesus é o que está nos evangelhos sinópticos (137) – Mateus, Marcos e Lucas, que
ganham por serem mais antigos (em comparação com os demais) e oferecerem um
Jesus menos ocultista e mais profeta popular. Conviria, também, complementá-los
o com livro de Atos, por ser uma continuação direta de Lucas e dar insights sobre os primeiros cristão, e os ditos não gnósticos de
Tomé.
Ainda assim é
preciso ter em mente que eles não são biografias de Jesus e, sim, livros
escritos por homens de fé, logo mais interessados em justificar o credo de suas
respectivas comunidades. Além da antiguidade e adequação ao contexto histórico,
dois outros fatores costumam ser usados para separar o que pertence à história
do que é da fé: a múltipla atestação – mais de uma fonte independente relatando
o mesmo – e a preservação de algo que vai de encontro ao que se esperaria dos
autores. Por exemplo, Marcos, Paulo e João afirmam que Jesus teve irmãos, logo
isso deve ter sido real. João e Marcos dão Nazaré como local de nascimento dele
e, como era um local desprestigiado, o relato deles é preferível aos que indicam
Belém como terra natal (138).
Então, o que as
fontes mais antigas (e seu contexto histórico) têm a dizer sobre a relação entre
Jesus e o judaísmo de então. Às vezes, pode-se pensar que a rebeldia de Jesus
contra a observação tacanha da Lei feita pelos fariseus fosse um sinal de
superação de sua origem judaica. Isso não é muito pertinente (139). As queixas
quanto ao fato de Jesus exorcizar e curar no sábado não consideram que tal
atitude não era exclusiva dele e foi adotada por rabis posteriores. Tratar de
pessoas passou a ser considerado salvar vidas, um mandamento que pretere todas
as demais regras da Lei. A superioridade da pureza moral (Mc 7:15-19) sobre a
ritual não era inédita e pode ser encontrada, por exemplo na Carta
de Aristeia (século II a.C.), parágrafo 234
E o rei
[Ptolomeu] deu-lhe grande louvor e perguntou ao décimo [ancião]: “Qual a mais alta
glória?”. E disse ele: “Honrar a Deus, e isso é feito não com ofertas e
sacrifícios, mas com pureza de alma e convicção santa, já que todas as
coisas são dispostas e governadas por Deus, em conformidade com Sua
vontade.”(...) |
Tanto Arimateia
quanto Jesus interpretaram a Lei de forma mais aprofundada que o simples
literalismo. Resta saber se esse tipo de interpretação poderia ser eclético o
bastante para abarcar gentios. Atente-se que a fala do final Mc 7:19 – “E assim
ele considerou puro todos os alimentos” – está mais para um parêntese de Marcos,
explicando a sua comunidade gentílica as palavras anteriores, do que um
entendimento do próprio Jesus. Dado que o livro de Atos mostra desentendimentos
entre os apóstolos que conheceram Jesus em vida e Paulo quanto à necessidade de
ser judeu antes de cristão – e isso os cristãos gentios não esconderam – é
duvidoso que o galileu tivesse autorizado o fim das restrições dietéticas ou da
circuncisão, iniciando a bifurcação entre judaísmo e cristianismo já no
princípio. O próprio fato de a pregação paulina ter gerado controvérsias que
ultrapassaram o período apostólico mostra que suas inovações não se impuseram de
imediato. É provável que seita dos ebionitas, a que Orígenes se refere em [Contra Celso, II,
1] preservasse
um credo mais próximo ao dos primeiríssimos cristãos (140).
Sabendo que a
leva inicial de convertidos era (e continuou) judia, o próximo passo é
determinar que tipo de judaísmo praticava. Infelizmente, não basta ler a atual
Bíblia judaica para
abranger tudo o que pensavam, pois a ideia de “cânon judaico” ainda não
estava definida no século I. Alguns livros que eram adotados por grupos judaicos
do século III a.C. ao I d.C. não entraram para a Bíblia hebraica, mas
permaneceram na católica, como Macabeus, Eclesiástico, Sabedoria, etc., por herança da
Septuaginta. Outros, como Enoque e os livros sectários de Qumran, ficaram fora
do conjunto de Escrituras “autorizadas” de qualquer grupo posterior. Do ponto de
vista histórico, contudo, eles não podem ser ignorados, pois na Palestina dos
tempos de Jesus muitas ideias contidas neles circulavam livremente entre os
judeus, ou ficavam registradas pelos mesmos. Bem ou mal, eles cobrem a lacuna
existente entre o Antigo e o Novo Testamento, desenvolvendo conceitos ainda
frágeis no primeiro, mas explícitos no último.
Um dos aspectos
marcantes do judaísmo intertestamentário foi o desenvolvimento progressivo de
uma espécie de dualismo. Não era ao estilo de gnósticos e marcionitas, que
opunham um demiurgo inventor deste mundo ao deus bom, mas a oposição ao deus
criador feita por um grupo renegado de suas próprias criaturas. Apenas sugerida
no que viria a ser o cânon judaico (141), a figura diabólica e seus “anjos
caídos” se desenvolvem plenamente nesse período. O Livro de Enoque (142), por
exemplo, fala do abandono de um grupo de anjos (os Guardiões) de seus deveres e
seu envolvimento com mulheres humanas, que pariram gigantes. Esses gigantes se
revelaram antropófagos que passaram a atacar humanos e, por fim, a eles mesmo.
Além disso, alguns anjos - como Azazel, Armaros, Barakijal, etc. - ensinavam aos
homens artes que os levavam ao pecado, como o fabrico de armas, encantamentos e
astrologia. Como o clamor das injustiças chegou ao Criador, Ele reuniu anjos que
lhe eram leias (Rafael, Micael, Gabriel) e trancafiou os rebelados até o dia do
julgamento final:
E a
Rafael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e pés e lança-o nas trevas!
Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo! Deposita pedras
ásperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o
permanecer lá para sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz! No
dia do grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremedal de fogo! Enoque
10:3-4 (...) A Micael
disse o Senhor: “Vai e põe a ferros Semjaza e os seus sequazes, que se
misturaram com as mulheres com elas se contaminaram de todas as impurezas!
Quando os seus filhos tiverem eliminado mutuamente e quando os pais
tiverem presenciado o extermínio dos seus amados filhos, amarra-os por
sete gerações nos vales da terra, até o dia do seu julgamento, até o dia
do Juízo final! Nesse dia, eles serão atirados ao abismo de fogo, na
reclusão e no tormento, onde ficarão encerrados para todo o sempre. E todo
aquele que for sentenciado à condenação eterna seja juntado a eles, e seja
com eles mantido em correntes até o fim de todas as gerações.” Enoque
10:6-8. Fonte: [Tricca], p. 122 |
Enoque foi uma
espécie de best-seller do período. Nas cavernas onde foram achados
os manuscritos de Qumran (4Q) havia fragmentos de vinte exemplares distintos
(143). Contudo, para textos originais da seita essênia não há menção a Azazel e
outros líderes dos Guardiões caídos; afinal já estavam confinados e não eram mais um problema. Um
novo inimigo era preciso. A figura de Satanás começa ocupar essa lacuna.
Apresentado no Livro de Jó como uma espécie de ministro de Deus responsável por
colocar a criação à prova, Satanás leva, com a devida autorização divina, uma
série de desgraças pessoais ao justo e devoto Jó no intuito de testar sua
integridade. Satanás não interfere, porém, no livre-arbítrio de Jó. Essa tafera
fica com sua esposa e alguns amigos seus, que o tentam a rejeitar Deus (no caso
da esposa) ou a assumir-se um pecador, o que ele tem certeza que não era. No
Livro dos Jubileus (século II a.C.), surge a associação Mastema/Satã, como o
chefe de uma falange de espíritos responsável por induzir os humanos à pratica
do Mal. O livro reconta a história da humanidade do Gênese ao Êxodo através das
palavras de um anjo que a estaria ditando a Moisés e, no capítulo 4, faz rápida
passagem pela história dos Guardiões (144):
4:21-24 E
ele [Enoque], além disso, estava com os anjos desses seis jubileus dos
anos, e eles lhe mostram tudo que está sobre a terra e nos céus, o
funcionamento do sol, e ele tudo anotou. E testemunhou aos Guardiões, que
pecaram com as filhas dos homens; pois esses começaram a se unir, de modo
a ficar corrompidos com as filhas dos homens. E ele testemunhou contra
(eles) todos. E foi retirado dos filhos dos homens e o conduzimos para o
Jardim do Éden em majestade e honra, e eis lá que ele registra a
condenação e julgamento do mundo e toda a iniquidade dos filhos dos
homens. E por causa disso (Deus) trouxe as águas da inundação sobre toda a
terra do Éden; pois lá ele foi posto como um sinal a testemunhar contra
todos os filhos dos homens, que deveriam recontar todos os deveres das
gerações até o dia da condenação. Fonte: Book of Jubilees |
A questão os
Guardiões não teria acabado com sua condenação. Os espíritos de seus
descendentes continuaram a levar morte, doenças e iniquidade aos homens. Após
uma prece de Noé, Deus decidiu agir contra eles, mas...
10: 7-14
E o Senhor nosso Deus nos ordenou prender todos [os espíritos dos
descendentes dos Guardiões]. E o chefe dos espíritos, Mastema, veio e
disse: “Senhor
Criador, deixe alguns deles comigo e permita que ouçam minha voz e façam
tudo o que eu lhes disser; pois se alguns deles não me forem deixados, não
serei capaz de executar o poder de minha vontade nos filhos dos homens,
pois esses são para ser levados à corrupção e ao mal caminho em meu
julgamento, pois grande é a impiedade dos filhos dos homens”. E Ele
disse: “Que a
décima parte seja deixada para ele e as nove partes desçam para o lugar de
condenação.” E Ele ordenou a um de nós [anjos] que deveríamos ensinar
a Noé todos os remédios deles; pois sabia que não andariam em retidão, nem
se esforçariam Fonte: Book of Jubilees |
É interessante
perceber que Mastema (“Animosidade”), embora “chefe dos espíritos” não é um
deles, mas alguém que os tinha em responsabilidade e não queria perder peões tão
úteis, além de possuir certa intimidade para falar com o Criador. Mastema (145),
logo em seguida também denominado Satã (“Adversário”), é uma espécie de
sinistro auxiliar de Deus tal como em Jó, só que em vez de simplesmente punir ou
testar os homens, busca também piorá-los:
11:2- 7 E
os filhos de Noé começaram a guerrear um contra o outro, a tomar uns como
cativos e matar outros, e derramar o sangue de homens sobre a terra e a
comer sangue, e construir cidades fortificadas, muralhas, e torres, e
indivíduos começaram a exaltar a si mesmos acima da nação e a fundar os
princípios dos reinos, e fazer guerra de povo contra povo, e nação contra
nação, e cidade contra cidade, e todos (começaram) a fazer o mal, a
adquirir armas e a ensinar guerra a seus filhos, e capturar cidades e a
vender escravos machos e fêmeas. E ‘Ur, o filho de Kesed, construiu a
cidade de ‘Ara dos caldeus e a denominou em homenagem a seu próprio nome e
ao nome de seu pai. E construíram para si imagens fundidas, e cada um
deles adorou ao ídolo, a imagem fundida que fizeram para si, e começaram a
fazer imagens entalhadas e simulacros impuros, e espíritos malévolos (os)
ajudaram e seduziram para cometer transgressões e impurezas. E o príncipe
Mastema se empenhou para fazer tudo isso, e despachou outros espíritos, os
que foram postos sob sua mão, para fazer todas as formas de erro e pecado,
e todas as formas de transgressão, para corromper e destruir e derramar
sangue sobre a terra. |
A apresentação
das hostes demoníacas, embora autorizadas pelo Criador, como grandes
instigadores das misérias físicas e morais dos humanos – tudo para testá-los -
alcançou também a literatura sectária dos essênios de Qumran. Em Preceito da
Comunidade, anjos bons e maus são apresentados como as divisões dos corações
humanos a travar uma luta constante até a Consumação Final.
Ele criou
o homem para governar o mundo e designou-lhe dois espíritos com os quais
deverá caminhar até o advento do Seu Juízo Final: o espírito da verdade e
o espírito da falsidade. Os nascidos da verdade brotam de uma fonte de uma
fonte de luz, mas os que nascem da falsidade brotam de uma fonte de
trevas. O Príncipe da Luz governa todos os filhos da retidão que andam
pelos caminhos da luz, mas o Anjo das Trevas governa os filhos da
falsidade que caminham pelos caminhos das trevas. O Anjo
das Trevas desencaminha todos os filhos de retidão, e, até que ele
desapareça, todos os seus pecados, iniquidades, perversidades e atos fora
das Leis cometidos pelos filhos da retidão são causados pelo domínio desse
Anjo, de acordo com os mistérios de Deus. Cada uma das punições e cada um
dos períodos de aflição acontecerão sob o domínio de sua perseguição; pois
todos os espíritos dedicados a ele procuram derrubar os filhos da luz. Mas o
Deus de Israel e o Seu Anjo da Verdade virão em socorro de todos os filhos
da Luz. Pois foi Ele quem criou os espíritos da Luz e das Trevas e
fundamentou cada ação neles e estabeleceu cada ato [em] suas [condutas].
Ele ama infinitamente o primeiro e se regozija com suas obras para sempre
mas o conselho do outro Ele abomina e odiará sua conduta por toda a
eternidade. Preceito
da Comunidade (ou Manual de Disciplina) III e IV. Fonte: [Vermes, 2004,
p.125]. Nota:
Neste e nos demais fragmentos de Qumran, os colchetes
são reconstruções do texto e os parênteses, acréscimos para facilitar a
leitura. As reticências que não estão entre parênteses são trechos
danificados que não puderam ser reconstituídos e as que estão são trechos
omitidos pelo autor do portal. |
Em outras
passagens, esse antagonista é apresentado de forma bem mais, digamos,
concreta:
[Que Deus
os afaste] dos filhos da L[uz porque ele se recusou a segui-lO E eles
continuarão dizendo: “Sê amaldiço]ado, Melkiresha, em todos os seus
pensame[ntos da tendência para o mal. Que] Deus [te entregue] à tortura
nas mãos dos Vingadores. Que Deus não ouça [quando] O chamares. [Que Ele
era Sua face irada] para ti. Que não haja (saudação de) Paz para ti na
boca de todos os que se atêm firmemente aos Patriarca[s. Que sejas
amaldiçoados] sem remanescente, e maldito sem salvação. “Amaldiçoados sejam os que pratic[am teus desígnios
iníquos] e [fu]ndamentam em seus corações teus ardis (inescrupulosos),
tramando contra a Aliança de Deus ... , os que veem [Sua] verdade.” [Quem]
quer que se recusar a entrar na [Sua Aliança, conduzindo-se na obstinação
de seu coração]... 4Q280 –
Maldições de Melkiresha. Fonte: [Vermes, 2004, p.230]. |
Melkiresha (Meu
rei é a iniquidade) se revela mais um nome específico para um chefe maligno, em
oposição a
Melchizedec (Meu rei é a justiça), apresentado como
chefe dos exércitos de Luz. Provavelmente, essa maldição litúrgica é dependente
deste outro texto de Qumran, de onde foi feita boa parte das reconstruções
hipotéticas:
E os
levitas amaldiçoarão todos os sequazes de Belial (146), dizendo: “Sede amaldiçoados
por causa de vossa iniquidade! Que Ele vos entregue à tortura dos
vingativos Vingadores! Que Ele vos visite com a destruição por intermédio
de todos os que descarregam a Vingança! Que sejais amaldiçoados sem
misericórdia por causa da escuridão de vossas ações! Que sejais condenados
ao lugar tenebroso do fogo eterno! Que Deus não vos ouça chamá-lo, nem vos
perdoe apagando vosso pecado! Que Ele erga Sua face irada para vós em
vingança! Que não haja paz para vós da boca daqueles que se atêm aos
Antepassados”. E após a benção e a maldição, todos os postulantes à
Aliança dirão: “Amém, Amém!”. Preceito
da Comunidade II. Fonte: [Vermes, 2004, p.123]/ [Martínez e Tigchelaar, p.
73]. |
Como nada sobre
a natureza ou origem de Belial/Melkiresha é apresentado, esses escritos devem
fazer alusão a uma tradição popular em que o líder das trevas não é mais um
anjo-promotor do tribunal divino e cético quanto às virtudes humanas. Apesar de
ser um mal tolerado, ele já não conta com a graça de Deus, embora,
paradoxalmente, tenha sido criado por Ele. A figura do diabo cristão começa a se
delinear (147). De fato, na obra não religiosa de Flávio Josefo exibe-se a
crença na ação de demônios sobre os humanos até mesmo em camadas cultas da
população, como a dele.
Deus
também o capacitou [Salomão] a aprender aquela habilidade de expulsar
demônios, que é uma ciência muito útil e curativa aos homens. Ele também
compôs esses encantamentos pelos quais moléstias são aliviadas. E legou a
metodologia da prática de exorcismos, pelo qual tiram os demônios, de
forma que nunca retornam; e esse método de cura e de grande força até este
dia; pois vi certo homem de meu país, cujo nome era Eleazar, libertando
pessoas que estavam endemoninhadas na presença de Vespasiano,e seus
filhos, e seus capitães, e toda a multidão de seus soldados. A metodologia
de cura foi esta: colocou um anel que tinha uma raiz de um daqueles tipos
mencionado por Salomão (148) nas narinas do endemoninhado; para depois
extrair o demônio por suas narinas; e assim que o homem caiu,
imediatamente abjurou-o a nunca mais voltar para dentro do homem, fazendo
menção a Salomão e recitando os encantamentos que ele compôs. E quando
Eleazar mostrava aos espectadores que tinha tal poder, ele punha um pouco
afastada uma taça ou bacia d’água e mandava o demônio, assim que saísse do
homem, virá-la, e assim deixar que os espectadores soubessem que deixara o
homem; e quando isso era feito, a habilidade e sabedoria de Salomão era
mostrada manifestadamente; é por essa razão que todos os homens podem
tomar conhecimento da vastidão das habilidades de Salomão, e quão amado
por Deus ele era, e que as extraordinárias virtudes de todo o tipo com que
esse rei foi dotado não podem ser ignoradas por ninguém sob o sol, já que
essa é a razão, digo, por que continuamos a falar tanto
desses assuntos. (149) Antiguidades Judaicas VIII - cap. II. Fonte: Project Gutemberg |
Mas essa luta
“Extermina os espíritos de todos os monstros,
juntamente com todos os filhos dos Guardiões, porque eles maltrataram os
homens! Purga a terra de todo ato de violência! Toda obra má deve ser
eliminada! Que floresça a árvore da Verdade e da Justiça. O sinal da
bênção será o seguinte: as obras da Verdade e da Justiça sempre serão
semeadas na alegria verdadeira. Então florescerão os justos e haverão de
viver até gerarem mil filhos, e completarão em paz todos os dias da sua
juventude e da sua velhice. Então toda a terra será cultivada com a
Justiça, inteiramente plantada de árvores, e cheia de bênção. Toda espécie
de árvore boa será plantada sobre ela, igualmente videiras; e as videiras
produzirão uvas Enoque
10:9 – 11:2. Fonte: [Tricca, p. 122-3]. |
Mais tarde o
autor de Enoque apresenta o arauto dessa separação entre bons e maus,o poderoso
juiz escatológico chamado “Filho do Homem”. Ele remete a uma visão relatada em
Dn 7:2-14, onde quatro feras, cada uma mais bizarra que a outra, aparecem,
conquistam e espalham destruição; até que surge um quinto ser, cuja aparência
era “como Filho de Homem”, ou seja, humana. A ele é dado o reino eterno sobre a
terra, ao passo que as feras são destituídas e mortas. A interpretação que se
segue (Dn 7:17-27) apresenta as quatro feras como reinos que dominarão a terra e
oprimirão os povos. Seus poderes malignos durarão até a vinda do que é como
“Filho de Homem”, que destruirá as forças opostas a Deus e trará o domínio
eterno de Seu povo. Qualquer semelhança com outros usos dessa expressão no Novo
Testamento não é mera coincidência, afinal essa é uma figura escatológica
anunciada para o fim dos tempos:
Então
sobrevir-lhes-á sofrimento igual ao de uma mulher em dores de difícil
parto, quando o filho passa pela abertura matriz, e ela sofre ao dar à
luz. Uma parte deles então encarará a outra; assustar-se-ão, baixarão seus
olhos, e serão acometidos de dores quando virem o Filho do Homem
assentar-se sobre o trono de sua Glória. Então os
reis, os poderosos e os demais senhores da terra haverão de glorificar,
louvar e enaltecer Aquele que reina sobre todas as coisas e que estava
oculto. Pois, no princípio, o Filho do Homem estava oculto, e o Altíssimo
conservava-O na presença do seu poder; e revelou-O aos escolhidos. Florescerá então a comunidade dos escolhidos e dos
santos, e todos os escolhidos, naquele dia, estarão na sua presença. Todos
os reis, os poderosos, os grandes senhores da terra cairão sobre a sua
face, na sua presença, e suplicarão: irão colocar a sua esperança naquele
Filho do Homem, invocá-lO-ão e implorarão sua misericórdia. Todavia,
aquele Senhor dos Espíritos os obrigará a se afastarem o mais rapidamente
possível da sua presença; o rosto deles cobrir-se-á de vergonha, e sobre
eles cairá a escuridão. E Ele os entre os entregará aos Anjos vingadores,
porque maltrataram seus filhos e seus escolhidos. Eles
propiciaram um espetáculo para os justos e escolhidos: estes rejubilarão,
porque a ira do Senhor dos Espíritos abater-se-á sobre eles, e Sua espada
embeber-se-á de seu sangue. Naquele dia, os justos e os escolhidos serão
salvos, e não verão nunca mais a face dos pecadores e dos ímpios. O Senhor
dos Espíritos habitará então com eles, e estes comerão com o Filho do
Homem, deitar-se-ão e levantar-se-ão por toda a eternidade. Os justos e os
escolhidos exalçar-se-ão sobre a terra, e nunca mais haverão de baixar
seus olhos. Serão
recobertos com as vestes da glória, que são as vestes da Vida do Senhor
dos Espíritos. Vossas vestes não envelhecerão e vossa glória não passará
na presença do Senhor dos Espíritos. Enoque
62:4 – 10. Fonte: [Tricca, p. 153]. |
Em um texto de
Qumran, batalha titânica se travaria entre o Bem e Mal antes que tais bênçãos
chegassem. Ela seria travada tanto no plano celeste quanto no terrestre, havendo
aqui um embate contra o rei dos “kittim”:
Para o
M[estre. O Preceito da] Guerra sobre o desencadeamento do ataque dos
filhos da Luz contra a companhia dos filhos das Trevas, o exército de
Belial(150); contra as hordas de Edom, Moab e os filhos de Amon, e [contra
o exército dos filhos do Leste e] os filisteus, e contra os bandos dos
kittim da Assíria e seus aliados, os descrentes da Aliança. Os filhos
de Levi, Judá e Benjamim, os exilados do deserto, combaterão contra ele em
... todos os seus bandos quando os filhos da Luz exilados retornarem do
Deserto dos Povos para acampar no Deserto de Jerusalém; a após a batalha
deverão subir de lá (a Jerusalém?). [O rei]
dos kittim
[entrará] no Egito, e quando chegar a sua hora ele partirá em grande fúria
para fazer guerra contra os reis do norte, para que sua fúria destrua e
extermine a trombeta de [Israel]. Este será
um tempo de salvação para os povos de Deus, uma era de domínio para todos
os membros de Sua companhia, e de destruição eterna para toda a companhia
de Belial. Será [grande] a confusão dos filhos de Jafé e a Assíria cairá
sem socorro. O domínio dos kittim chegará a um término e a iniquidade será
vencida sem deixar sobreviventes: não haverá saída [para os filhos] das
Trevas. [Os filhos da retid]ão brilharão por todos os confins da terra e
continuarão a brilhar até se consumirem todas as eras das trevas e na
época designada por Deus, Sua grandiosidade excelsa brilhará eternamente
para a paz, a bênção, a glória, alegria e vida longa para todos os filhos
da Luz. No dia em
que os kittim caírem, haverá terríveis batalhas e
massacres diante do Deus de Israel, pois este será o dia designado desde
os tempos antigos para a batalha de destruição dos filhos das Trevas.
Nessa ocasião, a assembleia dos deuses e das hostes dos homens combaterá,
causando um enorme massacre; no dia da calamidade, os filhos da Luz
combaterão a companhia das trevas em meio a gritos de uma enorme multidão,
e haverá clamor de deuses e homens para [tornar manifesto] o poder de
Deus. E será tempo de [grande] sofrimento para os povos que Deus irá
redimir; dentre todas as suas aflições, nenhuma será como esta, desde seu
início repentino até seu fim na redenção eterna. No dia de
sua batalha contra os kittim [eles se porão a caminho] do massacre. Em
três investidas, os filhos da Luz atracar-se-ão em batalha para derrotar a
iniquidade, e em três investidas as hostes de Belial armar-se-ão para
rechaçar a companhia [de Deus. E quando os corações dos destaca]mentos da
infantaria começarem a enfraquecer, o poder de Deus fortalecerá [os
corações dos filhos da Luz]. E com a sétima investida, a mão poderosa de
Deus destroçará [o exército de Belial, e todos] os anjos do seu reino e
todos os membros [de sua companhia em destruição perpétua]... Preceito
da Guerra, I. Fonte [Vermes, 2004, p.173-4] |
É curioso
observar a menção que o autor faz à própria seita de Qumran como sendo um dos
protagonistas dessa batalha escatológica (“os filhos de Levi, Judá
e Benjamim, os exilados do deserto”). Os inimigos dos filhos da Luz são
representados pela palavra plural kittim (151), derivada de Citium – uma antiga
cidade-estado da ilha de Chipre, que era largamente usada na Palestina como
referência a povos ou terras de além-mar. O autor do livro de Daniel (11:30)
alude aos “navios dos kittim” que iriam confrontar Antíoco Epífanes no Egito,
numa provável referência aos romanos. Os kittim, porém, aqui representam algo mais: todos os
povos que já confrontaram ou subjugaram os judeus, além de judeus apóstatas. A
narrativa das colunas 2-9 contém várias prescrições para a ordem de batalha, nas
colunas 10-14 tem-se uma coleção de orações e hinos de ação de graças a serem
entoados pelos combatentes da Luz e só da coluna 15 à 19 é retomada a batalha da
coluna primeira (152).
(...)
Então o
sumo sacerdote aproximar-se-á e, postado à frente da formação, fortalecerá
por meio do poder de Deus seus corações [e mãos] para Sua batalha.
Falando, dirá: “... a matança, pois ouvistes desde os
tempos antigos, por intermédio dos mistérios de Deus... “... Ele
lhes dará a recompensa do fogo ardente [por meio dos ] que foram testados
no cadinho. Afiará Suas armas e não descansará até que todas as nações
iníquas sejam destruídas. Lembrai o julgamento [de Nadab e Ab]íu, os
filhos de Aarão, julgamento pelo qual Deus mostrou-se santo aos olhos [de
Israel. Mas Eleazar] e Itamar, estes Ele confirmou por meio de uma eterna
Aliança sacerdotal. “Sede
fortes e não tenhais medo; [pois eles se dirigem] para o caos e a
confusão, apoiam-se sobre o que não é e [não será. Ao Deus] de Israel
pertence tudo que é e será; [Ele conhece] todos os acontecimentos da
eternidade. Este é o dia por Ele designado para a derrota e derrubada do
príncipe do reino da iniquidade, e Ele dará socorro eterno à companhia dos
Seus redimidos pelo poder dos Anjos-príncipes do reino de Micael. Com luz
eterna Ele fará brilhar de alegria [os filhos] de Israel; paz e bênção
estarão com a companhia de Deus. Ele fortalecerá o reino de Micael no meio
dos deuses, e o domínio de Israel no meio de toda a carne. A retidão
rejubilar-se-á, excelsa, e todos os filhos da Sua verdade alegrar-se-ão no
conhecimento eterno. “Quanto a
vós, os filhos da Sua Aliança, sede fortes na provação de Deus! Seus
mistérios vos sustentarão até que Ele mova Sua mão para que Suas provações
cheguem a um fim.” (...) [E na
sétima investida,] quando a grandiosa mão de Deus se erguer num golpe
eterno contra Belial e todas as hostes de seu reino, e quando a Assíria
for perseguida [em meio aos gritos dos Anjos] e o clamor dos Santos, os
filhos de Jafé cairão para não mais se levantar. Os kittim serão
esmagados sem deixar [sobreviventes, e nenhum homem dentre eles será
salvo]. [Nesta
ocasião, no dia] em que a mão de Deus de Israel levantar-se-á contra as
multidões de Belial, os sacerdotes soprarão [as seis trombetas] do Lembrar a
Vingança e todas as formações do combate investirão contra eles e
espalhar-se-ão em todos os [acampamentos dos] kittim,
destruindo-os irremediavelmente. [E enquanto] o sol mover-se para o seu
poente naquele dia, o sumo sacerdote colocar-se-á em pé, junto [com os
levitas] que deverão estar com ele e os chefes [das tribos e os anciãos]
do exército, e juntos glorificarão o Deus de Israel. (...) Preceito
da Guerra, XVI - XVIII. Fonte [Vermes, 2004, p.189-191] |
Há um
interessante paralelo na exortação do sumo sacerdote com a descrição em Daniel,
cap. 10-12, de Micael como anjo patrono de Israel nas lutas contra Belial. A
diferença é que os aliados terrenos não são mais a Pérsia ou algum reino
helênico, mas Roma. Contudo, algo saiu errado na previsão de Preceito da Guerra.
Em 70 d.C., uma revolta judaica foi esmagada pelas tropas do general Tito, a
população de Jerusalém foi chacinada, a cidade reduzida a escombros e tesouro do
Templo saqueado. Os kittim venceram e o processo de diáspora se acelerou.
Com o mundo
Uma das
respostas veio em Apocalipse de Baruque (ou II Baruque), datada no final
do século I e começo do II. Nele (153) são narrados diálogos de Baruque (ou
Baruch, Baruc), contemporâneo da tomada de Jerusalém pelos babilônicos ocorrida
em
IV - Nova
Jerusalém Falou-me
então o Senhor: “Sim, esta cidade [Jerusalém] será abandonada por algum
tempo, e temporariamente será castigado o seu povo; contudo, o mundo não
terminará. Pensas tu por acaso que é esta a cidade da qual eu falei:
‘Trago-te inscrita nas minhas mãos’?, não, esta vossa cidade, com as suas
edificações, não é a cidade futura que eu anunciei, já anteriormente
preparada, desde o tempo em que decidi criar o Paraíso. Eu mostrei-a a
Adão antes da queda em pecado; ela foi-lhe tirada juntamente com o
Paraíso, depois que ele se rebelou contra a proibição. “Mostrei-a também ao meu servo Abraão, naquela noite,
entre as oferendas partidas ao meio. Mostrei-a a Moisés sobre o monte
Sinai, onde lhe expliquei a imagem do tabernáculo e todos os seus
utensílios. Assim, ela continuará preparada na minha mente, juntamente com
o Paraíso. Vai, pois, e faz o que eu te ordeno!” XXIX – O
Messias Ele
falou-me: “O que vai acontecer atingirá toda a terra; dessa forma,
experimentá-lo-ão todos os que estiverem “Então a
terra produzirá os seus frutos ao cêntuplo; numa cepa de videira haverá
mil ramos, um ramo carregará mil racimos, e um racimo mil bagos, e um bago
data até quarenta litros de vinho (154). Os que sofreram fome comerão
regiamente, e a cada dia lhes estão reservadas novas maravilhas (155).
“Pois de
mim procederão ventos que trarão todas as manhãs o perfume de frutos
saborosos, e farão gotejar ao final do dia o orvalho salvífico. Do alto
cairá de novo grande quantidade de maná; dele comerão eles naqueles anos,
por haverem participado do final dos tempos”. XXXII –
Reconstrução de Sião “Mas
preparai os vossos corações e semeai neles os frutos da Lei, para estardes
protegidos no tempo em que o Todo-Poderoso haverá de abalar toda a
Criação. Pois as edificações de Sião dentro de pouco tempo serão
aniquiladas, mas logo em seguida reconstruídas. “Todavia,
essa reconstrução não durará muito; após algum tempo, Sião será arrasada
uma vez mais e permanecerá em destroços por um período. Depois será
renovada em todo o esplendor, e, uma vez plenamente reconstruída,
permanecerá para todo o sempre. “Não
devemos perturbar-vos excessivamente com a desgraça que aconteceu, mas
muito mais com aquilo que ainda há de vir. Pois, maior ainda do que ambas
essas calamidades será o embate em que o Todo-Poderoso renovará a sua
Criação. Agora, porém, não te preocupeis mais por alguns dias! Não vos
preocupeis comigo, até que eu volte para junto de vós!” Após
essas palavras, eu, Baruch, segui meu caminho. Mas quando o povo percebeu
que eu desejava afastar-me, levantou a voz em lamentos, clamando: “Aonde
vais tu? Por que, Baruch, nos abandona, como um pai que vai embora e deixa
os filhos na orfandade? (...)” Fonte
[Tricca, p. 304,316-8] |
A glória que
viria após a vitória final do Bem não seria vivenciada apenas pelos que
houvessem nascido um pouco antes. A mesma literatura que punha fim ao dualismo
trazia, também, a inovação da crença na vida após a morte e na ressurreição dos
mortos, para que os justos de todos os tempos aproveitassem a renovação da
Criação. Nos livros mais antigos da Bíblia hebraica - e alguns após o exílio em
Babilônia - é ausente ou débil a ideia de continuidade da existência. Para um
homem virtuoso, era esperada uma vida longa, muitos filhos, uma morte tranquila
e um sepultamento junto ao pai. Não haveria exatamente uma nova vida: as almas
continuariam a existir num lugar chamado Xeol nas profundezas da Terra. Lá
levariam uma existência apagada, não importando se foram bons ou maus.
Lembra-te que minha vida é um sopro, e que meus olhos
não voltarão a ver a felicidade. Os olhos de quem
me via não mais me verão, teus olhos pousarão sobre mim e não mais
existirei. Como a nuvem se dissipa e desaparece, assim que desce ao Xeol
não subirá jamais. Jó:
7-10 Volta-te, Iahweh! Liberta-me! Salva-me por teu
amor! Pois na morte ninguém se lembra de ti, quem te
louvaria no Xeol? Salmos
6:5-6 Ainda há esperança para quem está ligado a todos os
vivos, e um cão vivo vale mais que um leão morto. Os vivos sabem ao menos
que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, por
que sua memória cairá no esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme já
pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo que se faz debaixo do
Sol. Eclesiastes 9:4-6 Com efeito, não é o Xeol que te louva, nem a morte
que te glorifica, pois já não esperam em tua felicidade aqueles que descem
à cova. Os vivos, só os vivos é que te louvam, como estou fazendo hoje.
Isaías
38:18-19 Não te
prives da felicidade presente, não deixes escapar nada de um legítimo
desejo. Não deixarás a outro os teus recursos, e o fruto de teu trabalho à
decisão da sorte? Dá e recebe, faze divagar a tua alma, pois não há no
Xeol quem procure algum prazer. Como uma roupa, toda carne vai
envelhecendo, porque a morte é lei eterna. Como as folhas numa árvore
frondosa tanto caem como brotam, assim a geração de carne e sangue: esta
morre, aquela nasce. Eclesiástico 14:14-20 |
Sendo assim,
uma pessoa só podia se imortalizar através dos filhos, daí a grande preocupação
em deixar descendência e o temor a qualquer coisa que pudesse acontecer a ela.
Não é à toa que diversas ameaças e punições divinas no Antigo Testamento
envolviam a prole do faltoso (156).
No judaísmo
posterior ao exílio, talvez por influência persa e pela constatação de que
muitos justos sofrem e maus prosperam nesta vida, começam a se desenvolver
ideias a respeito da ressurreição dos mortos, i.e., a reunião da alma dos
falecidos com corpo a ocorrer durante a concretização das profecias
apocalípticas. Seria o tempo de as injustiças serem reparadas:
Como
mulher grávida, ao aproximar-se a hora do parto, se contorce e, nas suas
dores, dá gritos, assim nos encontrávamos nós na tua presença, ó Iahweh:
Concebemos e tivemos as dores do parto, mas quando demos à luz, eis que
era vento: não asseguramos a salvação da terra; não nasceram novos
habitantes para o mundo. Os teus mortos tornarão a viver, os teus
cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó,
porque o teu orvalho será um orvalho luminoso, e a terra dará à luz
sombras. Isaías
26:17-19 Nesse
tempo levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto aos
filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia qual jamais terá havido
até aquele tempo, desde que as nações existem. Mas nesse tempo o teu povo
escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no Livro. E muitos
dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e
outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos
resplandecerão como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos
a justificar hão de ser como as estrelas, por toda a eternidade. Quanto a
ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até
o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará. Daniel
12:1-4 |
No
deuterocanônico II Macabeus, torna-se mais explícita a crença em uma restauração
corporal. Era uma forma de honrar aqueles que morreram por sua fé na luta contra
o domínio da dinastia helênica dos Selêucidas na Palestina.
Passado
também este à outra vida, passaram a torturar da mesma forma ao quarto,
desfigurando-o. Estando ele próximo a morrer, assim falou: “É desejável
passar à outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as
esperanças de ser ressuscitado por Ele. Mas para ti, ao contrário, não
haverá ressurreição para a vida!” II Mc
7:13-4 Depois,
tendo organizado uma coleta individual, enviou a Jerusalém cerca de duas
mil dracmas de prata, a fim de que se oferecesse o sacrifício pelo pecado:
agiu absolutamente bem e nobremente, com o pensamento na ressurreição. De
fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam ressuscitar,
seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos. Mas se considerava que uma
belíssima recompensa está reservada para os que adormecem na piedade,
então era santo e piedoso seu modo de pensar (157). II Mc
12:43-5 |
Repare a
semelhança entre II Mc 7:14 e o registro feito por Flávio Josefo (158) sobre a
crença da facção dos fariseus:
Eles
também acreditavam que as almas tinham uma força imortal dentro delas e
que sob a terra elas serão premiadas ou punidas, segundo elas tivessem
vivido virtuosamente ou em vício esta vida; e estas últimas são mantidas
numa prisão eterna, ao passo que as primeiras terão o poder de
revivificar-se e viver novamente (...) Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap.
I |
Uma forma
curiosa de ressurreição apenas para os bons, o que não significa a inexistência
de uma variante dessa crença onde os maus também ressuscitassem para o castigo.
O livro de II Baruque assim relata:
“Terminado o tempo vigente do Messias, Ele voltará de
novo à glória do céu. Então haverão de ressuscitar todos aqueles que outrora
adormeceram na esperança. Naquele tempo acontecerá que se abrirão as
câmaras onde se demoram as almas dos piedosos; elas sairão, e todas essas
numerosas almas, como uma legião de um só coração, apareceram todas
juntas, abertamente. As que foram as primeiras, alegrar-se-ão; as que
foram as últimas, não estarão tristes. “Cada uma
delas sabe que foi chegado o tempo, previsto como o fim de todos os
tempos. As almas dos pecadores perder-se-ão em angústia, ao presenciarem
tudo isso. Pois elas já sabem que o tormento as atingirá, e que a hora da
sua condenação é chegada.” Cap. XXX.
Fonte: [Tricca, p. 317] |
O mesmo livro
vai além e descreve o próprio processo de ressurreição:
Mas além
disso, eu te pergunto, ó Poderoso; e pedirei graça dele que criou todas as
coisas. Em qual forma irão os viventes viver em seu dia? Ou como
permanecerá o esplendor que haverá depois dele? Irão eles, talvez, retomar
esta presente forma e adquirirão membros acorrentados que são malignos e
pelos quais males são feitos? Ou irás mudar essas coisas que têm estado no
mundo, bem como o próprio mundo? E ele
respondeu e me disse: “Ouça, Baruch, estas palavra e registre na memória
de seu coração tudo o que aprenderá. Pois a terra seguramente devolverá os
mortos naquele tempo; ela os recebe agora a fim de preservá-los, sem mudar
nada em sua forma. Mas assim como ela os tem recebido, então ela os
devolverá. E como eu os tenho enviado para ela, então ela os erguerá. Pois
aí será necessário mostrar aos que vivem que os mortos estão vivendo
novamente e que voltaram os que partiram. E será então quando tiverem
reconhecido uns aos outros aqueles que se conhecem neste momento, então
meu julgamento será forte e aquelas coisas que foram ditas antes serão
cumpridas.“ E será
então após esse dia que ele indicou ter acabado é que tanto a forma
daqueles que se descobriram culpados quanto a glória dos que se
demonstraram justos serão mudadas. “Pois a forma dos que agora agem
iniquamente será feita mais maligna que é (agora) de modo que sofram
tormento. Também, como a glória dos que demonstraram serem justos em nome
de minha lei, os que possuíram inteligência em sua vida e os que plantaram
a raiz da sabedoria em seu coração – seu esplendor será então glorificado
por transformações e a forma de sua face será convertida na luz de sua
beleza de modo que possam adquirir e receber um mundo imperecível que está
prometido a eles (*). Portanto, especialmente eles que então virão a ficar
tristes, porque desprezaram minha Lei e taparam seus ouvidos a fim de que
não ouvissem sabedoria e recebessem inteligência. Quando, portanto, virem
que os que estão acima deles, que são agora exaltados, serão então ainda
mais exaltados e glorificados que eles, então tanto estes e aqueles serão
mudados, estes no esplendor dos anjos e aqueles em aspectos chocantes e
formas horríveis; e arrasar-se-ão ainda mais. Pois primeiro verão e,
então, partirão para o tormento. (...)” (159) Cap
49-51. Fonte: [Charlesworth, p. 637-8] (160) (*)
Compare essa transformação com Enoque 62:10 exposto acima. |
Nem todos os
grupos judaicos adotaram a ressurreição, pois esta era mais própria dos fariseus
e simpatizantes, que a difundiram entre os populares. Os saduceus, mais ligados
à elite, recusaram as inovações e mantinham a crença original de seus
antepassados (161). A seita dos essênios aparentava crer numa espécie de
imortalidade sem ressurreição, conforme relata Flávio Josefo:
Pois sua
doutrina é esta: que os corpos são corruptíveis e que a matéria de que são
feitos não é permanente; mas que as almas são imortais e continuam para
sempre; e que vieram do mais sutil ar e são unidas a seus corpos como a
uma prisão, a que foram arrastadas por um espécie de atração natural; mas
quando são libertadas dos laços da carne, então elas, como libertas de um
longo cativeiro, regozijam-se e ascendem. E isso é como as opiniões dos
gregos, que boas almas têm suas moradas além do oceano, numa região que
não é oprimida nem pelas tempestades de chuva ou neve, nem com calor
intenso, mas esse tal lugar é refrescado por uma suave brisa de um vento
do oeste, que sopra perpetuamente do oceano; ao passo que designam para as
almas más um antro escuro e tempestuoso, cheio de castigos incessantes. E
de fato os gregos aparentam-me seguir a mesma noção, quando designam as
ilhas dos abençoados para seus bravos homens, a quem chamam de heróis e
semideuses; e para as almas dos iníquos, a região dos ímpios, no Hades,
onde suas fábulas relatam que certas pessoas, tais como Sísifo, e Tântalo,
e Ixíon, e Títio, são punidos; que está assentada sobre essa primeira
suposição, que as almas são imortais; e daí são reunidas as exortações à
virtude e dissuasões da iniquidade; pelas quais bons homens são
aperfeiçoados na conduta de sua vida através da esperança de terem uma
recompensa após suas mortes; e pelas quais a veementes inclinações dos
maus ao vício são restringidas através do medo e da expectativa em que se
encontram de que, apesar encobrirem nesta vida, devam sofrer castigo
imortal após suas mortes. Essas são as doutrinas divinas dos essênios
sobre a alma, que lançam uma irresistível isca para os que uma vez que
tiveram uma amostra de sua filosofia. Guerras,
livro II, cap. VIII |
E, de fato,
após a descoberta e tradução dos manuscritos de Qumran, um dos trechos
encontrados reflete bem essa postura:
O julgamento divino de todos que caminham com este
espírito será a saúde, uma vida longa em grande paz, e abundância, junto
com todas as bênçãos eternas e alegrias infinitas numa vida sem fim, uma
coroa de glória e uma vestimenta majestosa de luz infinda. Mas os caminhos do espírito da falsidade são estes:
ganância e negligência na busca da retidão, maldade e mentiras, arrogância
e orgulho, hipocrisia e engano, crueldade e mal abundantes, mau humor e
muita insensatez e descarada insolência, atos abomináveis (cometidos) com
espírito de luxúria, e conduta lasciva a serviço da impureza, uma língua
blasfema, cegueira do olho e surdez o ouvido, cerviz dura, dureza de
coração, assim caminha, assim caminha este homem para as sendas das trevas
e do logro.
Preceito
da comunidade (1QS), IV (162) |
De posse desses
relatos documentais, dispõe-se de fundamentos para determinar o que os primeiros
cristãos herdaram do judaísmo intertestamentário. Analisando as fontes mais
antigas que nos restaram sobre ele – as que estão encravadas nos evangelhos
sinópticos – muitas similaridades saltam aos olhos entre o filho do carpinteiro
e um profeta contextualizado no mundo em que viveu.
Emérito
curandeiro e exorcista, Jesus – para seus primeiros fieis - demonstrava seu
poder e compaixão por meio do primeiro aspecto, o segundo não deixava de ser uma
variante dele, já que demônios surgem muitas vezes como causa de males a seus
hospedeiros. Jesus os expulsa sem alongar muito sua conversa com eles, já que
está mais interessado no restauro da sanidade do endemoninhado pela expulsão
definitiva de um “espírito impuro” (cf. Mc 9:25) que em trazer seu algoz para o
lado do Bem, revelando uma postura dualista próxima à encontrada nas versões
populares da religião judaica de então, como visto acima. Os evangelistas chegam
até a dar um ar performático à transferência de uma “legião” de demônios de um
indivíduo para uma manada de porcos (Mc 5:1-20 e Lc 8:26-37) similar aos
exorcismos relatados por Josefo. Um terceiro aspecto a fazer de Jesus um figura
carismática é, sem dúvida, sua pregação. Desnecessário fazer menção às diversas
noções de moral expostas em suas parábolas e sermões, que Kardec pinçou e
comentou sob óptica espírita em seu “Evangelho segundo o Espiritismo”. O
problema, para muitas seitas espiritualistas, é que, na releitura moderna que
fazem, deixam de fora grande parte de outra faceta de sua pregação: a
escatologia – o anúncio do fim da realidade tal como conheciam e sua preparação
para essa mudança, da qual seus ditos morais fazem parte. Não se trata uma
mudança gradual e suave, que levaria gerações numa longa “transição planetária”,
mas algo iminente para os que viveriam no século I:
Cumpriu-se o tempo e Reino está próximo.
Arrependei-vos e crede no Evangelho. (Mc 1:15) Dirigindo-vos a elas, proclamai que o Reino dos Céus
está próximo. (Mt 10:7) (...) curai os enfermos que nela houver e dizei ao
povo: “o Reino de Deus está próximo de vós”. (Lc 10:9) |
Esse Reino de
Deus não seria algo a ser desfrutado só pelos cristãos futuros, após o trabalho
de diversas gerações. Jesus falava para sua plateia e discípulos como se fossem
todos vivenciar todos esses acontecimentos ainda em vida e que ocorreriam de
forma cataclísmica neste mundo material:
De fato,
aquele que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e de
minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier
na glória de seu Pai com os santos anjos. (...) Em verdade vos digo que
estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o Reino
de Deus chegando com poder. (Mc 8:38 – 9:1) Naqueles
dias, porém, depois daquela tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará
sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu e os poderes que estão
nos céus serão abalados. E verão o Filho do Homem vindo entre nuvens com
grande poder e glória. Então ele enviará os anjos e reunirá seus eleitos,
dos quatro cantos, da extremidade da terra à extremidade do céu. (... ) Em
verdade vos digo que esta geração não passará enquanto não tiver
acontecido tudo isso. (Mc 13:24-27, 30) De fato,
como o relâmpago relampeja de um ponto do céu e fulgura até o outro, assim
acontecerá com o Filho do Homem em seu dia. (...) como aconteceu nos dias
de Noé, assim também acontecerá nos dias do Filho do Homem. Comiam,
bebiam, casava e davam-se em casamento até o dia Vós,
também, estai preparados, porque o Filho do Homem virá numa hora que não
pensais (Q via Lc 12:40; Mt 24:44) Da mesma
forma que se junta o joio e se queima no fogo, assim será no fim do mundo:
o Filho do Homem enviará seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os
escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha
ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes. Então os justos brilharão
como o sol no Reino de seu Pai. (M, via Mt 13:40-43) Cuidado
para que vossos corações não fiquem pesados pela devassidão, pela
embriaguez, pelas preocupações, da vida, e não se abata repentinamente
sobre vós aquele Dia, como um laço; pois ele sobrevirá a todos os
habitantes da faze de toda a terra. Ficai acordados, portanto, orando a
todo momento, para terdes a força de escapar de tudo o que deve acontecer
e de ficar de pé diante do Filho do Homem. (L, via Lc 21:34-36) |
Ensinamentos
apocalípticos encontrados em quatro fontes independentes das mais antigas fontes
para o Jesus histórico, cujo crédito é reforçado por pensamentos análogos
disponíveis em diversos apocalipses judaicos (Daniel, Enoque, II Baruque,
Preceito da Guerra, etc.) correntes no período intertestamentário. Jesus era um
profeta apocalíptico também, a esperar a descida dos poderes de Deus à Terra
ainda em sua geração, para ceifar todo o mal reinante e instaurar o domínio
paradisíaco dos justos. Nesse contexto histórico, os ensinamentos morais de
Jesus revelam motivações de urgência: como em breve não haveria mais ódio, as
pessoas deveriam se amar desde já; como não haveria mais fome, deve alimentar os
famintos, como o mal seria extinto, deve-se opô-lo de já, por exemplo,
expulsando demônios; como não haverá mais doentes, que sejam curados
imediatamente (163). Em suma, este era o cristianismo primitivo: uma seita
judaica dualista e apocalíptica (164).
Apesar de a
tese de um Jesus histórico como profeta apocalíptico ter sido (e ser) defendida
por nomes como Albert Schweitzer, Barth Ehrman e Geza Vermes; ela também possui
rivais importantes no meio acadêmico. Uma das principais alternativas seria a
visão de Jesus como um antigo “filósofo cínico”: alguém dedicado principalmente
a afastar seus discípulos das preocupações e armadilhas da vida, a fazê-los doar
tudo o que possuíssem e convencerem os outros a fazer o mesmo. Tal é a visão dos
membros do Jesus
Seminar (Seminário de Jesus), autores de The Five Gospels.
Para eles, versículos como Mc 1:15 não são ditos originais de Jesus porque:
Nos
evangelhos, Jesus raramente é representado chamando as pessoas ao
arrependimento. Tal admoestação é característica da mensagem de João
Batista (Mt 3:7-12; Lc 3:7-14). Como uma visão apocalíptica da história, o
chamado ao arrependimento pode ter sido derivado de João e então atribuído
a Jesus. Os
Membros [do Seminário] concluíram que as frases que constituem o dito,
excetuando “domínio imperial de Deus” [i.e. “Reino de Deus”] são a
linguagem de Marcos ou sua comunidade. Marcos sumarizou em suas próprias
palavras o que ele acredita ter dito Jesus. [Funk, p.
41] |
Note que os
participantes de The
Jesus Seminar não afirmam que os ditos apocalípticos são interpolações
tardias, tal como o episódio da mulher adúltera no evangelho de João (Jo 7:53 –
Jo 8:11) e o parêntese joanino (I Jo 5:7-8). O dito de Mc 1:15 pode não ter
saído da boca de Jesus por esse critério, mas pode muito bem pertencer à redação
original desse evangelho, já que Marcos (ou sua comunidade) assim criam. O
próprio Seminar
reconhece que:
As
opiniões de João Batista e Paulo têm orientação apocalíptica. A igreja
primitiva à parte de Paulo partilha da opinião de Paulo. A única questão é
o conjunto de textos que representam o domínio de Deus como presente foram
ofuscados pelas noções apocalípticas dos predecessores imediatos de Jesus,
seus contemporâneos e seus sucessores. Se Jesus meramente adotou as
opiniões populares, como tais ditos como Lc 17:20-21 e Lc 11:20 sugiram? A
melhor explicação é que se originaram com Jesus, já que vão contra
tendência dominante da tradição de revelação. Os membros do Jesus Seminar
estão convencidos da sutilidade do senso de tempo de Jesus – a
simultaneidade do presente e do futuro – foi quase esquecida em seus
seguidores, muitos dos quais, afinal, começaram como discípulos de João
Batista e são representados, nos evangelhos, entendendo precariamente
Jesus. A
evidência confirmadora para essa conclusão jaz na maioria das parábolas de
Jesus: elas não refletem uma visão apocalíptica da história. Entre suas
principais parábolas estão: o samaritano; o filho pródigo; banquete de jantar;
trabalhadores da vinha; o administrador infiel; o escravo impiedoso; o
juiz corrupto; o fermento; o grão de mostarda; a pérola; o tesouro. O Jesus
Seminar
premiou com uma designação rosa [i.e., deu como prováveis] todos os
ditos e parábolas de Jesus em que o reino é representado como atual; os
ditos restantes, nos quais o domínio de Deus é retratado como futuro,
foram votados como pretos [não são ditos de Jesus]. (165) [Funk, p.
137] |
Assim, para
esse grupo de pesquisadores, ainda que a “versão
Não se pode,
porém, falar de cristianismo sem mencionar a figura de Paulo de Tarso, que foi
um verdadeiro “divisor da águas” na história dessa religião ao defender que
gentios pudessem ser cristãos sem antes serem judeus. Essa foi a chave para a
sobrevivência do cristianismo após o esmagamento da revolta de Bar Kochba. Sem
isso, é provável que o cristianismo não passasse de mais um credo étnico com
grandes chances de ter suas fileiras absorvidas pelo partido farisaico. Com
Paulo, a nova fé ganhou praticamente todo o mundo mediterrânico para se
expandir. Muitos simpatizantes da parte ética do judaísmo, que travaram contato
com ele através das diversas comunidades judaicas do Império Romano, devem ter
se interessado pela nova fé, que os dispensava de práticas estranhas a eles
(circuncisão, por exemplo) e das várias restrições dietéticas. Ao contrário de
Jesus, Paulo deixou escritos de próprio punho: dos vinte e sete livros do Novo
Testamento, quatorze são cartas atribuídas a ele, das quais oito são tidas pelos
estudiosos como genuínas (167). É, sem dúvida, o mais prolífico autor cristão do
século I e sua influência foi tanta que talvez a religião que hoje tem Jesus
como profeta último talvez merecesse mais acertadamente o nome de “paulinismo”.
(168)
Mas como ele se
enquadrava entre seus contemporâneos? Não é difícil encontrar paralelos entre
algumas de suas ideias com doutrinas encontradas na literatura
intertestamentária. O contraste de Paulo
Se cremos
que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus,
Deus há de levá-los em sua companhia. Pois isto vos declaramos, segundo a
palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos aqui para a Vinda
[Parousia]
do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram. I Ts
4:14-5 Digo-vos,
irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a
corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um
mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num
instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim a
trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos
transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a
incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade. I Cor
15:50-3 |
Paulo deixa
claro que nem todos a quem dirigiu essas cartas estariam mortos antes da
(segunda) vinda Jesus. Ele esperava a consagração do Reino de Deus ainda em sua
geração (cerca de 50 d.C.). Paulo também era um pregador apocalíptico. Sua
defesa da iminência do fim de sua era teve corolários em suas prescrições para a
conduta dos membros das igrejas por ele fundadas:
Quisera
que todos os homens fossem como sou [i.e., celibatários e castos]; mas
cada um recebe de Deus o seu dom particular; um, deste modo; outro,
daquele modo. Contudo,
digo às pessoas solteiras e às viúvas que é bom ficarem como eu. Mas, se
não podem aguardar a continência, casem-se, pois é melhor casar-se do que
ficar abrasado. Quanto
àqueles que estão casados, ordeno não eu, mas o Senhor: a mulher não se
separe do marido – se, porém, se separar não se case de novo, ou
reconcilie-se com o marido – e o marido não repudie sua esposa! (...) Permaneça
cada um na condição em que se encontrava quando foi chamado. Eras escravo
quando foste chamado? Não te preocupes com isto. Ao contrário, ainda que
te pudesses tornar livre, procura antes tirar proveito da tua situação de
escravo. Pois aquele que era escravo quando chamado no Senhor é liberto do
Senhor. Da mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado, é um
escravo A
propósito das pessoas virgens, não tenho preceito do Senhor. Dou, porém,
um conselho como homem, que, pela misericórdia do Senhor, é digno de
confiança. Julgo que essa condição é boa, por causa das angústias
presentes; sim, é bom o homem ficar assim. Está ligado a uma mulher? Não
procureis romper o vínculo. Não estás ligado a uma mulher? Não procures
mulher. Todavia, se te casares, não pecarás; e se a virgem se casar, não
pecarás. Mas essas pessoas terão tribulações na carne; eu vo-las desejaria
poupar. Eis o que
vos digo, irmãos: o tempo se fez curto. Resta, pois, que aqueles que têm
esposa, sejam como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não
chorassem; aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem; aqueles
que compram, como se não possuíssem; aqueles que usam deste mundo, como se
não usassem plenamente. Pois passa a figura do mundo. I Cor
7:7-11, 20 -31 |
Paulo advoga um
imobilismo social e “sexual” que só se torna razoável justamente porque acredita
ser passageiro o estado atual do mundo, afinal o “tempo se fez curto”, o fim
estava próximo, acarretando as “angústias presentes”. Não faria sentido fazer
uma apologia velada à escravidão e explícita à castidade generalizada pensando
numa duração de longo prazo para a sociedade. Essa moral castradora teve
desdobramentos no folclore cristão posterior. Tertuliano relata (169) a
existência de um texto forjado por um presbítero da Ásia Menor (atual Turquia)
que narrava a história de Tecla – uma das mais notáveis discípulas de Paulo – e
era usado para justificar o batismo feito por mulheres. O presbítero teria
confessado a fraude em tribunal eclesiástico e alegara tê-la feito “por amor a
Paulo”. Acabou perdendo o cargo. Fica no ar o quanto o texto era de sua própria
invenção, mas é plausível que anônimo presbítero tenha compilado um conjunto de
tradições orais e obras antecessoras ao fazer esse trabalho, até para facilitar
a aceitação em sua comunidade. Caso o apócrifo neotestamentário que é conhecido
hoje como "Atos de Paulo e Tecla" faça parte desse fabrico,
podemos ter ideia do valor que a castidade tinha para algumas comunidades
cristãs. Logo no primeiro capítulo, Tecla ouve o sermão do andarilho Paulo:
Abençoados os puros de coração, pois verão a Deus.
Abençoados os que mantêm imaculada sua carne, pois serão o templo de Deus.
Abençoados os moderados, pois Deus se revelará a eles. Abençoados os que
abandonam seus divertimentos seculares, pois agradarão a Deus. Abençoados
os que têm esposas como se não as tivessem, pois serão feitos anjos de
Deus. (...) Abençoados os corpos e almas de virgens, pois agradam a Deus e
não perderão a recompensa de sua virgindade, pois a palavra de seu Pai se
mostrará eficaz para a sua salvação no dia de seu Filho e gozarão o
descanso para todo o sempre, |
Ou seja, de um
pregador apocalíptico a anunciar a morte e ressurreição de Jesus para a salvação
do mundo, esse novo “Paulo” se tornou um partidário da renúncia sexual como
condição sine qua
non para a salvação. Não é preciso dizer que se isso fosse levado às ultimas
consequências a humanidade estaria extinta. Ou talvez não, se o tempo restante
para isso fosse insuficiente...
Por fim,
encerando o Novo testamento, encontra-se a Revelação de João de Patmos, um
apocalipse cristão por excelência. Mas, afinal, o que tem a ver o enquadramento
dos primeiros cristãos com uma seita apocalíptica e a reencarnação? Simples:
ambos são mutuamente excludentes. Não faz sentido falar em um longo processo
depurativo se justamente o que falta é tempo para isso. O que não significa a
inexistência de “cristianismos” reencarnacionistas no passado. Havia seitas
gnósticas, por exemplo, acreditavam
Agora
Basílides, falhando em observar que essas coisas devem compreendidas a
partir de lei natural, rebaixa o discurso do Apóstolo para fábulas
insensatas e profanas [cf. I Tm 4:7] e tenta produzir a partir dessa fala
do Apóstolo a doutrina chamada de µete?s?µat?s??, i.e.,
que as almas são transferidas para dentro de um corpo após outro. Pois ele
diz que Paulo diz: “outrora vivia sem a lei” [Rm 7:8-9], que significa:
Antes de vir para dentro deste corpo, vivi numa forma corporal que não
estava sob a lei, ou seja, a de uma vaca ou de um pássaro. Mas ele falha
em olhar o que se segue, a saber: ”Mas quando o mandamento veio, reviveu o
pecado” (Rm 7:9). Pois Paulo não diz que ele veio para o mandamento, mas o
mandamento lhe veio; e não diz que não que o pecado não existia nele, mas
que estava morto e reviveu. Por essas declarações ele está
garantidamente mostrando que dizia ambas as coisas a respeito da
mesma e única vida sua. Mas que Basílides e os que partilham de suas
percepções sejam deixados a sua própria impiedade. Voltemo-nos, porém,
para o sentido do Apóstolo em conformidade com pia reverência para
doutrina eclesiástica. Comentário sobre a Epístola aos Romanos, Livro V,
cap. I, parágrafo XXVII |
Para os
gnósticos, não havia essa “premência escatológica” existente nos grupos mais
“convencionais”. De fato, em evangelhos protognósticos – como os de João e Tomé
– é baixo o viés apocalíptico. Sendo assim, para uma seita gnóstica era
perfeitamente viável a adoção da reencarnação, afinal seus fieis gozavam de um tempo
indeterminado para adquirir o conhecimento. Quando usavam obras de autores de
orientação apocalíptica – Paulo, por exemplo – a solução era usar e abusar de
raciocínios alegóricos, como o exposto acima por Orígenes. Laçando-se mão
descontroladamente de livres associações, é possível deduzir qualquer coisa de
um fragmento convenientemente pinçado de seu contexto. Aliás, isso me lembra
algo... (170)
O problema é
que grande parte das acusações espiritualistas de que a reencarnação foi
suprimida do cristianismo no século VI (e da Bíblia) alega que ela era
professada até pela ortodoxia. Se não era uma doutrina oficial, ao menos um
substrato comum à maioria dos cristãos. Bem, então como os cristãos que dariam
origem ao partido ortodoxo (os proto-ortodoxos) dos séculos II e III lidaram com
a demora da segunda vinda de Jesus? Para não arrefecer, o clamor apocalíptico teve que se
transformar à medida em que a geração que conheceu os apóstolos originais
morria. A Segunda Epístola de Pedro, um dos livros mais tardios do Novo
Testamento (ca. 125 d.C.), já demonstra a preocupação de seu autor com
impaciência que afetava as comunidades cristãs:
Amados, esta já é a segunda carta que vos escrevo,
procurando em ambas despertar o vosso pensamento sadio com algumas
admoestações, a fim de vos trazer à memória as palavras preditas pelos
santos profetas e o mandamento dos vossos apóstolos, a eles confiado pelo
Senhor e Salvador. Antes de mais nada, deveis saber que nos últimos dias
virão escarnecedores com seus escárnios e levando uma vida desenfreada, de
acordo com as suas próprias concupiscências. O seu tema será: “Em que ficou a
promessa da sua vinda? De fato, desde que os pais morreram, tudo continua
como desde o princípio da criação!” Mas eles fingem não perceber que
existiram outrora céus e terra, esta tirada da água, e estabelecida no
meio da água pela Palavra de Deus, e que nem por essas mesmas causas o
mundo de então pereceu, submergindo na água. Ora, os céus e a terra de
agora estão reservados pela mesma Palavra ao fogo, aguardando o dia do
Julgamento e da destruição dos homens ímpios. Há, contudo, uma coisa, amados, que não deveis
esquecer: é que para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um
dia. O Senhor não tarda a cumprir a sua promessa, como pensam alguns,
entendendo que há demora; o que ele está é usando de paciência convosco,
porque não quer que ninguém se perca, mas que todos venham a converter-se.
O dia do Senhor chegará como o ladrão e então os céus se desfarão com
estrondo, os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão e a terra,
juntamente com as suas obras, será consumida. II Pd 3:1-11 |
A data da segunda vinda começava a ficar indefinida, uma
solução foi dar períodos longos para seu advento, por exemplo, milênios – coisa
que o autor de II Pedro já sugere. Nessa visão, o autor da epístola de Barnabé
(171) relacionou
os seis dias da criação do mundo descritos em Gênesis com o seis mil anos
de história humana. O sétimo dia (o descanso) seria o estabelecimento,
literalmente, de um reinado de Jesus sobre a Terra, antes da transformação final
do mundo, o que não deixa de ser, de certa forma, um empréstimo de apocalipses
judaicos (por exemplo, II Baruque XXIX) que faziam da bonança da era messiânica
uma prévia do verdadeiro “mundo vindouro”:
Ainda, sobre o sábado, está escrito no Decálogo que
Deus o entregou pessoalmente a Moisés sobre o monte Sinai: “Santificai o
sábado do Senhor com mãos puras e coração puro” (Ex 20:8, Dt 5:12). Em
outro lugar, ele diz: “Se meus filhos guardarem o sábado, então estenderei
sobre eles minha misericórdia”(cf. Jer 17:24-5). Ele menciona o sábado no princípio da criação: “Em seis dias,
Deus fez as obras de suas mãos e as terminou no sétimo dia, e nele
descansou e o santificou” (Gn 2:2-3). Prestai atenção, filhos, sobre o
que significa: “terminou no sétimo dia”. Isso significa que o
Senhor consumará o universo em seis mil anos, pois um dia para ele
significa mil anos. Ele próprio o atesta, dizendo: “Eis que um dia
para o Senhor será como mil anos” (cf. Sl 94:4, II Pd 3:8). Portanto,
filhos, em “seis dias”, que são seis mil anos, o universo
será consumado. “E ele descansará no sétimo dia.” Isso quer dizer
que seu Filho, quando vier para pôr fim ao tempo do Iníquo, para julgar os
ímpios e mudar o sol, a lua e as estrelas, então ele, de fato, repousará
no sétimo dia. Por fim, ele diz: “Tu o santificarás
com mãos puras e coração puro.” Contudo, se alguém atualmente pudesse
santificar, de coração puro, esse dia que Deus santificou, então nós nos
teríamos enganado completamente (172). Porém, se este agora não é o caso,
ele os santificará verdadeiramente no repouso, quando formos capazes
disso, isto é, quando tivermos sido justificados e tivermos recebido o
objeto da promessa, quando não houver mais iniquidade, e o Senhor tiver
renovado tudo. Então, poderemos santificá-los, tendo sido primeiro nós
mesmos santificados. Ele finalmente lhes disse: “Não suporto
vossas neomênias (173) e vossos sábados”(Is 1:13). Vede como ele diz:
não são seus sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no
qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do
oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como
festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois
de se manifestar, subiu aos céus (174). |
Vale notar que o autor da Epístola de Barnabé demonstra a
presença da celebração do domingo já entre os primitivos cristãos helênicos, no
lugar de sábado, ainda que seus argumentos não devessem soar muito convincentes
para os judeus a quem ele destina. Ele também mostra a presença do movimento
milenarista já no começo do século II que, ao menos até Niceia, teve relativa
difusão e contou com o apoio de importantes nomes da patrística, como Justino
Mártir, Irineu de Lião, Tertuliano e Hipólito (175). A principal base canônica
para essa linha teológica se tornou o apocalipse joanino, mais especificamente a
descrição de um reino milenar de Jesus feita no capítulo XX. Obviamente, faltava
determinar quando o tal milênio se iniciaria. Alguns continuavam enxergar a
iminência da parúsia no momento em que viviam. Um caso famoso foi o do
montanismo, originário da província romana da Frígia no final do século II. Não
era, de início, exatamente uma facção herética ou cismática, mas um movimento
surgido dentro da própria ortodoxia, com quem ainda mantinha afinidade
teológica. Seu fundador, Montano, advogava um maior rigorismo moral e sexual,
mas o que se tornou realmente sua marca distintiva foi a crença de que as
revelações divinas não se encerraram com o fim da era apostólica e o Espírito
Santo continuava a agir por meio dos fiéis, o que foi um dos motivos pelo qual o
movimento também ficou conhecido como “Nova Profecia”. O próprio Montano tinha a
companhia de duas “profetizas”: Priscila (ou Prisca) e Maximila. Não nos restou
nenhum documento original desse grupo e tudo o que se sabe hoje dele vem das
obras patrísticas, seja de seus adversários, ou de um simpatizante especial:
Tertuliano, sendo que é dele a associação dos montanistas com o milenarismo
(176). O reinado de Jesus sobre a Terra deveria estar bem próximo, pois é
atribuída a Maximila a declaração: “depois de mim não haverá mais profecia, apenas o fim”
(177).
Bem, o fim não veio e nada mais constrangedor para um
movimento que o fracasso retumbante de uma profecia. Isso não significa
necessariamente o fim dele, tal como provam os tempos modernos a permanência das
testemunhas de Jeová e dos adventistas, mesmo após sucessivas predições
fracassadas. De fato, Agostinho de Hipona (De Haeresibus, cap. LXXXVI) nos relata a existência, em
seu tempo, de uma igreja “tertulianista” em Cartago, na atual Tunísia, e que,
segundo ele, derivou de uma dissidência dos montanistas promovida por
Tertuliano.
Claro que qualquer outro grupo milenarista não poderia tomar a postura
imediatista de Maximila sem o risco de desmoralização em curto prazo. Hipólito
(século III), por exemplo, estimou o advento do Reino para o que equivaleria ao
ano 500 da era cristã, estimando que a idade do mundo no nascimento de Jesus era
de 5.500 anos (178). Acontece que antes disso o cristianismo tornou-se
vitorioso, então ficou difícil conciliar o fim dos tempos com próprio sucesso da
Igreja Católica. De certa forma, tal ascensão do cristianismo marcou o declínio
das teses milenaristas. O ano “zero” do Reino milenar de Jesus passou a ser
identificado com o próprio nascimento dele e a consolidação da Igreja seria a
prova disso, como atesta Agostinho de Hipona:
Então os mil anos podem ser compreendidos de duas
formas, como me ocorreu até agora: ou essas coisas acontecem no sexto
milhar de anos ou sexto milênio (a última parte das quais está agora
passando), como se durante o sexto dia, que deve ser seguido por um sábado
sem anoitecer, o infindável descanso dos santos, de modo que, falando de
uma parte sob o nome do todo, ele chama de a última parte do milênio – ou
seja, a parte que ainda tinha de expirar antes do fim do mundo – mil
anos; ou
usou os mil anos como um equivalente para toda a duração deste mundo,
empregando o número de perfeição para marca o cumprimento do tempo (...) O
diabo, então, está agrilhoado e trancafiado no abismo de modo que não pode
seduzir as nações das quais a Igreja é constituída e que anteriormente
seduziu antes de a Igreja existir. Pois não se diz “que ele não
seduzisse qualquer homem”, mas “que ele não seduzisse as nações” (Ap 20:3) –
significando, sem dúvida, as nações entre as quais a Igreja existe – “até os mil anos
serem cumpridos” (Ap 20:3) – i.e., ou o que permanece do sexto dia que
consiste de mil de anos, ou todos os anos que vão passar até o fim do
mundo. Cidade de Deus, XX, cap. VII |
A parúsia foi lançada para um tempo distante e, assim,
completou-se um processo em que uma seita inicialmente judaica, marginal e
apocalíptica se tornou uma religião universalista, imperial e duradoura. O que
não significa que datas para o “fim do mundo” não reapareçam de tempos em
tempos, dadas por gente do calibre de Raoul Glaber (1.033), Joachim de Fiori
(1.260), Wiiliam Miller (1.843-4, cujo movimento deu origem aos adventistas do
sétimo dia) e os dirigentes da Watch Tower (Torre de Vigia), cujo grupo é
conhecido no Brasil como Testemunhas de Jeová e que, de 1914 a1975, se esmeraram
em marcar datas (179). Mesmo religiões que dão, digamos, um “prazo indefinido”
para a nossa realidade podem não resistir à tentação de se apropriar indebitamente reinterpretar o apocalipse
joanino. Há um exemplo disso no próprio movimento espírita:
Adiante, refere-se João à visão que, entre lágrimas,
teve do Cordeiro e do livro selado com os “Sete Selos”, detalhando os
acontecimentos relativos à abertura de cada um deles. Na abertura do “primeiro selo”, aparece na Terra, de
forma gloriosa, o Espiritismo. Simbolicamente, temos ali Allan Kardec
representado pelo cavaleiro que “trazia um arco e a quem foi dada a coroa
– saiu vencendo para vencer” – renascimento do Cristianismo puro. Kühl, Eurípedes; Fragmentos da
História pela Ótica Espírita, Petit, 1996, cap. IV, p. 35. |
O que não deixa de ser, de certa forma, uma postura similar
a de Agostinho em associar o “começo do fim” com o surgimento do próprio credo.
Mudam-se os tempos, já as especulações...
Pois bem, já que do século I ao V se apresenta uma evolução
do pensamento cristão acerca da escatologia, então teria havido também um
evolução nas crenças do pós-morte, de forma a reencarnação seria dominante na
ortodoxia ao tempo de Justiniano, certo? Errado. É aí que a crise origenista do
século VI e o II Concílio de Constantinopla se revelam uma espécie de par de
muletas criado para sustentar justamente esse primeiro mito. Não é difícil
encontrar em obras de autores espíritas - como “Analisando as Traduções Bíblicas”
(Severino Celestino da Silva, Idéia, 4ª ed., 2002), “A Reencarnação na Bíblia e
na Ciência” (José Reis Chaves, ebm, 7ª, 2006) ou “O Espiritismo e as Igrejas
Reformadas” (Jayme Andrade, EME, 1ª ed., 1983) – alusões à suposta simpatia
reencarnacionista de vários pais da Igreja. O problema é muito pouco há de
solidez nessas alegações. Eis um quadro-resumo baseado em uma análise que está
em Os
Pais da Igreja:
Teólogo |
Alegação |
Fonte |
Crítica |
Justino Mártir |
1) Fazia parte da listas dos santos
reencarnacionistas. 2) Defensor de uma maneira limitada de transmigração
das almas. |
1) [Chaves, cap. VI, p. 213] 2)[da Silva, cap. XVII, p.243, em citação] |
Não é apresentada nenhuma referência sobre onde
Justino tenha dito isso. Referências de autores espiritualistas anglófonos
(p.e. [Geddes, cap. III]) indicam a obra “Diálogos com Trifão”, cap. IV. A
obra, de natureza autobiográfica, narra a própria conversão do autor ao
cristianismo. No capítulo indicado para sua fala reencarnacionista, ele
ainda se apresenta como pagão, porém sua própria crença balança ante a
argumentação do judeu Trifão. Só no capítulo VIII é que abraça o
cristianismo. |
Clemente de Alexandria |
1) Fora acusado pelo teólogo bizantino Fócio de ser
partidário da reencarnação. 2) Defensor de uma maneira limitada de transmigração
das almas. |
1) [Chaves, cap. VI, p. 199-201] e [Andrade, parte
VIII, cap. III, p.183] 2) [da Silva, idem] |
Em um conjunto de resenhas sobre diversos livros e
autores (“Biblioteca ou Myriobiblon”), Fócio dedicou um verbete à obra Hypotyposes
(“Esboços”, citada apenas por J. Andrade) de Clemente, onde ele teria
falado “absurdos prodígios acerca da transmigração das almas
e a existência de numerosos mundos antes de Adão.” Do modo
que esse comentário está, pode-se supor um modelo inter-eras como o de
Orígenes. Infelizmente, Esboços está perdida e não saberemos até que
ponto a acusação procede. Se não fosse o ataque de Fócio, não
imaginaríamos um viés heteroxodo nela, pois nenhum outro escritor o faz.
Curiosamente, Fócio também fez resenhas simpáticas a duas outras obras de
Clemente (“Stromateis” e “Tutor”), que chegaram até nós e
contêm passagens contra a reencarnação. |
Arnóbio |
1) Em ”Adversus Gentes”
[Contra os Pagãos], evidencia uma certa simpatia por essa doutrina
[preexistência da alma] e acrescenta que Clemente de Alexandria “escreveu histórias maravilhosas sobre a
metempsicose”. |
1) [Andrade, parte VIII, cap. III, p.182-3] |
Em “Contra os Pagãos” não foi possível sequer
encontrar uma menção ao nome “Clemente”. A quem
quiser tentar (use "Clement" para esta versão inglesa), boa
sorte! A propósito, essa fala de Arnóbio lembra muito a de Fócio. Faz
pensar se, por acaso, não tomaram um autor por outro. |
Gregório de Nissa |
1) Um texto dele:
”Há
necessidade de natureza para a alma imortal ser curada e purificada, e se
ela não o for na sua vida terrestre, a cura se dará através de vidas
futuras e subsequentes.” |
1) [Chaves, cap. VI, p. 211-2] e [Andrade, parte
VIII, cap. III, p.183] |
Chaves cita de um espiritualista [Reencarnação,
J. van Auken], ao passo que Andrade dá como referência direta a obra Grande
Catequese, partes III e VIII. A questão é que Gregório de Nissa era
traducianista, i.e., acreditava que alma e corpo eram gerados juntos [v.
Sobre a Alma e a Ressurreição], não sendo viável,
assim, uma ideia de reencarnação, que até chegou a combater [v. Sobre a Criação do Homem, cap. XVIII]. Gregório
também era um universalista, acreditando que todos seriam salvos, ainda
que uns somente após longo estágio purgatório. Em Grande
Catequese, parte III, cap. XXXV, ele separa a purificação
pela água (batismo e arrependimento), escolhida por alguns ainda em vida,
da feita pelo “fogo”, a ser aplicada compulsoriamente “por longas eras
sucessivas” aos que morreram ainda pecadores. |
Jerônimo de Aquileia |
Teria relatado simpatias à transmigração e à
pré-existência das almas em suas cartas à Demétrias e a Ávito. |
1) [Chaves, cap. VI, p. 210-1] e [Andrade, parte
VIII, cap. III, p.182-3] |
Quem se dispuser a ler as cartas de Jerônimo para Demétrias (n.130) e a Ávito (n. 124) há de notar que a postura de
Jerônimo é totalmente hostil à transmigração e à pré-existência. A carta a
Ávito, por sinal, é a mesma onde ele expõe um resumo de sua tradução de De
Principiis, malhando Orígenes o tempo todo. É difícil crer que alguém,
ao associar Jerônimo à transmigração usando essas cartas, tenha lido
alguma delas realmente. |
Agostinho de Hipona |
Santo Agostinho escreveu: “Não teria eu
vivido em outro corpo, ou em outra parte qualquer, antes de entrar no
ventre de minha mãe?” (“Confissões”, I, cap. VI). |
1) [Chaves, cap. VI, p. 209] e [Andrade, parte VIII,
cap. III, p.183] |
O texto de J. Andrade deve possuir um erro de
tradução do inglês para o português em que was anybody foi traduzido por “estive em outro corpo”. A versão
de J. R. Chaves traz a tradução “era alguém”, mais conforme ao original
latino. O máximo que o trecho pode dar são cogitações sobre algum tipo de
pré-existência. Agostinho nunca se decidiu quanto à questão da origem da
alma [v. Sobre a Alma e sua Origem, IV, III], mas quanto
ao destino da alma ele era bem claro: redenção ou danação eternas. Pode-se
ler isso em uma de suas principais obras - Cidade de Deus, XXI, XVII – onde, inclusive,
ataca Orígenes. |
Não foi posto nesse quadro o próprio Orígenes - que é usado
por todos – e recebeu um tratamento à parte neste estudo, até por sua
complexidade. Não foram incluídos, também, membros da patrística que foram
explicitamente contra a reencarnação, mas em geral não usados por autores
espiritualistas, como Irineu de Lião (cf. Contra as Heresias,
II, XXXIII).
Caso autores espíritas/espiritualistas se limitassem a
seitas heréticas antigas, seria mais fácil sustentar a crença da reencarnação em
alguns grupos
cristãos primitivos. Quando o desejo de ser a verdadeira recriação do
“cristianismo puro” se tornou mais forte, foi necessário buscar exemplos em que
o presente espelhasse passado, principalmente no grupo que era ou veio a ser a
ortodoxia no século IV. O problema para eles é que, do ponto de vista histórico,
o fosso entre o que seria o cristianismo original e o espiritualismo moderno é
bem largo. Caso fôssemos dar um troféu “emulação da antiguidade” para um grupo
cristão atual, o provável vencedor seria alguma seita de judeus messiânicos
(i.e., que têm Jesus como Messias) que tivesse tendências apocalípticas.
Poderiam ser algo próximo ao menos à segunda geração de judeu-cristãos do século
I. Se os jurados desse concurso aceitassem também as cartas paulinas, então
várias seitas cristãs apocalípticas modernas poderiam concorrer ao prêmio.
Avançando um século e meio após a paixão, talvez fique constrangedor para um
espírita admitir que os cristãos da latinizada África Romana tinham um
comportamento similar ao que hoje pode ser encontrado em seitas pentecostais,
conforme um relato de Tertuliano
Para terminar, convém citar uma última herança do período
intertestamentário e que deve ter repercutido
Se a doutrina [da transmigração] fosse largamente
corrente, não deveria João ter hesitado em se pronunciar sobre isto, com
receio de sua alma ter realmente estado em Elias? E aqui nosso fiel
apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos
mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal
crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado
nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento. Comentário sobre o Evangelho de João, VI, cap.
VII |
... ele nada diz sobre a ausência ideia de pré-existência -
o cerne de seu sistema – entre eles. Ele a extraiu a partir da interpretação
alegórica da própria Escritura, até como uma forma de dar autoridade a sua tese,
embora não seja improvável que, por seu contato com os judeus, também tivesse
conhecimento de pseudoepígrafos contendo a pré-existência de forma bem mais
explícita:
“(...) Se
tu tens conhecimento dos homens de hoje, e dos que já se foram, eu [Deus]
conheço os que hão de vir. Quando Adão pecou, atraindo a morte sobre os
seus descendentes, foi então contada a grande massa daqueles que haveriam
de nascer; e foi preparado um lugar para aquela multidão, tanto para a
morada dos vivos como para a guarda dos mortos. Enquanto aquele número
predestinado não for preenchido, as criaturas que morreram não reviverão.
O meu Espírito é o de Criador da vida; e o mundo inferior continuará a
receber os mortos. “Porém,
mais coisas ainda ser-te-á permitido ouvir sobre o que irá acontecer após
esses tempos. Em verdade, a Salvação que vos preparei está próxima, e já
não tão distante como anteriormente.” II
Baruque, cap. XXIII. Fonte: [Tricca, p. 314] “Essas
coisas, o que quer que eu tenha lhe ensinado, o que quer que tenha
aprendido, e o que quer que tenha anotado, senta-te [e] escreve para todas
as almas dos homens, ainda que algumas delas ainda não tenham nascido, e
seus lugares preparados para a eternidade. Pois todas as almas foram
preparadas para a eternidade antes da composição da terra.” II
Enoque, XXIII, 5 (recensão longa) [Charlesworth, p. 140] (180) “Eu era
um jovem de boas qualidades, coubera-me, por sorte, uma boa alma; ou
antes, sendo bom, entrara num corpo sem mancha.”(181) Sb
8:19,20 |
A passagem de
II Baruque é mais surpreendente por falar claramente não só na pré-existência,
mas também na finitude da criação, tal como o oitavo anátema de 543 acusaria
Orígenes. Os versículos de Sabedoria de Salomão podem dar uma explicação para a
passagem do “cego de nascença” (Jo 9:2), sem ter de apelar para “pecados
pré-natais” (182). Óbvio que há certa especulação nessas comparações, mas elas
não deixam de lançar a hipótese de que Orígenes não tenha sido 100% original em
seu sistema e, sim, desfrutado de um derivado já um tanto tardio do período
intertestamentário.
Onde Orígenes
foi realmente inovador e com ideias que constituíram conclusivamente um “legado”
para a teologia cristã foi na transformação definitiva de Satanás no Anjo Caído.
E o que
se diz em muitos lugares, e especialmente em Isaías, de Nabucodonossor não
pode ser explicado por aquele indivíduo. Pois o homem Nabucodonossor não
caiu do céu, nem foi a estrela da manhã, nem se elevava da terra na
alvorada (Is 14:12). Nem iria qualquer homem de entendimento interpretar o
que se diz em Ezequiel sobre o Egito – a saber, que em quarenta anos
estaria desolado, de modo que o pé de um homem não seria encontrado nele,
e as destruições de guerra seriam tão grandes que sangue verteria por ele
todo e atingiria os joelhos (Ez 29:11) – seja daquele Egito que está
situado junto aos etíopes, cujos corpos são enegrecidos pelo sol. De
Principiis, IV, I, 22 – versão grega. |
Este trecho,
preservado tanto em latim (183) como em grego na coletânea de Philokalia
Gnostica, é apenas um eco de uma análise feita muito antes (no volume I)
sobre a questão da queda de Satã. Após citar uma ampla passagem do capítulo 14
de Isaías (versão LXX, do versículo 12 ao 22), Orígenes faz a adequação da mesma
ao seu sistema:
Muitíssimo evidente que por essas palavras ele é
apresentado como tendo caído do céu, ele que anteriormente era Lúcifer e
que se elevava na manhã. Pois se, como pensam alguns, ele era de uma
natureza de trevas, como se diz que Lúcifer existiu antes? Ou como
poderia se elevar na manhã quem não tinha nada de luz em si? Não, mesmo o
próprio Salvador nos ensina, falando do diabo: “Eis que eu vi
Satã cair do céu como um relâmpago” (Lc 10:18). Já que certa vez ele
foi luz. Além disso, nosso Senhor, que é a verdade, comparou o poder de
Seu próprio advento glorioso a um relâmpago nas palavras: “Pois assim como o
relâmpago brilha do alto do céu até sua altura novamente, então será a
vinda do Filho do homem” (Mt 24:27, ver nota 184). E ainda assim
compara-o a um relâmpago e diz que caiu do céu, que Ele poderia mostra por
meio disso que ele [Satã] certa vez estivera no céu, tivera um lugar entre
os santos, e gozara de uma parte da luz na qual todos os santos
participaram, pela qual eles são feitos anjos de luz, e pela qual os
apóstolos são denominados pelo Senhor a luz do mundo. Dessa forma, então,
tal ser existiu ante de se descaminhar, e cair para este lugar, e ter sua
glória transformada em pó (...). De
Principiis, I, V, 5. |
Fica implícito,
na versão latina de Rufino, que havia pessoas que consideravam Satã um poder
opositor permanente e equiparado a Deus, o poder do Bem, tal como no
zoroastrismo. Orígenes assevera Deus como o único poder criador e Mal seria
teria se originado de uma revolta deliberada contra esse poder, mas sem o
superar e sendo castigado por isso. Seu método alegórico deu os insumos para a
consolidação do dualismo cristão subsequente (185).
* * *
Poderia ser
encerrada esta dissertação sobre Orígenes. Mas não seria bom terminar sem ouvir
o que o “outro lado” teria a dizer, ainda que sua defesa seja, até agora, vã.
Notas:
(137) São
chamados de “sinópticos” porque é possível fazer um resumo (sinopse) único para
os três. Atualmente é bem aceita a tese de que Marcos foi o primeiro dos
evangelhos e serviu de base para redação de Lucas e Mateus. Como muitas
passagens possuem formas muito similares nesses dois últimos, mas não são
encontrados em Marcos, acredita-se na possível existência de um evangelho de
“logias” (ditos) chamado Q (do alemão Quelle – fonte) que foi mesclado à linha narrativa de
Marcos de maneira independente nos outros dois sinópticos. Portanto, se uma
passagem é comum aos três sinópticos, ela não procede três fontes diferentes,
mas unicamente de Marcos, do qual os outros dois dependem. Marcos, os ditos de
Q, o material exclusivo de Lucas (L) e o de Mateus (M) são as verdadeiras fontes
distintas. João é bem diferente dos outros três, pertencendo a uma tradição de
cristãos bem mais helenizados. Tomé é um evangelho de logias, cuja descoberta
tornou a hipótese de Q mais plausível. À parte seu conteúdo gnóstico, possui
parábolas muito similares às dos canônicos e, às vezes, até com leituras
consideradas mais antigas.
(138) Esses
critérios de historicidade foram apresentados em [Ehrman (2005), cap. VI, p.
161-6].
(139) Cf.
[Vermes (2006a), epílogo, p. 458-9] e [Vermes (2006b), cap. VI, p. 232-5], esse
último contendo várias citações talmúdicas. Para a importância da preservação da
vida no judaísmo moderno, que supera todos os demais mandamentos, ver O Judaísmo Vivo,
Michael Asheri, Ed. Imago, 1995, cap XLI, p. 253.
(140) Não
confundir com uma seita homônima de cunho gnóstico.
(141) No Livro
de Jó, Satanás aparece como uma espécie de membro do conselho divino, no papel
de uma espécie de anjo-promotor a duvidar da integridade humana, mais
especificamente de Jó. Seus diálogos com Iahweh dão a ideia de relação até mesmo
amigável entre eles. Em Crônicas (21:1), Satã se volta contra Israel e incita o
rei Davi a convocar um censo, atraindo a ira divina em forma de uma epidemia de
peste.
(142) Grosso
modo, a existência dos gigantes é pincelada em Gn 6:1-5, que o livro de Enoque
(ou Henoc, Enoch) desenvolve
(143)Esse
número é dado por [Kelly, cap. II, p. 54]. Na contagem que fiz a partir da
relação constante no catálogo manuscritos de [Vermes, 2004, p. 36-55] encontrei
dezenove cópias
de tal livro, a saber:
- Caverna 1:
1QEnGiants
- Caverna
2:
2QEnGiants
- Caverna 4:
4QEnGiantsa-c, 4QEnGiantse, 4QEna-g,
4QEnastra-d, psEn
- Caverna 5:
5QpapEnGiants1
Curiosamente,
não achei 4QEnGiantsd, que daria um total de
vinte. Há algumas variações entre a lista exposta por Vermes e a que consta na
lista de índices de títulos de [Martínez e Tigchelaar] e lá não só consta esse
documento (no lugar de 4QEnGiantse, que aparece
em outra parte), como alguns outros têm código diferente do atribuído por
Vermes. Não importa que lista se use, para totalizar cerca de vinte documentos é
preciso levar em conta não apenas os documentos que contêm Enoque completo (En),
mas também os que possuem apenas subdivisões dele como o Livro dos gigantes
(giants, em inglês) e
o astrológico (Enastr). O Livro dos gigantes também é chamado de pseudo-Enoque
(psEn) em alguns fragmentos.
(144) Ou
“Vigilantes”, em algumas traduções.
(145) São
palavras que possuem raízes linguísticas próximas: STM e STN, levando a hipótese
de uma delas ser trocadilho. Cf. [Kelly, cap. II, p. 50).
(146) Vermes
[2004] traduz simplesmente como “Satanás” o nome de “Belial” (Maldade, Perdição)
por identificá-lo como sendo a mesma figura, coisa que [Kelly, cap. II] não faz.
Martínez e Tigchelaar não alteram esse nome, talvez por fidelidade ao texto. Por
isso, resolvi manter “Belial”.
(147) Boa parte
do esforço de Kelly no segundo capítulo de Satã - uma
biografia se concentra em desvincular as referências a demônios na
literatura intertestamentária do que seria um ser essencialmente maligno como o
diabo cristão. As referências de Qumran, por exemplo, são dadas mais como sendo
a “figuras sem alma,
alegóricas ou metafóricas, que se ocupam de seus assuntos com um só objetivo, e
então desaparecem. Em outras palavras, não há Satã aqui” (p. 64). Uma das
dificuldades que ele bem levanta a favor de sua tese é como conciliar a ideia de
como Deus seria o criador intencional de Belial e o Anjo das Trevas e ao mesmo
tempo os deteste, se só estão cumprindo seu desígnio? Há um pequeno “porém”:
ainda que sua análise seja válida para os dois Espíritos de Preceito da
Comunidade e as batalhas entre o Bem e Mal de Manuscrito da
Guerra, elas não levam em consideração fragmentos de Qumran onde o Mal
encontra uma personificação que parece ser dada como real pelos membros da
seita, tal como o fragmento de maldição litúrgica contra Melkiresha, mostrado
acima. Ou ainda um fragmento que mistura cântico com exorcismo em 4Q510
(4QShirb):
...
louvores. A[ções de graça para o R]ei da glória. Palavras de ações de
graça nos salmos de ... ao Deus do conhecimento, o Esplendor do poder, o
Deus dos deuses, Senhor de todos os santos. [Seu] domínio é sobre todos os
poderosos cheios de força e todos ficarão aterrorizados pelo poder de Sua
força e espalhar-se-ão e serão afugentados pelo esplendor da mor[ada] de
Sua glória real. E eu, o Mestre, proclamo a majestade da Sua beleza para
afugentar e ater[rorizar] todos os espíritos dos anjos destruidores e os
espíritos bastardos, os demônios Lilith (*), os uivantes (?) e [os que
latem] os que atacam de súbito para descaminhar o espírito do entendimento
e para amedrontar seus corações e seus ... na era do domínio da iniquidade
e os tempos designados para a humilhação dos filhos da Lu[z], na culpa das
eras dos que foram abatidos pela iniquidade, não para a destruição eterna
mas para a humilhação pelo pecado. Exalta, ó justo, o Deus dos Milagres.
Os meus salmos são para os justos ... Que todos, cuja conduta é perfeita,
exaltem-nO. (*)Demônio que, segundo tradições extrabíblicas,
teria sido a primeira mulher de Adão. Rebelou-se contra o domínio
masculino e juntou-se a anjos caídos. Seria responsável, entre outras
coisas, pela morte de crianças e por adultérios. |
Por essas
razões, é melhor a tese da historiadora Líliane Crété de que o dualismo de
Qumran “demonstra o
quanto essa imagem de Satã estava presente no imaginário dos habitantes da
Palestina nos séculos I e II de nossa era”. Não houve nenhum salto entre o
Novo e o Velho Testamento que o período intertestamentário não cobrisse.
A propósito,
recomendo certo cuidado com a tradução em português disponível. No capítulo II,
p. 49,
Jubileus 10:8 é traduzido assim: “Oh, Senhor Criador, deixe alguns deles diante de
mim...” [O Lord, Creator, leave some of them before me...], o que é um
tanto literal. Ficaria melhor “deixe alguns deles comigo”, ou “para mim”. No mesmo
capítulo, página 63, lê-se: “no livro da Bíblia conhecido na Idade Média Cristã como
Eclesiastes (os protestantes o consideram parte da Apócrifa, mas os católicos e
cristãos ortodoxos acreditam que seja um livro inspirado do Antigo
Testamento)”. Bem, nos meus exemplares de Bíblias protestantes o livro de
Eclesiastes vai bem, obrigado. O que não consegui encontrar foi Eclesiástico. No
original em inglês, essa derrapada não ocorre, ainda bem!
(148)É provável
que tal erva seja a mesma relatada
Mas ainda no vale que rodeia Maquerom, do lado do
norte, encontra-se um lugar chamado Baaras, que produz uma raiz que tem o
mesmo nome e sua cor parece com uma chama e, ao anoitecer, emite luz
resplandecente. Não é fácil de ser colhida como seria esperado, em vez
disso ela se retrai de suas mãos, nem se deixará colher tranquilamente até
que ou a urina de uma mulher, ou seu sangue menstrual, seja jogada sobre
ela; e não somente isso: mesmo então é morte certa para os que a tocarem,
a menos que se leve e segure a raiz da mesma planta e assim extraí-la.
Também se encontrou um outro meio de colhê-la sem perigo, que é este:
cava-se uma vala bem ao redor dela, até que a parte ainda oculta a raiz
seja bem pequena. então amarra-se um cão a ela e, quando esse tenta seguir
aquele que o amarrou, a raiz é facilmente arrancada, mas o cão morre
imediatamente, como se fosse no lugar do homem que iria retirá-la; depois
disso não é preciso ter medo de tomá-la Guerras
VII - cap VI. Fonte: Project Gutemberg |
(149) É irrelevante, do ponto de vista histórico, a
natureza da ação demoníaca sobre os mortais. Céticos dirão que não passou de
embuste a performance que Vespasiano testemunhou. Espíritas podem
dizer que se tratou de um caso de desobsessão rústico. Pouco interessa o que
eram esses demônios, pois o que importa é como os contemporâneos encaravam esses
fatos. Dizer que, na verdade, era isso ou aquilo seria olhar o passado com os
olhos de um grupo do presente, um dos maiores erros que um historiador pode
cometer. Ainda que a crença em entes malignos seja equivocada, foi num meio onde
era difundida que o cristianismo nasceu. Se quisermos entender o cristianismo
primitivo, temos de nos subordinar aos seus primeiros adeptos, e não o
contrário.
(150) Mais uma vez o termo “Satanás” usado por Vermes foi
substituído por “Belial”.
(151) A Bíblia de Jerusalém transliterou como “cetim”. Outras
edições, como a de João Ferreira de Almeida, trazem “quitim”.
(152) Achei bastante elucidativos os comentários feitos por
[Reddish, p. 229-230]
(153) Atentar que esse livro não é continuação do
deuterocanônico atribuído ao mesmo profeta.
(154) Obviamente, a unidade de medida “litro” não existia
na época. Em versões inglesas do livro, encontra-se “a cor of wine”. Essa
unidade de capacidade (cor) corresponderia a aproximadamente
(155) Compare essa fartura dos tempos pós-apocalípticos com
aquela descrita mais acima no Livro de Enoque, 10:9 -11:2. Teria um autor lido
outro ou isso fazia parte do folclore de então?
(156) Cf. Gn 9:24-25, Dt
23:2, Dt 28:18, 2 Sm 12:13-14, 2 Sm 21:6, 1 Rs 2:33, 1 Rs 11:11-12, 1 Rs 21:29,
2 Rs 5:27, Is 14:21, Jr 16:10-11, Jr 29:21, Jr 32:18, Sl 109:14. Algumas
passagens preveem o fim das punições hereditárias em um tempo futuro, como Jr
31:29-30, e algumas a negam desde já: Dt 24:16 e Ez 18:20.
(157) Repare
que os livros de Macabeus fazem menção explícita a orações pelos mortos. Isto
pode ser um dos motivos que levaram os líderes da Reforma protestante a adotar a
Bíblia hebraica como Antigo Testamento e assim eliminar de seu cânon um livro
que iria contra a sua teologia, embora ele tivesse grande valor como
documento histórico por narrar um genuíno episódio.
(158) Se Flávio
Josefo aponta os fariseus como defensores da reencarnação, como defendem alguns,
favor explicar porque os maus, que mais precisariam de uma nova chance, não a
teriam. Também explicar porque reencarnar num mundo de sofrimento seria alguma
espécie de “recompensa”, se havia opções melhores...
(159) No
Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IV
A reencarnação fazia parte dos dogmas judaicos sob o
nome de ressurreição. Somente os saduceus, que pensavam que tudo acabava
com a morte, não acreditavam nela. As idéias dos judeus sobre esse
assunto, e sobre muitos outros, não estavam claramente definidas, pois
apenas tinham noções vagas e incompletas sobre a alma e sua ligação com o
corpo. Acreditavam que um homem que viveu podia reviver, sem entender
entretanto de que modo isso podia acontecer. Designavam pela palavra ressurreição o que o Espiritismo chama mais
apropriadamente de reencarnação. De fato, a ressurreição supõe o retorno à vida do corpo
que está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível,
porque os elementos desse corpo estão, desde há muito tempo, desintegrados
na Natureza. A reencarnação é o retorno da
alma ou Espírito à vida corporal, mas em um outro corpo, formado novamente
para ele, e que não tem nada em comum com o que se desintegrou. A palavra
ressurreição podia assim se aplicar a Lázaro,
mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, conforme se
acreditava, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de
Elias, porque João tinha sido visto desde criança e sabia-se quem eram seu
pai e sua mãe. João, portanto, podia ser Elias reencarnado, mas não ressuscitado. |
Tal argumento
de Kardec é muito questionável. Mesmo os grupos judaicos que desenvolveram em
tempos medievais o conceito reencarnacionista gigul ainda creem
em ressurreição no fim dos tempos. Algumas facções alegam que apenas última
encarnação será ressuscitada; outras, a primeira, e até há quem creia em uma
ressurreição que englobe todo o conjunto de vidas [cf. Blau]. O fato de a
ressurreição ser inviável do ponto de vista científico é irrelevante do ponto de
vista de um historiador. Se os judeus do período intertestamentário advogavam
uma ressurreição física, então qualquer estudo que se faça sobre eles deve
respeitar isso, do contrário correrá o risco de distorcer o passado para que se
adeque a ideias e vieses do presente. Por último, havia relatos que deixavam bem
claro que tal ressurreição estava longe de ser reencarnação nos moldes espíritas
ou um processo exclusivamente espiritual. O livro de II Baruque dá um exemplo
disso, apresentando uma ressurreiçã um exemplo disso, apresentando uma ressurreiç. O livro de
II Baruque do física seguida por uma espécie de transfiguração.
(160) O livro
Apócrifos – Os
Proscritos da Bíblia, vol. III, de Maria H. O. Tricca possui uma gigantesca
lacuna
(161) Os
saduceus, de acordo com o “Evangelho segundo o Espiritismo”, Introdução, item
3
Seita judia que se formou por volta de
|
Não deixa de
ser um tanto ilógico associar uma seita que cria em Deus e o temia com
materialistas. O fato de crerem que esta vida era a única que poderiam almejar
não os torna automaticamente sensualistas. Se as punições também eram deste
mundo, era preciso seguir condutas éticas para evitá-las, e isso também pode ser
encontrado na Antiga Lei. Seria um pouco de preconceito por não crerem em vida
após a morte?
(162) Existe ao
menos um fragmento encontrado em Qumran (4Q521) que descreve Deus, na era do
Messias, a curar feridos e ressuscitar os mortos. Se esse texto for de
composição da seita, então ela também cria na ressurreição dos mortos pós
apocalíptica.
(163) Vide
[Ehrman (2005), cap VII, p. 198]. Boa parte da linha de raciocínio extraída
neste capítulo veio de [Ehrman (2005), cap VI e VII], [Vermes (2004), cap. III,
p. 115-6], [Vermes (2006a), cap. X, p. 430-5], [Vermes (2006b), cap. VII, p.
263-79], [Charlesworth, Introdução, p. xxxiii]. O principal, digamos, acréscimo
feito aqui foi transcrever os textos que esses autores muitas vezes apenas dão
em forma de referência.
(164) Nas
palavras de Ehrman [2005, cap. VI, p. 179-80]:
É
importante considerar como os historiadores efetuam esse tipo de trabalho,
para lançar minha tese principal: a de que descobrir a respeito de Jesus
não é uma questão de adivinhação, por um lado, nem, por outro, de sair-se
com alguma ideia imaginosa. É sempre fácil aparecer alguém – qualquer um!
– com alguma alegação especulativa ou sensacionalista sobre Jesus: Jesus
era casado! Jesus teve filhos! Jesus era um mago! Jesus era marxista!
Jesus era um revolucionário armado! Jesus era gay (*)! Eu não estou
negando que as pessoas tenham todo o direito de dizer o que quiserem sobre
Jesus, sejam alegações sensacionalistas ou cautelosas. Para que possam
aceitá-las, no entanto, os historiadores precisam examinar as provas. As
únicas provas que dispomos são as fontes mais antigas, e não podemos
simplesmente tomá-las em sentido literal, nem ficar lendo em suas
entrelinhas para fazê-las dizer o que queremos que digam. Elas têm de ser
usadas de maneira crítica, de acordo com critérios estabelecidos e
princípios históricos. Uma vez
feito isso, chegamos a um entendimento historicamente plausível de Jesus,
que contextualiza sua figura – suas palavras, seus atos e suas
experiências – no tempo em que viveu, sem tentar fazer com que se encaixe
perfeitamente no nosso tempo. Sob muitos aspectos, a imagem de Jesus que
assim obtemos pode parecer estranha aos olhos modernos. Pois o fato é que
Jesus parece ter sido um apocalipcista judaico que previa o fim de nossa
época do mal ainda em sua própria geração. Pode não ser o Jesus sobre o
qual aprendemos nas aulas de religião, nem tampouco o Jesus propagado em
obras populares de ficção baseadas em alegações sensacionalistas. Mas
efetivamente parece ser o Jesus da História. (*)Todas
essas alegações foram feitas por estudiosos (e não estudiosos) que se
debruçaram sobre o Jesus histórico. Ver meu livro Jesus:
Apocalyptic
Prophet, pp. 21-22. |
(165) The Five Gospels é um livro ambicioso feito pelos membros do Jesus Seminar e que objetiva
“passar um pente fino” em todas as frases atribuídas a Jesus nos quatro
evangelhos canônicos mais o de Tomé, a fim de decidir quais teriam realmente
sido ditas por ele ou não. Nele é apresentado um código de cores para cada dito
de Jesus: vermelho (são palavras de Jesus), rosa (é provável que sejam palavras
dele), cinza (palavras duvidosas) e preto (não foi proferido por Jesus). É uma
obra técnica cujas análises são baseadas numa série de critérios apresentados no
capítulo introdutório, além de apresentar uma tradução para o inglês moderno e,
portanto, bem mais palatável que a versão King James. The Five Gospels guarda algumas surpresas
interessantes para o público leigo, como o fato de João ser quase todo rotulado
de preto, inclusive passagens caras aos teólogos espíritas, como a conversa com
Nicodemos (Jo 3:1-13) ou o “consolador prometido” (Jo 14:23-29). Vale lembrar
que o livro não avalia a veracidade dos atos atribuídos a Jesus (i.e., se ele
realizou milagres ou esteve neste ou naquele lugar), nem trata das falas dos
narradores.
(166) Vide
[Ehrman (2005), cap. VI, p. 163-4] para outros exemplos desse critério.
(167) [Vermes
(2006b), cap. III, p. 75-6]
Das
quatorze cartas a ele atribuídas pela tradição da igreja, a autenticidade
da epístola aos hebreus é universalmente rejeitada pela erudição crítica.
O cabeçalho de Aos hebreus, à diferença de qualquer outro título
de escritos associados a Paulo, não contém nenhuma menção a um autor ou
remetente. Apesar de construídas sobre as suas ideias, as chamadas
epístolas pastorais (1 e 2 Timóteo e Tito) são consideradas posteriores a
Paulo. Efésios e colossenses provavelmente são trabalhos apócrifos de um
imitador posterior a Paulo.stru do narrador.os os anos que v Não
obstante, mais da metade da coleção – isto é, as Epístolas aos Romanos, 1
e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, Filêmon, 1 e provavelmente 2
Tessalonicenses – é reconhecida por estudiosos contemporâneos do Novo
Testamento como escrita por Paulo já nos anos 50 do século I d.C. |
(168) [Read,
cap. II, p. 35]
A
controvérsia acerca de Paulo continua até hoje. A ele se atribui a
invenção do cristianismo – elevando “um exorcista galileu” à condição de
fundador de uma religião universal. Todavia, a animosidade dos líderes
judeus da época era causada pelo extraordinário êxito por ele alçado em
suas viagens de evangelização pelo Império Romano. As cartas que Paulo
escreveu àqueles que ele convertera em cidades como Efésio, Corinto e Roma
revelam grande respeito pela tradição judaica, mas uma insistência
inflexível em que a Lei Mosaica é agora redundante, em que somente podemos
ser salvos pela fé em Cristo. |
(169) Tertuliano, Sobre o Batismo, cap. XVII
Mas se os
escritos que erroneamente levam o nome de Paulo alegam o exemplo de Tecla
como uma licença para o ensino e batismo feito por mulheres, que saibam
que, na Ásia [atual Turquia], o presbítero que compôs tal escrito, como se
fosse aumentar a fama de Paulo por meios próprios, após ser condenado e
confessar que fizera isso por amor a Paulo, foi retirado de seu posto.
Pois quão crível pareceria ele, que nem mesmo permitiu a uma mulher
aprender com tamanha ousadia, daria a uma fêmea o pode de ensinar e
batizar! Que fiquem caladas, diz ele, e em casa consultem seus maridos.
(cf. I Cor 14:34-35) |
É bom lembrar que essa passagem de I Coríntios
(170) Ué? Por que está lendo esta nota? Por acaso intuiu
que a carapuça lhe servia e veio correndo vesti-la? Ou não vai querer perder a
pose e admitir que também lança mão de livres-associações ampla liberdade
interpretativa para enxergar reencarnação na Bíblia, ignorando todo o contexto
histórico? Se os gnósticos enxergavam até metempsicose, porque a interpretação
deles não seria aceitável a vocês? “Ah, mas as questões 611-3 do Livro dos Espíritos dizem que
uma transmigração tão direta assim não ocorre...”. Tá, então você subordina
sua interpretação à doutrina para que uma se encaixe na outra. Ok, já vi até
onde vai sua honestidade intelectual. Mas não se preocupe, pois não está
sozinho. De certa forma, todos os credos que alegam ser herdeiros de seus
predecessores fizeram isso. Mas um erro não justifica outro. Aliás, eu só queria
dizer mesmo é que Albert Schweitzer [cap. I] encarava o advento do gnosticismo
como uma resposta ao fracasso da escatologia. Pode voltar a ler o texto.
(171) A
epístola de Barnabé pode ser classificada como o que alguns chamam de “cânon
falido”: textos que tiveram alguma aceitação entre as comunidades cristãs
antigas, mas acabaram ficando fora do corpo “oficial” do Novo Testamento após
sua consolidação, deixaram de ser copiadas e (quase) caíram no esquecimento.
Epístola foi redescoberta nos Códices Sinaítico e no Gerusolemitano,
ambos trazidos a público no século XIX e quase nada traz sobre seu próprio
autor, sendo atribuída a Barnabé por referências feitas por autores da
patrística. No capítulo XVI, há uma menção à destruição do Templo de Jerusalém e
uma esperança em sua reconstrução com a ajuda romana. Isso impõe como limite
máximo para a antiguidade do documento o ano de 70 d.C. e também garante que ele
não é posterior a 132 d.C., quando a revolta de Bar Kochba eliminou qualquer
chance de os romanos o reconstruírem. Em linhas gerais, a epístola é endereçada
a leitores judeus (mas talvez visando um público cristão) e, com o uso e abuso
de alegorias, tenta provar que o judaísmo era um credo falso que deveria ser
sucedido pelo cristianismo. Há de se perguntar se, caso essa epístola adentrasse
o cânon, o antissemitismo cristão não seria ainda mais pronunciado ao longo dos
tempos.
(172) A edição
de Ante-nicene
Fathers, vol. I, traz a seguinte observação de Hefele: “Isso significa que:
‘Se os sábados dos judeus fossem o verdadeiro sábado, teríamos sido enganados
por Deus, que exige mãos puras e um coração puro’”.
(173) Neomênia
é a primeira lua nova, que marca o início de um mês no calendário lunar. Tal
como o sábado, a neomênia era um dia de repouso (Lv 23:24).
(174) Esse
“oitavo” dia da semana seria o domingo da ressurreição.
(175) Para
Justino, ver Diálogos com Trifão, cap. LXXX.
Mas eu e
outros, que são cristãos de pensamento correto em todos os pontos, estamos
certos de que haverá uma ressurreição dos mortos e mil anos em Jerusalém,
que então será construída, ornamentada e ampliada, [como] os profetas
Ezequiel e Isaías e outros declaram |
Para Irineu, Contra as Heresias,
livro V, cap. XXVIII, parágrafo III.
Quantos
foram os dias empregados a criar este mundo, tantos serão os
milênios da sua duração total. Eis por que o livro do Gênesis diz: “Assim foram
concluídos os céus e a terra e toda a sua ornamentação. Deus concluiu no
sexto dia toda a obra que fizera e no sétimo dia descansou de todas as
obras que fizera” (Gn 2:1-2). Esta é a descrição do passado, tal como
aconteceu, e ao mesmo tempo uma profecia para o futuro: com efeito, “se um dia do
Senhor é como mil anos”, se a criação foi acabada em seis dias, está
claro que a consumação das coisas será no sexto milênio. |
Tertuliano e
Hipólito serão referenciados a seguir.
(176)Tertuliano, Contra Marcião, livro III, cap. XXV:
E a
palavra da nova profecia, que é uma parte de nossa crença, atesta como ele
anteviu que haveria como sinal uma imagem dessa cidade [Nova Jerusalém]
uma visão prévia a sua manifestação. Essa profecia, de fato, foi bem
recentemente cumprida numa expedição ao Oriente. Pois isso é evidente, a
partir até mesmo do relato de testemunhas pagãs, que na Judeia havia,
suspensa no céu, uma cidade no começo de cada manhã, por quarenta dias. À
medida que o dia avançava, toda a imagem de suas muralhas esvaecia
gradualmente e, algumas vezes, desaparecia instantaneamente. Dizemos que
essa cidade foi provida por Deus para receber os santos na sua
ressurreição e restabelecê-los com a abundância de todas as genuínas
bênçãos espirituais, como uma recompensa para o que, no mundo, tenhamos
desprezado ou perdido; já que é tanto justo quanto digno de Deus que Seus
servos tenham sua alegria no lugar onde eles também sofreram aflição por
amor ao seu nome. Esse é o processo do reino celeste. Após encerrados os
seus mil anos, período dentro do qual estará completa ressurreição dos
santos, que mais cedo ou mais tarde se erguem conforme seus méritos,
seguir-se-á a destruição do mundo e conflagração de todas as coisas no
julgamento: seremos transformados num instante na substância dos anjos,
seja pela investidura de uma natureza incorruptível, e então seremos
levados para aquele reino no céu do qual estamos agora tratando, como se
não tivesse sido predito pelo Criador, (...) |
(177) Foi
difícil encontrar a fonte para esse texto. Ehrman [(2003), cap. VI, p. 150] a
cita mas não dá nenhuma referência. Após pesquisar um tanto às cegas, encontrei
e verifiquei que a informação procede de Epifânio, Sobre as Heresias,
XLVIII, II, disponível
(178) Hipólito
de Roma, Sobre
Daniel, cap. II
(..)Pois
como os tempos são mencionados a partir da fundação do mundo e contados a
partir de Adão, eles põem claramente perante nós a questão com que nossa
indagação trata. Pois a primeira aparição de nosso Senhor na carne ocorreu
em Belém, sob Augusto, no ano de 5.500; e Ele sofreu no trigésimo terceiro
ano. E 6.000 anos devem ser completos a fim de que o sábado possa vir, o
descanso, o santo dia “no qual Deus descansou de todos as Suas obras”
(Gn 2:2). Além
disso, ao mencionar o “outro”, ele especifica o sétimo, no qual há
descanso. Mas alguém pode estar pronto para dizer; “Como você me
provará que o Salvador nasceu no ano 5.500?” Aprenda isso facilmente,
ó homem; para as coisas que ocorreram antigamente no deserto, sob Moisés,
no caso do tabernáculo, foram constituídos tipos e emblemas de mistério
espiritual, a fim de que, quando a verdade viesse em Cristo nestes últimos
dias, você fosse capaz de perceber que essas coisas foram cumpridas. Pois
Ele lhe diz: “E farás uma arca de madeira imperecível e a cobrirás
de ouro puro por dentro e por fora; e farás o cumprimento de dois côvados
e meio, e disso a largura de um côvado e meio, e um côvado e meio de
altura” (Ex 25:10); que mede, quando tudo somado, cinco côvados e
meio, de modo que 5.500 anos podem assim ser deduzidos. |
(179) Para quem
quiser um relato, digamos, mais aprofundado sobre as previsões apocalípticas
furadas que ocorreram ao longo do tempo, recomendo o capítulo I de [Ehrman
(2001)] e [Gould].
(180) O
primeiro volume da série Apócrifos: Os Proscritos da Bíblia também contém II
Enoque (ou Livro dos
Segredos de Enoque) e possui essa passagem (p. 38-9), mas sua versão não
narra a história de Melquisedeque e a separação dos versículos é diferente.
(181) A Bíblia de Jerusalém
traz a seguinte nota de rodapé: “Este texto não ensina a pré-existência da alma como se
poderia crer, se fosse isolado do contexto. Ele corrige a expressão do versículo
19, que parecia dar prioridade ao corpo como sujeito pessoal, e sublima a
proeminência da alma”. Bem...
(182) Recomendo
ler o Comentário ao Evangelho de João feito por John Lightfoot.
(183) Da versão
latina:
E como
seria possível podermos aceitar, como dito a respeito de um homem, o que
está relatado em muitas passagens da Escritura e especialmente em Isaías a
respeito de Nabucodonossor? Pois não é ele um homem de quem se diz “ter caído do
céu”, ou que era “Lúcifer”, ou que “se eleva na
manhã” (Is 14:12). Mas com respeito àquelas previsões que se encontram
em Ezequiel quanto ao Egito, tais como a que ele seria destruído em
quarenta anos, de modo que não se encontraria pé de homem nela (Ez 29:11),
e que deveria sofrer tal devastação, que por toda a terra o sangue dos
homens subiria até os joelhos, eu não conheço ninguém dotado de
entendimento que pudesse relacionar isso ao Egito terreno, que faz
fronteira com a Etiópia. Mas vejamos se isso não pode ser compreendido mais
adequadamente na seguinte forma: sabendo que como há uma Jerusalém
celestial e uma Judeia, e uma nação que indubitavelmente a habita e é
chamada de Israel; então também é possível que haja certas localidades
próximas a essas chamadas ou de Egito, ou Babilônia, ou Tiro, ou Sídon, e
que os príncipes desses lugares e as almas, se há alguma, que os habitam
são chamados de egípcios, babilônios, tírios e sidonianos. A partir das
quais, conforme o estilo de vida que lá levavam, pareceria ter resultado
num tipo de cativeiro, em consequência do qual dizem que caíram da Judeia
para dentro da Babilônia ou Egito, de uma condição mais elevada e melhor,
ou terem se espalhado por entre os outros países. |
O trecho em
verde não tem
correspondente na versão grega, embora o resto a acompanhe de perto. Pode ser
que Rufino tenha trabalhado em cima de material distinto ou inseriu de próprio
punho uma prévia ao conteúdo do parágrafo seguinte. Fica no ar a questão.
(184) Orígenes
cita Mt 24:27 de um jeito diferente da maioria dos códices gregos que chegaram
até nós e de suas traduções subsequentes. Possivelmente trabalhou com outro
testemunho. Alfinetando um pouco a tradução feita para o português do livro Satã – uma
Biografia, constato que o texto inglês de H.A. Kelly preservou a versão
apresentada
(185)
Curiosamente, Severino Celestino da Silva - em Analisando as Traduções
Bíblicas, Idéia, 4ª ed., cap. XX, 282-3, - faz uma crítica aos que associam
a passagem de Is 14:12 à queda Satanás. Tudo bem até aí, a questão é que
Orígenes, usado por ele como exemplo de “reencarnacionista” na Igreja primitiva
(cap, XI, p. 157-8), interpretou essa passagem exatamente da forma que ele
critica. Irônico, mas não deixa de ser o resultado de um conhecimento apenas
superficial sobre Orígenes e sua teologia.