Contendas do Deserto – Orígenes, Justiniano, Teodora e o caso da Reencarnação no II Concílio de Constantinopla.

Parte IV

 

Não basta apenas dizer onde está o erro. Todo erro tem uma razão para existir e aquilo que se toma como "correto" não foi aceito sem bons argumentos. Tal é a tarefa desta terceira parte.

 

15 – Anátemas contra Orígenes

16 – Orígenes e o V Concílio

17 – Pretérito Imperfeito: Quando o passado não é exatamente aquilo que se gostaria

18 – Cristianismo, versão 1.0

 

 Seguir para a parte 5

 

 

 

14 – O II Concílio de Constantinopla e seu Contexto Histórico.

Em 381 d.C., o bispo homoousiano Gregório de Nissa foi a Constantinopla para participar do Concílio Ecumênico convocado por Teodósio I. Lá chegando, ficou estupefato com interesse da plebe por questões teológicas e deixou este famoso testemunho:

Em suma, não desconhecem a quem o sermão se refere. Todos os lugares da cidade estão cheios deles, os becos, os mercados, as praças, os distritos residenciais, os vendedores de roupas, os chefes das mesas de câmbio, os que vendem nossa comida. Se você pede o troco (101), ele filosofará contigo acerca do Criado e do Incriado; se você perguntar o preço do pão, ele responderá que “o Pai é maior e o filho é subordinado”; e se você disser, “o banho está pronto?” ele irá declarar que o Filho vem do não-ser. Eu não sei de como chamar esse mal, será que é uma loucura ou delírio, ou alguma outra doença que se espalhou pelo povo e desestabiliza a mente.

Sermão da Divindade do Filho e do Espírito Santo. Extraído de Patrologia Graeca, vol. 46, col. 557

Este trecho pode ter contribuído para o estereótipo desenvolvido no Ocidente de que seus irmãos do Levante perdiam tempo demais em infindáveis discussões teológicas. O termo “bizantinice” virou até sinônimo para falatório inútil. De fato,  a religião era uma presença constante no Império Cristão, mas deve-se levar em conta que Gregório de Nissa estava justamente na capital imperial e, também, sede do concílio, bem no ano de sua realização; além de Constantinopla ter sido por quarenta anos um reduto de arianos, facção que agora estava na defensiva. O cotidiano “médio” da capital deve ter sido mais calmo. Dando, a título de comparação, uma ideia do que poderia estar acontecendo, lembremos de como fica nossa sociedade em época de Copa do Mundo, eleições e plebiscitos. Quando a decisão passa, o calor das emoções diminui e seguimos nossa vida normal, embora os assuntos que elas levantaram continuem latentes nas mentes dos leigos. Futebol permanece uma paixão nacional, só que repartida entre vários times locais, em vez de seleções; a questão da violência ainda está aí, apesar de o plebiscito do desarmamento já ser página virada.

O insight  que o relato de Gregório de Nissa pode nos dar é sobre o quanto a questão religiosa é capaz de sair da sobriedade teológica e ganhar ares de confronto entre turbas: mais de cento e setenta anos depois e em uma nova controvérsia envolvendo calcedonianos e monofisistas, algo similar se repetia.  De certa forma, a acusação de nestorianismo procedia. Bastaria uma simples leitura das obras de Teodoro de Mopsuéstia para verificar que ele era um “nestoriano antes de Nestório” (102). O problema é que a questão não era tão simples assim. Teodoro, bem ou mal, não fora controverso em vida, morreu no seio na Igreja e, diferentemente de Orígenes, foi defendido por ortodoxos e condenado por hereges (monofisistas). Atacar a memória dos teólogos dos Três Capítulos era tido pelos clérigos latinos como uma afronta ao Concílio de Calcedônia, cuja teologia o ocidente adotou como marca distintiva do resto do império. Era inaceitável fazer média com uma heresia na esperança de reconciliação quando o esperado seria reprimi-la.  Em suma, a querela dos Três Capítulos estava mais para uma briga de torcidas organizadas que uma discussão filosófica. Poderia ser que Justiniano se iludisse pensando estar diante da última alternativa, mas Teodora era mais pragmática. Vigílio já lhe fugira uma vez, não haveria nada de mais em fazê-lo cumprir antiga promessa e retribuir a deposição de Silvério.  Se alguém tinha que ceder nesse equivalente eclesiástico de rixa entre Azuis e Verdes, não seria o lado monofisista (103). Entre o breve período que vai da chegada de Vigílio a Constantinopla (547 d.C.) até sua morte no ano seguinte, a imperatriz conseguiu ao menos providenciar uma reconciliação entre Vigílio e o patriarca Mena, após haverem se excomungado mutuamente (104).

O desenrolar dos fatos durante o resto da estadia do Papa na capital foi conforme o já citado aqui anteriormente por Mosheim e corroborado por Bury e Evans [cap. IX, p. 101-104], com Vigílio tentado se equilibrar entre Justiniano e os bispo latinos. O resultado final foi a derrota de Roma seguida por uma demorada aceitação do V Concílio no ocidente. Quanto à questão origenista, digamos que ela simplesmente pegou carona com a dos Três Capítulos e Justiniano decidiu acabar com dois problemas com um golpe só. Mas para que essa junção de duas pendengas ocorresse foi necessário – primeiro – a morte de Nono, cuja liderança talvez evitasse a ruptura entre o origenismo-maconha dos protoktistas e a versão LSD dos isocristas, e – segundo – a ida de uma delegação de monges palestinos até Constantinopla para levar o caso ao imperador. Tanto em 553 d.C. como dez anos antes, a segunda crise origenista foi problema local levado ao arbítrio do imperador. O relato de Cirilo contando que ortodoxos foram postos na defensiva pelo origenistas deve ter um fundo de verdade, afinal não pediriam ajuda se pudessem vencer por conta própria. origenismo, por sua vez, não era o ponto nevrálgico do V Concílio. Sua primeira condenação em 543 d.C. fora subscrita sem grandes problemas por todos os cinco patriarcas, o romano Cassiodoro falou dela sem comoção alguma e os partidários dos Três Capítulos execraram as manobras origenistas. Apesar de seu poder local, os seguidores de Orígenes estavam longe de serem amplamente aceitos no império. A não ser nas obras de ficção de editoras newagers e espiritualistas.

Alguns podem estar perguntando se não era mais fácil assinar um edito de tolerância e governar a todos sem distinção do que se desgastar em longa controvérsia? A Roma pagã não havia regido diversas religiões por tanto tempo? Por que não seguir seu exemplo? Não, não seria tão simples assim. No mundo helênico não havia problema algum em colocar mais um deus no panteão. Se o povo adorador do Grande Pires Sagrado era conquistado pelos adeptos da Magna Xícara, então o deus deles não estava com nada e deveria mesmo é ficar por baixo da deidade dos vencedores. E assim todos os habitantes do Mediterrâneo prestavam suas homenagens à religião estatal romana, embora mantivessem  - e até exportassem – seus deuses tradicionais. Os judeus, por outro lado, eram uma exceção devido a sua devoção estrita a um único deus e o respeito às instituições locais fazia parte, muitas vezes, da política imperial. Quando algum imperador resolvia que também deveria ser adorado na Judeia, apenas passava a senha desencadear uma rebelião. Mesmo após a dispersão final dos judeus, seu credo continuou a ser tolerado, pois era considerada uma religião étnica  e, enquanto ficasse restrita aos filhos de Abraão, não traria problemas à ordem estabelecida. Pior era um certo grupo de arruaceiros que tinham, em sua maioria, origem pagã e de uma hora para outra deixaram de cultuar os deuses antigos – que passaram a ser demônios para eles (105) - e desdenhavam das obrigações civis em nome de uma seita oriental fundada por um tal de Cristo. Os judeus não queriam estátua do imperador no Templo de Jerusalém, mas esses ditos “cristãos” não a queriam no Capitólio!

Bem, o resto da história foi contado no capítulo V. Fiz apenas uma pequena recapitulação para exibir a diferença entre os modos de tratar a religião do paganismo e do cristianismo. No paganismo, com uma miríade de credos convivendo e intenso sincretismo, a situação era fácil de lidar: bastava dar uma cipoada na seita que se engraçasse e as demais tocariam a vida normalmente. Quando, no século IV, adotou-se o ideal de “um imperador, um credo, um deus”, as coisas começaram a complicar. Manter a coesão com ambições hegemônicas em um grupo demasiadamente grande de pessoas é uma tarefa ingrata, para não dizer inviável devido às dissensões cada vez mais prováveis. As controvérsias ariana, monofisista e nestoriana foram apenas exemplos do famoso “fogo amigo” se desenvolvendo dentro do cristianismo. Para dar uma amostra mais familiar a nós, tomo um paralelo feito em [Bridge, cap. II, p. 26-27] que é bem ilustrativo:

Visto que qualquer coisa é preferível à desastrosa desunião dos dias de Constantino, imperador após imperador, tentou forçar concórdia em seus súditos cristãos, embora alguns ombreassem com o partido ortodoxo e outros ombreassem com os oponentes da linha estritamente ortodoxa. Perseguição após perseguição foi lançada sobre os cristãos que se atreveram a ameaçar a unidade do império ao discordar das doutrinas defendidas pelo imperador da ocasião, e qualquer um que fizesse a temeridade de se desviar do estreito caminho da ortodoxia contemporânea o fazia por seu próprio risco. Os caçadores de heresias comunistas de nosso próprio século [XX] e as amargas disputas entre  marxistas ortodoxos, trotskistas, maoístas, partidários de Tito e discípulos do infeliz Dubcek têm sido muito similar aos violentos e polêmicos conflitos entre o partido eclesiástico ortodoxo e os que eram considerados heréticos nos dias bizantinos; e essa similaridade não é inteiramente acidental. Tanto o estado Russo e a Igreja Ortodoxa Russa, que são os pais da Rússia Soviética, foram eles mesmos filhos da civilização bizantina (106), herdando muitas das falhas de Bizâncio, bem como algumas de suas virtudes.

 

A comparação não chega a ser exagerada. O comunismo dos séculos XIX e XX tem muitas similaridades com um credo messiânico: um profeta (Marx), apóstolos (Engels, Lênin, Rosa Luxemburgo, etc.), um livro sagrado portador da revelação (O Capital), pessimismo com realidade presente (o modo de produção capitalista), a esperança do término iminente dessa ordem corrupta de forma cataclísmica (a revolução socialista) e o início de uma nova era com a redenção do Bem (a ditadura do proletariado). Acontece que Marx não era capaz de lidar com todos os detalhes possíveis sobre como chegar à salvação revolução, além de a realidade em que ele viveu ter evoluído de forma não muito esperada, com melhorias para o proletariado. Não deu outra: ao longo do século passado vários “sabores” de comunismo pipocaram, cada um procurando tapar os buracos a sua maneira e reinterpretar O Capital conforme o andar da História (107). Talvez algum filiado do PSTU que leia isso se irrite, mas o que pretendia ser originalmente uma ciência ganhou ares de religião. E não foi o único caso...

 

Guardadas as devidas proporções, Justiniano viveu desafio político similar ao dos antigos chefes da Cortina de Ferro, onde uma dissidência poderia levar a uma crise da autoridade central, apenas trocando a natureza da “ideologia”. Num mundo marcado por sectarismos, não tomar partido de ninguém significava ser atacado por todos (108). Isso não justifica sua intolerância aos olhos do ecumenismo do terceiro milênio, embora ajude a entender a preocupação que pode ter tido com o risco de alguma “heresia”sair de controle. Foi assim dois séculos antes com o arianismo, era então com o monofisismo. Sim, ele reprimiu o origenismo enquanto ainda era “problema” local, assim como fez com diversas outras dissidências e crenças não cristãs (arianos, nestorianos, samaritanos, maniqueus, pagãos, etc.). E aí? Nesse aspecto, os monges do Nova Laura não tiveram nenhum tratamento “especial”. Não ocorreu nenhuma guinada de 180 graus nos caminhos que a ortodoxia já vinha trilhando. Aliás, até demorou um pouco para que Justiniano realmente agisse contra eles, se considerarmos que Saba (supostamente) já o avisara em 532 e o apogeu dos origenistas palestinos se deu bem durante a questão dos Três Capítulos. Parece que ele tinha outras prioridades.

 

Notas:

 

(101) Aqui é usada a palavra “obolos”, que correspondia à sexta parte da unidade dracma. Grosso modo, funcionaria como nossos “trocadinhos”. No episódio neotestamentário do “óbolo da viúva”, essa fração monetária deixa claro o quão pouco ela tinha para ofertar.

(102) Vide Catholic Encyclopedia, Three Chapters.

 

(103) Cf. [Evans, posfácio, p. 107]

 

(104) Informação retirada de [Theophanes Confessor, 349, p. 103], também disponível em [Malala, vol. XVIII] em nota da página 288 da edição de Jeffreys & Jeffreys. Segundo eles, é provável que Teófanes e o copista do manuscrito de Baroccanius Graecus 182, que serviu de base para sua edição, tenham feito um resumo tosco de um original mais amplo de Malala.

 

(105) Vide nota número (15).

 

(106) Vide [Diehl, livro IV, cap. II, p. 407- 412] para uma análise da influência de Bizâncio para formação da Rússia moderna.

 

(107) Um interessante episódio está contido no volume I, p. 244-245 da coleção, Grandes Fatos do Século Vinte, da antiga Rio Gráfica (talvez ainda achem em sebos):

 

Na primavera de 1898, Eduard Bernstein, um dos mais prestigiosos líderes do Partido Social-Democrata alemão, publicou nos jornais uma série de artigos criticando duramente a tese marxista de que o capitalismo estava condenado a perecer em razão de suas próprias e insolúveis contradições. Segundo Bernstein, o capitalismo não só podia sobreviver, como ainda era capaz de realizar reformas sociais que resultassem em progresso econômico e liberdade política para toda a sociedade. Bastava olhar, sugeria ele, para a Inglaterra ou mesmo para a Alemanha, onde o nível de vida dos operários melhorava a olhos vistos e seus direitos políticos, como legalização dos sindicatos e direito de voto, ampliavam-se cada vez mais. A social-democracia devia, portanto, adequar-se a essa realidade não prevista por Marx, deixando de ser uma força revolucionária para tornar-se, no Parlamento e nos sindicatos, um advogado das reformas sociais.

As “teses revisionistas” estremeceram o partido de alto a baixo, provocando fissuras que jamais seriam sanadas. Dentre as vozes que se ergueram em defesa do marxismo ortodoxo, sobressaiu-se a de Rosa [Luxemburgo], que, no ensaio Reforma Social ou Revolução, polemiza duramente com os “revisionistas”, repudiando o abandono da luta revolucionária em troca do que classifica como “miuçalhas do jogo parlamentar”.

 

Quando leio isso, não consigo deixar de pensar nas reações que kardecistas ortodoxos têm quando se sugere a criação de um novo Livro dos Espíritos, baseado em perguntas que não foram feitas e nas mudanças da ciência de sociedade ocorridas ao longo de 150 anos. Muda-se o pano de fundo, os atores, etc., mas o roteiro da peça continua a ser o mesmo...

 

(108) Um exemplo: por querer agradar a “gregos e troianos”, o Henoticão de Zenão conseguiu desagradar aos radicais de ambos.

 

 

 

 

15 – Anátemas contra Orígenes

 

 

Este capítulo é um bocado longo, mas recomendo ao leitor que, ainda que faça por partes, leia cada uma das análises que serão feitas. Digo isso porque, primeiro, a maioria das fontes espiritualistas cita apenas o anátema I, que trata da pré-existência, e, segundo, mesmo quando citam mais de um anátema (p.e, Manuela Pompas – Reencarnação), evitam aqueles que também pareceriam esdrúxulos até para o público moderno e, terceiro, entender a diferença entre o que Orígenes escreveu e o que foi feito depois de suas palavras é fundamental para a compreensão de o quanto dele realmente há em suas duas condenações do século VI. Portanto, respire fundo e vá até o final.

 

- Anátemas de 543 d.C. Originais constantes em Líber Adversus Origenem, Patrologia Graeca, vol. LXXXVI-a, cols 989-990, pelo imperador Justiniano (ou Carta a Mena).

 

I. Quem quer que diga ou pense que as almas humanas pré-existiram, i.e., que previamente foram espíritos e santas potestades, mas que, saciadas com a visão de Deus, voltaram-se ao mal e dessa forma o amor divino nelas esmorecera (ap???e?sa?) e, portanto, elas se tornaram almas (???a?) e foram condenadas ao castigo em corpos, que seja anátema.

II. Se alguém diz que a alma ou pensar que a alma do Senhor pré-existia e estava unida a Deus, o Verbo, antes da Encarnação e Concepção da Virgem, que seja anátema.

III. Se alguém diz ou pensar que o corpo de nosso Senhor Jesus Cristo foi formado no ventre da santa Virgem e que, depois, lá foi unido a Deus, o Verbo e à alma pré-existente, que seja anátema.

IV. Se alguém diz ou pensa que o Verbo de Deus se tornou similar a todas as ordens celestes, de modo que para os querubins ele foi um querubim; para os serafins, um serafim: em suma, similar a todas as potestades superiores, que seja anátema.

V. Se alguém diz ou pensa que, por ocasião da ressurreição, os corpos humanos se erguerão em forma esférica e distinta de nossa forma atual, que seja anátema.

VI. Se alguém diz que o céu, o Sol, a Lua, as estrelas e as águas que estão acima dos céus têm almas e são seres racionais, que seja anátema.

VII. Se alguém diz ou pensa que Cristo, o Senhor, numa época futura será crucificado por demônios como foi por homens, que seja anátema.

VIII. Se alguém diz ou pensa que o poder de Deus é limitado e que criou tanto quanto era capaz de abranger, que seja anátema.

IX. Se alguém diz ou pensa que o castigo dos demônios e homens ímpios é apenas temporário e um dia terá um fim, e que a restauração (ap??atastas??) tomará o lugar de demônios e homens ímpios, que seja anátema.

Anátemas a Orígenes, o tal Adamâncio, que lançou essas opiniões junto com sua nefanda e execrável doutrina e a qualquer um que pense assim, ou defenda essas opiniões, ou que de agora em diante de alguma, em qualquer ocasião, presuma protegê-las.

 

 

Anátemas de 553 – Extraídos de The Seven Ecumenical Councils, em Nicene and Post-Nicene Fathers, série II, vol. XIV, de Phillip Schaff.

 

I. Se alguém defender a fabulosa pré-existência das almas e a monstruosa restauração que se segue a ela: que seja anátema

II.Se alguém disser que a criação (t?? pa?a?????) de todas as coisas racionais inclui apenas inteligências (??a?) sem corpos e totalmente imateriais, não possuindo nem número ou nome, para que haja uma unidade entre elas todas por identidade de substância, força e energia, e pela sua união com o conhecimento de Deus, o Verbo; porém que ao não mais desejar a visão de Deus, voltaram-se para coisas piores, cada uma seguindo suas próprias inclinações, e assumiram corpos mais ou menos sutis e receberam nomes, pois entre as Potestades celestes há um diferença de nomes e também há uma diferença de nomes e também uma de corpos; e por essa razão algumas se tornaram e são chamadas Querubins, outras Serafins, e Principados, e Potestades e de Dominações, e Tronos, e Anjos, e tantas ordens celestes quanto possam existir: que seja anátema

III. Se alguém disser que o Sol, a Lua e as estrelas também são seres racionais e que apenas se tornaram o que são por terem se voltado para o mal: que seja anátema.

IV. Se alguém disser que as criaturas racionais em que o amor divino esfriou foram ocultas em corpos grosseiros como os nossos, e sendo chamadas de homens, enquanto aquelas que atingiram o grau mais baixo de iniquidade partilharam corpos frios e obscuros, tornando-se e sendo chamados demônios e espíritos malignos: que seja anátema.

V. Se alguém disser que uma condição psíquica (???????) vem de um estado angélico ou arcangélico e, além disso, uma condição humana ou demoníaca vem de uma condição psíquica, e que de um estado humano elas possam se tornar outra vez anjos e demônios, e que cada ordem de virtudes celestes vem ou dos que estão abaixo ou dos que estão acima, ou dos que estão acima e abaixo: que seja anátema.

 

VI. Se alguém disser que há uma raça de demônios composta de duas partes, das quais uma inclui as almas dos homens e a outra os espíritos superiores que decaíram a isso, que se de toda a gama de seres racionais há apenas um que permaneceu inabalado no amor e contemplação de Deus, que tal espírito se tornou Cristo e o rei de todos os seres racionais, que criou todos os corpos que existem no céu, na terra e entre o céu e a terra, e que o mundo - que contém em si mesmo elementos mais antigo que ele próprio e que existem por si mesmos, como secura, umidade, calor e frio, e a imagem (?dea?) para qual ele foi formado – foi assim formado, e que a santíssima e consubstancial Trindade não criou o mundo, mas que ele foi criado pela inteligência produtora (???? d?µ???????) que é mais antiga que o mundo que comunica a ele seu ser: que seja anátema.

VII. Se alguém disser que Cristo - de quem se diz que apareceu na forma de Deus, que estava antes de todo o tempo com Deus, o Verbo, e que se rebaixou nestes últimos dias até à humanidade -  compadeceu-se (segundo a expressão deles) das diversas quedas que surgiram entre os espíritos unidos na mesma unidade (da qual ele próprio é parte), e que para restaurá-los passou pelas diversas classes, teve diferentes corpos e diferentes nomes, tornou-se tudo em todos, um Anjo entre Anjos, uma Potestade entre Potestades, revestiu-se nas diferentes classes de seres racionais com a forma correspondente àquela classe, e finalmente tomou carne e sangue como os nossos e se tornou homem para os homens; [se alguém disser tudo isso] e não professar que Deus, o Verbo, rebaixou a si mesmo e se tornou homem: que seja anátema.

VIII. Se alguém não reconhecer que Deus, o Verbo, da mesma substância com o Pai e o Espírito Santo, que se fez carne e se tornou homem, um da Trindade, seja Cristo em todo sentido da palavra, mas [afirmar] que ele apenas o é de forma imprecisa, e por causa da inferioridade (?e??sa?ta), como eles a chamam, da inteligência (????); se alguém afirmar que essa inteligência unida (s???µµe???) a Deus, o Verbo, é o Cristo no verdadeiro sentido da palavra, ao passo que o Logos é apenas chamado de Cristo por causa dessa união com a inteligência, e converso que a inteligência apenas é chamada de Deus por causa do Logos: que seja anátema.

IX. Se alguém disser que não foi o Divino Logos feito homem tomando um corpo animado com uma alma racional (???? ??????) e inteligente (??e?a), que desceu ao inferno e subiu ao céu, mas fingir ser a Inteligência (????) quem fez isso, aquela Inteligência que dizem eles (de uma forma ímpia) ser Cristo adequadamente chamado, e que ele assim se tornou pelo conhecimento da Unidade (Mônada): que seja anátema

X. Se alguém disser que após a ressurreição o corpo do Senhor era etéreo, tendo a forma de uma esfera e que assim serão os corpos de todos depois da ressurreição; e que depois de o próprio Senhor ter rejeitado seu verdadeiro corpo e depois de os outros que se ergueram terem rejeitado os seus, a natureza de seus corpos será aniquilada: que seja anátema.

XI. Se alguém disser que o julgamento futuro significa a destruição do corpo e que o fim da história será uma natureza (??s??) imaterial, e que daí em diante não haverá mais matéria, mas apenas inteligência (????): que seja anátema.

XII. Se alguém disser que as Potestades celestes, e todos os homens, e o Diabo, e espíritos malignos estão unidos ao Verbo de Deus em todos os aspectos, como a Inteligência (????) que é por eles chamada Cristo e que está na forma de Deus, e que se rebaixou como dizem; e [se alguém disser] que o Reino de Cristo terá um término: que seja anátema.

XIII. Se alguém disse que Cristo não é de nenhuma forma diferente dos outros seres racionais, nem substancialmente, nem por sabedoria, nem por seu poder e força sobre todas as coisas, mas que todos são postos à mão direita de Deus, bem como o que é chamado por eles de Cristo, como também eram na falsa pré-existência de todas as cosias: que seja anátema.

XIV. Se alguém disser que todos os seres racionais estarão algum dia unidos em um, quando as hipóstases, bem como as variedades e os corpos desaparecerão, e o conhecimento do mundo vindouro levará como ele à ruína dos mundos e a rejeição dos corpos, como também à abolição de [todos] os nomes, e haverá finalmente uma identidade do conhecimento (???s??) e das hipóstases; além disso, que nessa pretensa apocatástase, apenas os espíritos continuarão a existir, como era na falsa pré-existência: que seja anátema.

XV. Se alguém disser que a vida dos espíritos (????) será similar à vida que foi no princípio, quando os espíritos ainda não haviam descido ou caído, de modo que o fim e o princípio serão similares, e que o fim será a verdadeira medida do princípio: que seja anátema.

 

Fazendo uma leitura total dos anátemas, nota-se que muitos deles seriam estranhos até para vários espiritualistas modernos, como a dotação racional dos corpos celestes (mundo habitado mesmo seria a Terra. Ou o céu para os anjos e o inferno dos demônios), a nova crucifixão de Cristo e o fim panteísta da apocatástase. Aposto que muitos dos que resmungam contra os eventos de 543-553 jamais abraçariam o origenismo pessoalmente e erguem sua bandeira mais como uma postura “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”.

 

Deixando de lado o que os espiritualistas e esotéricos fazem do origenismo nos dias de hoje, convém que se centre em como o origenismo do século VI era visto por seus contemporâneos, defensores e adversários. Os anátemas de cada década não concordam em número e nem sempre coincidem plenamente em teologia. Eis um quadro comparativo para ilustrar as diferenças:

 

Doutrina

Anátemas de 543

Anátemas de 553

Referência provável

Beatitude Original e Queda

I

I, II, IV e V

De Principiis, I. 6

Cristologia Subordinacionista

II e III

VI, VIII, IX, XIII

De Principiis, II. 6

Encarnação de Cristo entre Anjos

IV

VII

Comentário de João I.34

Crucifixão por Demônios

VII

-

Jerônimo, carta a Ávito (n. 124)

Astros como Seres Racionais

VI

III

De Principiis, I. 7

Limitação ao Poder de Deus

VIII

-

Jerônimo, carta n. 98 

Ressurreição “Esférica”

V

X

Desconhecida

Aniquilação da Existência corporal

-

X e XI

De Principiis I.6.4, I.2 e III.6

Término do Reino de Cristo

-

XII

De Principiis III.6.9

Restauração Universal

IX

XII e XV

De Principiis, III.6

Dissolução panteísta

-

XIV

Jerônimo, carta a Ávito (n. 124)

 

Vale lembrar que a coluna “referência” não significa necessariamente o único local onde a doutrina é encontrada, mas aquela onde ela foi apresentada, podendo se repetir em outros locais da mesma obra ou em de autores posteriores. Tecendo alguns comentários sobre elas:

 

1) Beatitude Original e Queda: sem dúvida um aspecto marcante da doutrina de Orígenes. Em sua época duas doutrinas eram dominantes para a origem da alma: traducianismo e criacionismo. O primeiro advogava a formação da alma junto com corpo, através da semente paterna; ao passo que, no segundo, ela teria sido em algum instante criada em separado por Deus e, então, implantada no embrião. Ambas eram passíveis de ataque de marcionistas e gnósticos, que consideravam a união da      alma com o corpo como uma artimanha feita pelo demiurgo inferior ao verdadeiro Deus e suposto criador do mundo material. O verdadeiro e bondoso Deus jamais criaria as almas para o sofrimento. Em razão desse desafio, Orígenes propõe sua teoria das quedas, como uma forma de conciliar a existência do sofrimento, o livre-arbítrio e bondade divina. De certa forma, ela não é totalmente inédita, pois já existiam histórias de queda dos anjos para uma condição demoníaca no judaísmo intertestamentário (109) e livro de Gênese traz a famosa “queda de Adão”. Vale lembrar até o final do século IV e começo do V, a origem da alma ainda era uma questão em aberto. O próprio Agostinho de Hipona se perguntou sobre uma possível existência antes de sua concepção. (110) [voltar]

 

2) Cristologia Subordinacionista: no prefácio de De Principiis, Orígenes expõe o que considera como consenso entre a ortodoxia de sua época e, quando fala de Jesus, fica estabelecido o seguinte:

 

Segundo: que o próprio Jesus Cristo, que veio (ao mundo), nasceu do Pai antes de todas as criaturas; que, depois de ter sido o servo do Pai na criação de todas as coisas – pois por Ele foram feitas todas as coisas (cf. Jo 1:3) – nos últimos tempos, despojou-se  (de Sua glória), tornou-se um homem e esteve encarnado, embora (fosse) Deus; e ao mesmo tempo que foi feito um homem, permaneceu o Deus que era; que assumiu um corpo como o nosso próprio, diferindo nesse aspecto apenas que nasceu de uma virgem e do Espírito Santo: que este Jesus Cristo realmente nasceu, e realmente sofreu, e não suportou esta morte comum (ao homem) apenas na aparência, mas realmente morreu; que realmente se levantou dos mortos; e que após Sua ressurreição conversou com Seus discípulos e foi levado acima (para o céu).

 

Em cima desse pressuposto, Orígenes desenvolve a seguinte doutrina cristológica: Cristo não teria sido apenas “gerado” (e não criado) pelo Pai, mas seria continuamente gerado por ele ao longo da eternidade, de modo que se a existência de um tivesse como derivado imediato a do outro, da mesma forma como a luz é consequência do acender de uma vela.

 

De principiis I.2.1

 

Em primeiro lugar, devemos notar que a natureza da deidade que está em Cristo com relação a ser o unigênito Filho de Deus é uma coisa e aquela a natureza humana que assumiu nestes últimos tempos para o propósito de  distribuição (de graça) é outra. E, portanto, temos primeiro de determinar o que o unigênito Filho de deus é, vendo que Ele é chamado por muitos nomes diferentes, conforme o dito de Salomão: “O Senhor me criou – o começo de Seus caminhos e entre Suas obras, antes que fizesse qualquer outra coisa; fundou-me antes das eras. No começo, antes que formasse a terra, antes que originasse as fontes das águas, antes que as montanhas fossem firmadas, antes de todos os outeiros, Ele me originou.” (cf. Pv 8:22-25, versão LXX). Ele também é intitulado Primogênito, como o apóstolo declarou: “que é o primogênito de toda a criação” (Cl 1:15). O primogênito, entretanto, não é diferente por natureza da pessoa da Sabedoria, mas una e a mesma. Finalmente, o apóstolo Paulo diz que “Cristo (é) o poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1 Cor 1:24)

 

(...)

 

De principiis I.2.9

 

Vejamos agora qual é o significado da expressão que é encontrada na Sabedoria de Salomão, onde se diz que a Sabedoria “é um tipo de sopro do poder de Deus, e o mais puro eflúvio da glória do Onipotente, e o esplendor da eterna luz, e o espelho sem mácula da atividade e poder de Deus, e a imagem de Sua bondade”(Sb 7:25). Essas, então são as definições que ele dá a Deus, assinalando por meio de cada um delas determinados atributos que pertencem à Sabedoria de Deus, chamando de sabedoria o poder, e a glória, e a luz eterna, e a atividade, e a bondade de Deus. Não diz, porém, que a sabedoria é o sopro da glória do Todo-poderoso, nem que a luz eterna, nem a operosidade do Pai, nem Sua bondade, pois não seria apropriado que sopro devesse designar qualquer uma dessas; mas, com toda propriedade, diz que a sabedoria é o sopro do poder de Deus. Agora, pelo poder de Deus deve ser entendido o que pelo qual Ele é forte; pelo qual determina, restringe e governa todas as coisas visíveis e invisíveis; que basta para todas as coisas que rege em Sua providência; entre as que está presente, como se fosse um indivíduo. E embora o sopro de todo esse poderoso e imensurável poder e vigor produzido por si mesmo, por assim dizer, devido a sua própria existência, procedeu do poder em si mesmo, como a vontade o faz a partir da mente, ainda que mesmo essa vontade de Deus seja, contudo, feita para se tornar o poder de Deus.

 

Consequentemente um outro poder é produzido, que existe com suas próprias propriedades, - um tipo de sopro, com diz a Escritura, do primordial e incriado poder de Deus, derivando dEle seu ser e nunca em tempo algum inexistente. Pois se alguém afirmar que ele não existia anteriormente, mas veio à existência depois, que ele explique a razão pela qual o Pai, que deu origem (ao poder), não o fez antes. E caso ele admita que existiu um começo, quando tal sopro procedeu do poder de Deus, perguntaremos de novo, por que não ainda antes do começo que ele aceitou; e dessa forma, sempre exigindo uma data anterior e levando adiante nossos questionamentos, chegaremos à conclusão que, já que Deus sempre possuiu poder e vontade, nunca houve razão inerente ou outro motivo por que Ele não possa ter sempre possuído aquela benção que desejou. Por isso fica demonstrado que o sopro do poder de Deus sempre existiu, não tendo começo, salvo o próprio Deus. Nem seria adequado que devesse ter outro começo salvo o próprio Deus,  de quem ele origina seu nascimento. E conforme a expressão do apóstolo, que Cristo “é o poder de Deus” (1 Cor 1:24), ele deve ser chamado não apenas de sopro do poder de Deus, mas poder a partir de poder.

 

 

Orígenes, aqui, trata da natureza divina de Cristo, estabelecendo-a como co-eterna com a do Pai e colocando-a em igualdade de natureza e essência, porém existiria uma hierarquia de origem de poder. Já no último livro de De Principiis, ele expande esse assertiva para as três pessoas da Trindade:

 

De principiis IV.28

(...)Como a luz, portanto, nunca poderia existir sem esplendor, então nem pode o Filho ser compreendido sem o Pai; pois Ele é chamado de “expressa imagem de Sua pessoa” (cf. Hb 1:3) e o Verbo e a Sabedoria. Com, então, pode-se declarar que outrora houve uma época quando Ele não era o Filho? Pois isso não nada mais do que dizer que outrora houve uma época quando ele não era a Verdade, nem a Sabedoria, nem a Vida, embora em todos esses seja considerado ser a perfeita essência de Deus, o Pai; já que essas coisas não podem ser retiradas dEle ou mesmo separadas de Sua essência. E apesar de se dizer serem muitas, em entendimento, essas qualidades, e ainda que em sua natureza sejam uma, e que nelas está a plenitude da divindade. Agora essa expressão que empregamos – “que nunca houve uma época quando Ele não existia” - devem ser entendidas como uma concessão. Já que essas mesmas palavras “quando” ou “nunca” têm um significado que está relacionado ao tempo, ao passo que as declarações feitas acerca do Pai, do Filho e do Espírito Santo devem ser compreendidas como transcendendo todo o tempo, todas as eras e toda a eternidade. Visto que é somente a Trindade que excede a compreensão não apenas temporal, mas até da eterna inteligência; enquanto as outras coisas que não estão incluídas nela são medidas por épocas e eras. (111)

 

Que ninguém pense ter sido esse viés trinitário um acréscimo feito por Rufino, pois Atanásio de Alexandria – o campeão oriental do credo niceno durante a controvérsia ariana – citou explicitamente Orígenes em grego como sendo partidário da co-eternidade de Pai, Filho e Espírito Santo.

 

Atanásio, De Decretis, cap. VI

 

E quanto a eterna co-existência do Verbo com o Pai e que Ele não é de outra essência ou hipóstase, mas da própria do Pai, como os Bispos no Concílio [de Niceia] disseram, podes ouvir outra vez também do laborioso Orígenes. Já que o que escrevia era questionando ou como forma de exercício - que ninguém tome como sendo expressivo de seus próprios sentimentos, mas de partidários a competir numa investigação – mas o que ele definitivamente declara é que é o sentimento do laborioso homem. Então, após suas preliminares (por assim dizer) contra os hereges, ele introduz diretamente sua crença pessoal desta forma:

 

Se há uma Imagem do Invisível Deus, é uma Imagem invisível; não apenas isso, mas, serei claro em acrescentar que, como sendo a semelhança do Pai, ela nunca inexistiu. Pois quando que  esteve tal Deus, que, segundo João, é chamado de Luz (pois 'Deus é Luz'), sem uma irradiação de Sua própria glória, para que um homem  presumisse declarar a origem da existência do Filho, como se antes ele não existisse? Mas quando não havia tal Imagem da hipóstase Inefável e Inominável e Indescritível do Pai, tal Expressão e Verbo, e Ele que conhece o Pai? Pois que entenda bem quem se atreve a dizer, 'Outrora não existia o Filho', que ele está dizendo, 'Outrora não existia Sabedoria', e 'não existia o Verbo', e 'não existia Vida'.” (...)

 

Fica no ar a qual obra ele está exatamente se referindo, mas o que importa é esse relato ser uma fonte independente de um pensamento similar ao encontrado em De Principiis e, também, em Comentário à Epístola aos Romanos (112), descartando a hipótese de Rufino ter inserido uma tese sua. É curioso observar que Orígenes, como visto no cap. III, também fora acusado por outros teólogos de flertar com os arianos, justamente por “subordinar” Cristo e o Espírito Santo ao Pai. Muitas críticas, e essa é uma delas, a sua obra residiam justamente numa abordagem pontual do que Orígenes realmente dissera.

 

Quem leu os anátemas correspondentes à cristologia, deve ter reparado que eles não falam exatamente da relação entre o Pai e o Filho, mas de uma “alma de Cristo”. Até agora, foi vista apenas sua parte “divina”, tendo Orígenes tratado do episódio da “Encarnação” no livro II de De Principiis.  Foi  essa solução que o alexandrino deu para a união entre o Criador e uma Criatura o que sofreu distorções ao longo do tempo.

 

De Principiis, II, 6

 

(...) Assim, o Unigênito de Deus, através do qual, como previamente se demonstrou no curso da discussão, todas as coisas foram criadas, visíveis e invisíveis, conforme a opinião da Escritura, tanto fez todas as coisas e ama o que fez. Pois já que Ele mesmo é a imagem invisível do invisível Deus, invisivelmente transferiu uma parte em Si mesmo para todas as criaturas racionais, para que cada uma obtivesse uma parte dEle proporcionada exatamente para o total de afeição com que O estimou. Mas já que, segundo a faculdade do livre-arbítrio, variedade e diversidade caracterizaram as almas individuais, de modo que uma estava mais vinculada ao Autor de seu ser com um amor mais caloroso e outra com uma estima mais débil e fraca, tal alma (anima) – considerando que Jesus disse, “Ninguém tirará minha vida (animam) de mim” (Jo 10:18) – estando inerentemente, desde o princípio da criação e depois, nEle de forma inseparável e indissolúvel, como sendo a Sabedoria e Verbo de Deus, e a Verdade e genuína Luz, e recebendo-O plenamente, e adentrando em Sua luz e esplendor, formou com Ele um grau pré-emitente (principaliter) de espírito uno, conforme a promessa do apóstolo aos que zelassem a isso imitar, que “ele foi unido ao Senhor em um espírito” (1 Cor 6:17). Vindo de uma alma essa substância, então sendo intermediária entre Deus e a carne – sendo impossível para a natureza de Deus entremesclar-se com um corpo sem um instrumento mediador – nasce o homem-Deus, como dissemos, tal substância sendo intermediária, sua natureza não é contrária a assumir um corpo. Mas nem, por outro lado, era oposto à natureza daquela alma, como uma existência racional, receber Deus, para dentro do qual, como acima declarado, como para dentro do Verbo, e da Sabedoria, e da Verdade ela já havia plenamente entrado. E assim ela merecidamente é chamada, junto com a carne que assumira, de Filho de Deus, e o Poder de Deus, o Cristo, e a Sabedoria de Deus, seja porque estava plenamente no Filho de Deus, ou porque recebeu o Filho de Deus totalmente dentro de si mesma. E ainda, o Filho de Deus, por meio do qual todas as coisas foram criadas, é chamado Jesus Cristo e Filho do homem. (...)

 

De todas as almas criadas, uma única não teria se afastado deles e decaído. Muito pelo contrário: manteve contato tão estreito com o Filho que sofreu uma infusão de todas as suas características e se tornou também Deus por transferência de poder. Foi essa alma divinizada que, ao se mesclar com um dos membros da Trindade, se tornou o instrumento para a Encarnação de Cristo. Também não há razão duvidar do texto que Rufino os trouxe, visto que ideia similar aparece em Contra Celso, VI, 47, que é uma fonte independente e em grego (113).

 

Infelizmente, a cristologia de Orígenes é muitas vezes apresentada como se fosse “apenas” isso, esquecendo outros aspetos que ele discutiu. Quem ler o verbete Cristianismo do Dicionário Filosófico de Voltaire, notará que ele atribui aos arianos do começo do século IV o uso de um trecho dessa obra de Orígenes e que simplifica demais a ideia do teólogo (114). Até o atualmente famoso Bart Ehrman [2003, cap. VII] dá uma versão demais centrada só na Encarnação. Talvez uma abordagem mais plena da cristologia origenista requeira uma obra totalmente dedicada a ele, como [Crouzel] ou [Malaty].

 

E foi justamente o uso isolado de uma das análises de Orígenes que levou a doutrinas cristológicas de uma safra um tanto sui generis no século IV: numa série de ditos – Kephalaia Gnostika – escrita pelo monge Evágrio Pôntico, alma que daria origem à parte humana Cristo também interagiu com o Verbo, mas sua união com o Verbo deixou de ser o bastante para que fosse considerada como parte da Trindade.

 

I, 77 A segunda natureza é o símbolo do corpo e a primeira natureza [é] o [símbolo] da alma. E o [símbolo do] ???? é Cristo que está unido ao conhecimento da Unidade.

IV, 18 A unção inteligível é o conhecimento espiritual da santa Unidade, e o Cristo é o que está unido a esse conhecimento. Se isso é assim, o Cristo não é o Verbo no princípio, tal como aquele que é ungido não é Deus no princípio. Mais precisamente, o último [é Deus] porque o primeiro [ungido] é o Cristo e o primeiro [é ungido] porque o último [Deus] é Deus.

IV, 21 A unção tanto indica conhecimento da Unidade ou designa a contemplação dos seres. E se Cristo está mais ungido que os demais (Sl 44:8), é evidente que está ungido com o conhecimento da Unidade. Por causa disso, apenas ele é dito estar sentado à direita de seu Pai (cf. Ef 1:20, Col 3:1, Hb 10:12); a direita que aqui, segundo a regra dos ???st????, indica a Mônada (115) e a Unidade.

 

V, 69 A abençoada Trindade é o símbolo da água abençoada e a Árvore da Vida é o Cristo que lá bebe.

 

De certa forma, esses extratos de Kephalaia podem nos dar um vislumbre de como pode ter surgido a facção origenista dos tetraditas, que teriam transformado a Trindade numa Tétrade pela adição do Cristo-alma aos três demais. Ao contrário dos isochristas, para eles a alma de Cristo ainda manteria uma distinção em relação às demais quando chegasse a consumação final. O nome de protoktistas  (primeiros da criação) pode estar associado não apenas à crença na pré-existência, mas também por associação a Cristo como primeiro ser criado e mediador da criação material:

 

IV, 58 Deus, quando criou os ??????? (intelectos), não estava em nada; mas, quando ele cria a natureza corporal e mundos que surgem dela, ele está em seu Cristo.

 

Outras passagens de Kephalaia que também trazem esse Cristo no papel de demiurgo, aliadas àquelas que abrem a possibilidade de suas prerrogativas serem compartilhadas por outras almas que se ligarem ao conhecimento, podem ter dado a base teológica para o desenvolvimento facção isochrista:

 

IV, 8. O co-herdeiro de Cristo (Rm 8:17) é o que chega à Unidade e  se deleitar em contemplação com o Cristo.

IV, 9. Se o herdeiro for uma coisa e a herança outra, o Verbo não é o que se herda: em vez disso, o Cristo (herda) o Verbo que é a herança; porque quem quer que herde está, assim, unido à herança; e o Verbo-Deus é livre da (ou “para a” ?) união.

V, 81. Quando o ???? tiver recebido conhecimento essencial, então ela também será chamada de “Deus”, porque também será capaz de criar mundos variados.

 

O raciocínio é simples: se a alma de Cristo se ligou ao Verbo por não ter caído, então aquelas que ascendessem novamente ao estado primordial também teriam essa capacidade. Daí não é difícil entender as passagens finais do Livro de Hierotheos mencionando uma alma a criar éons ao fim de sua jornada. [voltar]

 

 

3) Encarnação de Cristo entre Anjos: Pela lógica de seu sistema, os anjos também haviam sofrido a queda original. Não tanto quanto os humanos e os demônios, mas, tais como os últimos, seriam seres racionais e dotados de livre-arbítrio e em necessidade superar imperfeições rumo ao estado original. Para os homens, o papel de Cristo seria o de mestre e catalisador dessa restauração:

 

Contra Celso, III, 28

Os cristãos veem que com Jesus a natureza divina e a natureza humana começaram a se entrelaçar, para que a natureza humana, pela participação na divindade, seja divinizada, não só em Jesus mas também naqueles todos que, com fé, adotam o gênero de vida que Jesus ensinou e eleva até à amizade por Deus e à comunhão com ele quem vive conforme os preceitos de Jesus.

 

Idem, VI, 68

Expresso em termos corporais e pregado como carne, ele chama a si aqueles que estão para torná-los conformes ao logos que se fez carne, e em seguida, fazê-los  subir, para que o vejam assim como era antes de ser tornar carne; de tal modo que recebem este benefício, se elevam a partir dessa iniciação segunda a carne e podem dizer: “Mesmo se conhecemos a Cristo segundo a carne, agora já não o conhecemos assim” (2 Cor 5:16).

 

Assim, foi natural que Orígenes cogitasse papel similar para Cristo entre os anjos:

 

Comentário sobre João, I, 34.

Já que o Deus de todas as coisas fez primeira em honra alguma raça de seres racionais; essa eu considero que sejam os que são chamados deuses, e a segunda ordem, digamos por enquanto, são os tronos, e a terceira, sem dúvida, são as dominações. E assim vamos descendo de ordem até a última raça racional, que, talvez, não possa ser outra que não o homem. Assim, o Salvador se tornou, de um modo mais divino que Paulo, tudo para todos, de forma que Ele pode tanto conquistar todos ou aperfeiçoá-los; está claro que Ele se tornou um homem e, para os anjos, um anjo, descobriremos a razão para acreditar que foi assim se observarmos as aparições e palavras dos anjos, em algumas das quais os anjos parecem Lhe pertencer.

 

Curiosamente, aqui os demônios ficaram de fora. Isso gera indagações sobre o próximo grupo de anátemas. [voltar]

 

4) Crucifixão por Demônios: Da carta de Jerônimo a Ávito:

 

Após dizer que, segundo o apocalipse de João, “o evangelho eterno” (Ap 14:6) que será revelado no céu superará nosso evangelho como a pregação de Cristo supera os sacramentos da antiga lei (*), ele declarou o que é sacrilégio até mesmo pensar: que Cristo irá mais uma vez sofrer no céu pela salvação de demônios. E embora não tenha dito expressamente, ainda fica sugerido em suas palavras que, como para os homens Deus se fez homem para libertar os homens, então para a salvação de demônios, quando ele vier liberá-los, vai se tornar um demônio.

 

(*) Este termo na época de Jerônimo não tinha se tornado restrito ao seu sentido mais tardio. Qualquer coisa misteriosa ou sagrada era chamada de um sacramento. Aqui, refere-se ao ensinamento místico do Antigo Testamento. [nota de Schaff]

Tal passagem não pode ser encontrada na tradução de Rufino de De Principiis. No capítulo III foi apresentado um trecho de Comentário sobre a Epístola aos Romanos (V.10.14) – que também chegou até nós via Rufino – em que a possibilidade de um novo sacrifício de Cristo fosse necessário é atribuída a terceiros e é rechaçada por Orígenes. É provável, como lá comentado, que a tese fosse exposta por Orígenes, mesmo, só para questioná-la. Era assim sua maneira de agir, conforme o relato de Atanásio exposto acima neste capítulo. Não há razão, então, para duvidar que uma restauração dos demônios fosse cogitada em De Principiis. A questão é, no jogo de antíteses, que fim ela levou? A redenção de todos os seres racionais é uma consequência lógica do sistema origenista contido em De Principiis; entretanto, como observado por alguns autores (116), algumas passagens contidas no mesmo livro mostram um quadro um tanto confuso, onde Orígenes “não bate o martelo” se haverá salvação de Satanás e seus anjos ou não, e nem afirma que “tudo em todos” significa absolutamente todos os seres:

 

I.6.3

E é a partir daqui que toda esta vida mortal fica cheia de lutas e provações causadas pela oposição e inimizade dos que caíram de uma condição melhor sem nem olhar para trás e são chamados de diabo e seus anjos, e as outras ordens do mal que o apóstolo classificou entre os poderes opositores. Mas se qualquer uma dessas ordens que agem sob o governo do diabo e obedecem  a seus ímpios comandos serão num mundo futuro convertidas à retidão por causa sua posse da faculdade de livre-arbítrio, ou se impiedade persistente e inveterada pode ser transformada pelo poder do hábito numa natureza, é um resultado que você mesmo, leitor, pode dar aprovação, se nem nesses presentes mundos que são visíveis e temporais, nem naqueles que são invisíveis e eternos, tal porção deva diferir totalmente da unidade e bom estado finais das coisas.

 

III.6.2

Já que, então, está prometido que no final Deus será tudo em todos, não devemos supor, como apropriado, que animais, sejam carneiros ou outro gado, chegam a tal final, para que não se deduza que Deus habita até em animais, sejam carneiros ou gado; e também da mesma forma com fragmentos de madeira ou rochas, para que não se diga que Deus também está neles. Então, mais uma vez, nada que é iníquo há de alcançar tal final, para que, enquanto se afirma que Deus está em todas as coisas, não se possa afirmar que Ele seja um receptáculo de iniquidade. Pois se agora declaramos que Deus está em todo lugar e em todas as coisas, baseados em que nada pode estar vazio de Deus, no entanto não dizemos que Ele agora é todas as coisas em que está. E daqui por diante devemos tomar mais cuidado quanto ao que é que significa a perfeição de santidade e o final das coisas, que não é apenas dito Deus está em todas as coisas, mas também [que é] tudo em todos. Indaguemos, então, quais são todas essas coisas em que Deus ser tornará tudo.

 

Uma passagem pouco após essa última declara qual será o “último inimigo” que há de se render ao chamado e se sujeitar a Cristo:

 

III.6.5

 

Além disso, afirma-se por essa razão ser o ultimo inimigo, que é chamado de morte, destruído, que não pode haver nada de pesaroso deixado quando a morte não existir, nem nada que seja adverso quando não há inimigo. A destruição do último inimigo, na verdade, deve ser compreendida não como se fosse sua substância, que foi formada por Deus, destinada a perecer, mas porque de sua mente e vontade hostil, que não veio de Deus, mas de si mesmo, serão destruídas. Sua destruição, portanto, não será sua inexistência, mas seu cessar de ser inimigo e (de ser) morte. Pois nada é impossível ao Onipotente, nem nada é incapaz de restauração ao seu Criador: pois Ele fez tudo que possa existir e tais coisa feitas para a existência não podem cessar de existir.

Não é difícil associar “morte” – último inimigo – com o diabo, já que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6:23) e pecado é com ele mesmo. Em oposição a esse trecho, chegaram até nós, por vias indiretas, dois supostos documentos de Orígenes que refutariam claramente a tese da “salvação do diabo”. O primeiro é uma carta endereçada “a alguns amigos de Alexandria” citada por Rufino:

 

“Algumas das pessoas que se comprazem em acusar seus vizinhos trazem contra nós e nosso ensino a acusação de blasfêmia, embora de nós nunca tenham ouvido nada do tipo. Que prestem atenção a si mesmas em como recusam a atentar para aquela solene injunção que diz que ‘maldizentes não herdarão o reino de Deus’ quando declaram que o pai da iniquidade e perdição e dos que estão expulsos do reino de Deus, ou seja: o diabo, será salvo, algo que nenhum homem pode dizer mesmo que tenha perdido o juízo e esteja manifestadamente insano. Embora não surpreenda, imagino se meu ensinamento é falsificado por meus adversários e está corrompido e adulterado da mesma foram que as epístolas de Paulo, o Apóstolo.”

Rufino – Da adulteração das Obras de Orígenes, parágrafo 7

O segundo foi trazido por seu antagonista, Jerônimo de Aquileia. Após acusar Rufino e haver editado a carta supracitada, ele dá uma nova fonte onde Orígenes negaria a salvação do diabo:

 

Existe em grego um diálogo entre Orígenes e Cândido, o defensor da heresia de Valentino, em que, admito, parece-me que quando o leio estou assistindo a uma luta entre dois gladiadores andabacianos. Cândido alega que o Filho é da substância do Pai, caindo no erro de declarar uma Probolé ou Produção. Por outro lado, Orígenes, como Ário e Eunômio, recusa a admitir que Ele seja produzido ou gerado, por temor que, assim, o Pai deve ser dividido em partes: mas diz que Ele era uma sublime e excelentíssima criação que veio a existir pela vontade do Pai como as outras criaturas. Eles, então, passam para uma segunda questão. Cândido declara que o diabo é de uma natureza totalmente má que nunca pode ser salva. Contra isso, Orígenes declara corretamente que ele não é de uma substância perecível, mas que é por sua própria  vontade que caiu e pode ser salvo. Isso Cândido falsamente transforma numa censura contra Orígenes, como se ele tivesse dito que a natureza diabólica poderia ser salva. Por essa razão, aquilo de que Cândido tinha falsamente o acusado, Orígenes refuta. Contudo, vemos que nesse apenas nesse Diálogo Orígenes acusa os heréticos de ter falsificado seus escritos, não nos outros livros, acerca dos quais nenhuma questão foi levantada. De outra forma, se tivermos de acreditar que tudo que é herético não devido a Orígenes, mas aos heréticos, ao passo que quase todos os seus livros estão cheios desses erros, nada de Orígenes permanecerá, mas tudo deve ser trabalho daqueles cujos nomes ignoramos.

Jerônimo – Apologia própria contra os Livros de Rufino, livro II, 19

Pena que Jerônimo não traga exatamente qual foi o argumento para a refutação ao valentiano, mas não importa qual dos dois fale a verdade, pois se tem tanto um defensor quanto um detrator de Orígenes afirmando que ele chegou a negar uma tese dedutível a partir de De Principiis, pode-se cogitar que muitos antagonistas dele transformaram um exercício especulativo em afirmação categórica. (117)

Em Comentário sobre o Evangelho de João – uma obra que, embora incompleta, chegou até nós em grego – traz passagens um tanto antagônicas, sugerindo a ideia de “universal, mas nem tanto”. Logo no início:

 

Comentário de João I.16

 

Falamos de um começo em referência a uma transição. Aqui tem a ver com uma estrada e com comprimento. Isso aparece no dito: “O começo de um bom caminho é fazer justiça.” (Pr. 16:7, versão LXX). Já que o bom caminho é longo, então com referência ele tem de ser primeiramente tratada a questão relacionada com a ação, e esse lado é apresentado nas palavras “fazer justiça”; o lado contemplativo surge para consideração depois. Nesse último, o fim dele chega para descansar finalmente na dita restauração de todas as coisas, já que nenhum inimigo com quem lutar lhes é deixado, se for verdadeiro o que se diz: “Pois Ele tem de reinar até que tenha posto todos os seus inimigos sob Seus pés. Mas o último inimigo a ser destruído é a morte” (I Cor 15:25-26). Pois então apenas uma atividade será deixada para os que vierem a Deus em razão de Seu verbo que está com Ele, tal é, a saber, a de conhecer Deus, de modo que, encontrando-se pelo conhecimento do Pai, possam todos ser Seu Filho, como agora ninguém além do Filho conhece o Pai. (...)

O que lembra bastante a passagem III.6.5 de De Principiis. Mais tarde, temos a sugestão de que o fim dos inimigos não necessariamente significaria um perdão para todos eles, dependendo da falta cometida:

 

Idem, XIX, parágrafo 88  (v. nota 118)

 

Mas sei que alguns são dominados por seu próprio pecado não apenas nesta era, mas também na era vindoura, como os de quem o Verbo fala: “Se alguém blasfema contra o Espírito Santo, ele não tem perdão nem nesta era, nem na vindoura” (cf. Mt 12:32, Mc 3:29, Lc 12:10). Se, contudo, não perdão na era vindoura, nem há também nas eras que vêm depois dela. (cf. Ef 2:7)

No que se refere especificamente ao diabo, Orígenes advoga que sua opção e contínua ação no Mal tenham modificado definitivamente sua natureza:

 

Idem, XX, parágrafo 174


Mas provavelmente alguém pode se sentir ofendido por ser o Anti-Cristo  uma mentira, já que ele não será mais culpável se, em substância, ele não for nada mais que mentira. Caso se compare com isso o que se diz em Ezequiel sobre aquele que, por causa do mal, mudou tanto que se tornou destruição, “Tornaste-te destruição e não existirás para sempre” (Ez 28:19, versão (?)LXX), ele suportará da mesma maneira a possibilidade de que alguém se torne uma mentira, não por sua substância de criação, mas tendo se tornado tal e sido dotado com tal natureza, se eu puder usar uma nova expressão, por mudança e sua própria escolha. (119)

 

O quadro geral é, em suma, um tanto contraditório e hesitante na obra de Orígenes. A própria ideia de apotacatástase apresenta uma contradição intrínseca: se todos devem retornar ao Pai, o que é feito de seu livre-arbítrio, então? O respeito à vontade dos seres racionais e a aplicação de justiça são os dois pilares de De Principiis, mas a tese de que o princípio e o fim são os mesmos – i.e. todas as almas puras – os faz conflitar. Talvez, como salientou Crouzel, no fundo Orígenes fosse um otimista, firmemente convencido que o apelo divino é tão irresistível que todos acabariam cedendo em algum instante. [voltar]

 

5) Astros como Seres Racionais: livro I. 7 de De Principiis:

 

2. Então, em primeiro lugar vejamos qual juízo pode-se descobrir acerca do sol, da lua e das estrelas – se a tese, defendida por alguns, de sua imutabilidade está correta – e sejam as declarações da santa Escritura, o tanto quanto possível, as primeiras mencionadas. Já que Jó parece afirmar que não apenas estão as estrelas sujeitas a pecar, mas também que elas não estão limpas do contágio por ele. O seguinte são suas palavras: “As estrelas também não são limpas ao Teu olhar” (cf.  Jó 25:5). Nem isso deve ser entendido como o esplendor de sua substância física, como se fosse para falar, por exemplo, de uma peça de roupa que não está limpa; pois se tal fosse o significado, então a acusação de uma limpeza insuficiente no esplendor de sua substância corporal implicaria numa injuriosa reflexão quanto ao seu Criador. Pois se elas são incapazes de, por meio de seus próprios esforços diligentes, adquirir  por si mesmas um corpo de maior brilho, ou por sua preguiça, tornar os que elas têm menos puros, como deveriam incorrer em censura por serem estrelas que não estão limpas, se elas não recebem nenhuma louvor por serem assim?

 

3. Mas para chegar a uma compreensão mais clara dessas questões, devemos primeiramente indagar em sequência a esse ponto se é permissível supor se elas são seres vivos e racionais; então, em seguida, se suas almas vieram à existência ao mesmo tempo em que seus corpos, ou se parecem ser anteriores a eles; e também se, após o fim do mundo, entenderemos que elas serão libertadas de seus corpos; e se, como cessamos de viver, então elas também cessaram de iluminar o mundo. Apesar de esse questionamento poder parecer ser de algum modo ousado, no entanto, como somos incitados pelo desejo de averiguar a verdade o tanto quanto possível, não parece haver nenhum absurdo em tentar uma investigação do assunto aprazível à graça do Espírito Santo.

 

Pensamos, pois, que elas podem ser designadas como seres vivos, por essa razão dizem que elas obedecem às ordens de Deus, que é ordinariamente o caso com seres racionais. “Dei uma ordem a todas as estrelas” (cf. LXX, Is. 45:12), diz o Senhor. Então, quais são essas ordens? Aquelas, a saber, para que cada estrela, em sua ordem e curso, conceda ao mundo a porção de esplendor que lhe tem sido confiada. Pois aquelas que são chamadas de planetas se movem em órbitas de um tipo e as que são chamadas de ap?a?e?? são diferentes. Então, segue-se manifestadamente disso que nem pode o movimento de tal corpo se dar sem uma alma, nem podem coisas vivas estar em alguma circunstância sem movimento. E vendo que as estrelas se movem com tamanha ordem e regularidade, que seus movimentos nunca aparentam estar em alguma circunstância sujeitos a desordem, não seria o cúmulo da insensatez dizer que tão ordenada observância de método e planejamento pudesse ser executado ou concluído por seres irracionais? Nos escritos de Jeremias, de fato, a lua é chamada de rainha do céu (Jr 7:18). Entretanto, se as estrelas são seres vivos e racionais, indubitavelmente surgirão entre elas tanto avanços e quedas. Já que a fala de Jó, “as estrelas não são limpas ao Teu olhar”, parece-me transmitir algo de tal ideia.

 

Aqui se pode ver o raciocínio de Orígenes em ação, especulando seu sistema a partir de livre associação de fragmentos da Bíblia. É bom notar como o caráter investigativo de seu discurso foi transformado em afirmação dogmática pelos anátemas do concílio. Os que creem que ele defendia uma reencarnação em moldes ocidentais modernos - embora em outro mundo - favor atentar que para Orígenes de mundo habitado, mesmo, existiria apenas a Terra (ou o Céu, pelos anjos, e o inferno, pelos demônios), pois os corpos celestes não eram outras “moradas da casa do Pai”, mas seres vivos a partilhar da culpa na queda original. Para Orígenes os mundos eram sequenciais, um para cada era distinta. [voltar]

 

6) Limitação ao Poder de Deus: este é um caso em que efetivamente podemos perceber uma alteração no texto feita pela tradução de Rufino. Em sua tradução de De Principiis, II, 9 aparece:

 

1. (...) Mas voltemos à ordem de nossa discussão pretendida e seja o princípio da criação, até onde a compreensão pode contemplar o começo da criação de Deus. Em tal princípio, pois, temos de supor que Deus criou um número tão grande de criaturas racionais ou intelectuais (ou qualquer nome pelo qual devam ser chamadas) - que anteriormente denominamos intelectos - o quanto Ele anteviu  que  seria suficiente. É certo que os fez conforme algum número definido, predeterminado por Ele mesmo: visto que não é para imaginar, como alguns teriam, que as criaturas não têm limite, porque onde não há limite, não pode haver nem compreensão, nem limitação alguma. Portanto, se fosse esse o caso, então as coisas criadas não poderiam ser nem sujeitadas ou administradas por Deus. Já que, naturalmente, o que quer seja infinito será, também, incompreensível. Além disso, como diz a Escritura, “Deus organizou todas as coisas em número e medida” (cf. Sb 11:20); e por isso um número será corretamente aplicado às criaturas ou intelectos. (...)

 

Agora compare com o trecho extraído por da “Carta a Mena” escrita por Justiniano:

 

No começo, como o contemplamos, Deus criou por um ato de sua vontade um número tão grande de seres inteligentes tanto quanto ele podia controla. Pois devemos sustentar que mesmo o poder de Deus é finito e não devemos, sob o pretexto de louvá-lo, perder vista de suas limitações. Pois se o poder divino fosse infinito, forçosamente não poderia nem mesmo entender a si mesmo, já que o infinito é por sua natureza incompreensível. Ele fez, assim, tantos quantos ele podia apreender, e reter em mãos, e sujeitar a sua providência.

 

Um resumo dessa ideia pode ser encontrado na carta de número XCVIII de Jerônimo, onde ele traduz para o latim a condenação que seu contemporâneo – Teófilo de Alexandria – fez contra Orígenes. Nota-se que Rufino manteve as linhas gerais do discurso original, mas sem dúvida o suavizou ao estabelecer a finitude da criação como uma necessidade para ela mesma, e não uma limitação divina.

 

Dado o nó lógico que uma onipotência absoluta pode causar, limitações a ela retornariam à teologia cristã tempos depois. Obviamente os teólogos tomaram mais cuidado que Orígenes para não “chocar” seu publico. Tomás de Aquino, por exemplo, restringiu o conceito de onipotência a todos os atos que não gerassem contradição. [voltar]

 

7) Ressurreição “Esférica”: Nenhuma obra de Orígenes que chegou até nós traz tal tese. Nem Justiniano o cita aqui para justificar seu anátema. Um artigo de J. Festugière – De la doctrine “origéniste du corps glorieux sphéroïde” – é rapidamente comentado em [Perrone, p. 1174, n. 30], lançando a hipótese de que essa acusação teria surgido a partir da equação “corpo da ressurreição = corpo glorioso = corpo astral = corpo esférico”, que toma como premissa que Orígenes pode ser simplesmente tratado como um representante da sabedoria helênica, que considerava a esfera como a forma mais perfeita.

 

A raiz de tal transformação pode estar no seguinte trecho de De Principiis:

 

III.6.4

Também com relação ao corpo, o apóstolo disse, “Temos uma casa que não foi feito com mãos, eterna nos céus” (cf, II Cor 5:1), i.e., na mansão dos abençoados. E dessa declaração podemos conjecturar, quão puras, quão refinadas e quão gloriosas são as qualidade de tal corpo, se compararmos com aqueles que, embora seja corpos celestes e de luminosíssimo esplendor, foram, entretanto, feitos com mãos e são visíveis a nossa vista. Mas diz-se de tal corpo que ele não é uma casa feita por mãos, mas eterno nos céus.

 

Indícios dessa crença em ressurreição esférica já final do o século IV são encontrados já condenação de Teófilo de Alexandria contra Orígenes. Como o V Concílio também condena [cf. Evágrio Escolástico] um origenista chamado Dídimo, o cego, pode ser dele essa tese. [voltar]

 

8) Aniquilação da Existência corporal: Há algumas passagens na tradução de Rufino de De Principiis onde Orígenes discute se o término será corpóreo ou não. A saber:

 

De Principiis I.6.4

 

Mas já que Paulo disse que certas coisas são visíveis e passageiras e outras, diferentemente, são invisíveis e eternas, procedamos a indagar como essas coisas que são vistas são passageiras – se é porque afinal não haverá nada delas em todos os períodos do mundo vindouro, no qual aquela dispersão e separação do início vão sofrer um processo de restauração para o mesmo e único fim e similitude; ou porque, enquanto as formas das coisas que são vistas passam, sua natureza essencial não está sujeita à corrupção. E Paulo parece confirmar a última opinião quando diz, “pois a aparência deste mundo passa” (I Cor 7:31) Davi também parece declarar o mesmo nas palavras, “Os céus passarão, mas Tu permaneces; e eles envelhecerão como uma peça de roupa, e os mudará como uma veste, e como uma vestimenta serão mudados” (Sl 102:26). Já que os céus vão mudar, certamente o que é mudado não perece e se a aparência do mundo passa, não é de forma alguma uma aniquilação ou destruição de sua substância material que se demonstrará ocorrer, mas um tipo de mudança qualitativa e transformação de aparência. Isaías também, ao declarar profeticamente que haverá um novo céu e uma nova terra, sem dúvida sugere a mesma opinião. Já que essa renovação de céu e terra, e essa transmutação da forma do mundo presente, e essa mudança de céus será sem dúvida preparada pelos que estão caminhando por aquela via que assinalei acima e tendendo para aquela meta de felicidade a que, diz-se, mesmo os inimigos terão de se submeter, e na qual se diz que Deus  é “tudo em todos.” E se alguém imagina que fim a natureza material, i.e., corporal será inteiramente destruída, ele não pode em nenhum aspecto partilhar de minha opinião, como seres tão numerosos e poderosos são capazes de viver sem corpos já que isso é um atributo exclusivo da natureza divina – i.e., do Pai, do Filho e do Espírito Santo – existir sem qualquer substância material e sem tomar parte em qualquer grau de junção corpórea. Outro, talvez, diga que no fim toda substância corpórea será tão pura e refinada como é o éter e de uma pureza e limpeza celestiais. Como as coisas serão, contudo, é conhecido com certeza apenas por Deus e pelos que são Seus amigos por meio de Cristo e do Santo Espírito.

 

Aqui ficam expostos dois aspectos da visão de Orígenes acerca da ressurreição: em primeiro, alguma “essência” do corpo é preservada e a restauração se dá a partir dela e, segundo, não há, nesse passo, um descarte da matéria original como muitos espiritualistas tendem a pensar, mas, sim, sua transformação em outra mais sutil. Fica em aberto a decisão de se haverá uma aniquilação dessa matéria sutil num estágio final.

 

De Principiis II.2.1-2

 

1. Neste tópico, alguns estão acostumados a indagar se, como o Pai gera um filho incriado e produz um Espírito Santo, não como se Ele não tivesse existência prévia, mas porque o Pai é a origem e a fonte do Filho ou Espírito Santo, e não se pode depreender como alguma anterioridade ou posteridade exista neles; assim também pode-se depreender um tipo similar de união ou relacionamento subsistindo entre a natureza racional e a matéria corporal entre as criaturas racionais e a matéria corporal. E para que este ponto pode ser mais plena e completamente examinado, o princípio da discussão é geralmente direcionado a indagar se essa mesma natureza corporal, que sustenta as vidas e contém os movimentos de mentes espirituais e racionais, será igualmente eterna como ela ou irá perecer e ser destruída. E para que a questão possa ser determinada com maior precisão, temos, em primeiro lugar, de indagar se é possível para criaturas racionais permanecer completamente incorpóreas após terem alcançado o ápice de santidade e felicidade (que me parece ser o mais difícil e quase impossível logro); ou se devem sempre necessitar estar unidas a corpos. Se, pois, alguém puder mostrar uma razão pela qual fosse possível a elas dispensar inteiramente corpos, então acarretará em consequência que como a natureza corporal - criada do nada após intervalos de tempo - foi produzida quando não existia, ela deve cessar de ocorrer quando o propósito para o qual serviu não tiver mais existência.

 

2. Se, contudo, for impossível sustentar-se esse ponto completamente, digo, que qualquer outra natureza além do Pai, do Filho e do Espírito Santo possa viver sem um corpo, a necessidade de raciocínio lógico nos compele a entender que as naturezas racionais foram, na verdade, criadas no começo, mas a substância material foi separada delas somente em pensamento e compreensão e aparenta ter sido formada para eles, ou depois deles, e que eles nunca viveram nem vivem sem ela; já que uma vida incorpórea deve ser corretamente considerada como exclusiva da Trindade. Como assinalamos acima, portanto, tal substância material deste mundo, possuindo uma natureza passível de todas as transformações possíveis, é, quando é arrastada abaixo para seres de ordem inferior, moldada na condição mais grosseira e sólida de um corpo, a fim de distinguir as formas variáveis e visíveis do mundo; mas quando ela se torna a serva dos mais perfeitos e abençoados seres, brilha no esplendor dos corpos celestiais e adorna tanto os anjos de Deus quanto os filhos da ressurreição com o revestimento de um corpo espiritual, fora de tudo o diverso e variável estado do mundo será preenchido. Mas se alguém desejar discutir essas questões mais plenamente, será necessário, com toda a reverência e temor a Deus, examinar as sacras Escrituras com maior atenção e diligência, para averiguar se o sentido secreto e oculto dentro delas possa talvez revelar qualquer coisa quanto a essas questões; e algo pode ser descoberto em sua recôntida e misteriosa linguagem por meio da demonstração do Espírito Santo àqueles que são dignos, após muitos testemunhos terem sido reunidos sobre esse ponto.

 

As duas opções para o estado final dos seres racionais são reapresentadas no livro segundo, mas não chega a decisão alguma.

 

De Principiis III.6

 

1. No que aparenta já avançar, se assim podemos nos expressar, e de ser meramente similar para se tornar o mesmo, porque na consumação ou fim, Deus é tudo em todos. E com referência a isso, alguém pergunta se a natureza corporal, embora limpa e purificada, e completamente tornada espiritual, não parece nem oferecer uma obstrução para atingir a dignidade da (divina) similitude ou à própria união, porque nem pode uma natureza corpórea mostrar-se capaz de qualquer semelhança a uma natureza divina, que é certamente incorpórea; nem pode ser de forma real e merecida designada uma com ela, especial por sermos ensinados pelas verdades de nossa religião que para apenas aquele que é uno, isto é, o Filho com o Pai, deve-se atribuir a peculiaridade da (divina) natureza.

 

(...)

4. (…) Já que, então, as coisas “que se veem são temporais, mas as que não se veem são eternas” (2 Cor 4:18), todos aqueles corpos que vemos seja na terra ou no céu, e que são capazes de serem vistos, e foram feitos com mãos, mas não são eternos, são por muito superados em glória pelos que não são visíveis, nem feitos com mãos, mas são eternos. De tal comparação se pode conceber quão grande são o aspecto, e o esplendor e o brilho de um corpo espiritual; e quão verdadeiro é, que “nem viu o olho, nem escutou o ouvido, nem entrou no coração do homem para conceber o que Deus preparou para os que O amam” (I Cor 2:9, cf. Is 64:4). Não devemos, porém, duvidar que a natureza do presente corpo nosso pode, pela vontade de Deus, que fez o que ele é, possa ser alçada a essas qualidades de refinamento, e pureza, e esplendor (a que se caracterizam os referidos corpos), conforme a condição das coisas exigir e os méritos de nossa natureza racional demandar. Finalmente, quando o mundo exigiu variedade e diversidade, a matéria entregou-se a si mesma com toda docilidade através das diversas aparências e espécies de coisas para o Criador, como a seu Senhor e Produtor, do modo que Ele pôde extrair dela as várias formas de seres celestes e terrestres. Mas quando as coisas começaram a se dirigir rapidamente para a consumação em que todos serão um, como o Pai é um com o Filho, pode-se depreender, como uma inferência racional, que onde todos são um, não haverá qualquer diversidade.

5. (...)Finalmente, nossa carne é tida pelos ignorantes e incréus como destinada a ser destruída após a morte, em tamanho grau que nenhum vestígio permanece de sua antiga substância. Nós, porém, que acreditamos em sua ressurreição, compreendemos que apenas uma mudança foi produzida pela morte, mas que sua substância certamente permanece; e que pela vontade de seu Criador e no tempo indicado, ela será restaurada à vida; e que uma segunda mudança ocorrerá nela, de maneira que aquilo que foi inicialmente carne extraída do solo terrestre, e foi em seguida dissolvida pela morte, e novamente reduzida a pó e cinzas (“Pois pó tu és”, diz-se, “e ao pó retornarás”) (Gn 3:19), será mais uma vez erguida da terra e depois disso irá, conforme os méritos de sua alma residente, avançar para a glória de um corpo espiritual (cf. I Cor 15:44).

(...)

7. A totalidade desse raciocínio, pois, significa isso: que Deus criou duas naturezas gerais – uma visível, i.e., uma natureza corporal; e uma invisível, que é incorpórea. Então essas duas naturezas admitem duas diferentes permutações. Que a invisível e racional natureza mude em mente e propósito, porque ela é dotada de livre-arbítrio, e em razão disso se encontra ás vezes engajada na prática do bem e às vezes na do oposto. Mas essa natureza corporal admite uma mudança de substância; daí então também Deus, o organizador de todas as coisas, tem o serviço da matéria ao Seu comando na modelagem, ou fabricação ou retoque do que quer que deseje, de modo que a natureza corporal pode ser transmutada e transformada em quaisquer formas ou diferentes espécies, conforme os méritos que as coisas demandam; o que o profeta evidentemente viu quando disse , “É Deu que faz e transforma todas as coisas” (Sl 102:25-26).

(...)

9. Dessa forma, consequentemente, temos de supor que na consumação e restauração de todas as coisas, os que fazem gradual avanço e que ascendem (na escala de melhoramento) chegarão, na devida medida e ordem, àquele patamar e ao treinamento que está contido nele, onde podem ser preparados pelas melhores instituições às quais nenhum acréscimo pode ser feito. Visto que, depois de Seus agentes e servos, o Senhor Cristo, que é Rei de todos, irá ele mesmo assumir o reino; i.e., após a instrução nas divinas virtudes, Ele mesmo instruirá os que são capazes de recebê-lO em relação ao seu ser-sabedoria, reinando sobre eles até tê-los sujeitado ao Pai, que sujeitou todos a Si mesmo, i.e., que quando eles tiverem sido capazes de receber a Deus, Deus pode ser para eles tudo em todos. Assim então, como uma consequência necessário, a natureza corporal obterá a mais alta posição, a qual nada pode ser acrescentado. Tendo discutido até este ponto a qualidade da natureza corporal, ou do corpo espiritual, deixamo-la para a escolha do leitor determinar a que deva ser considerada a melhor. E aqui podemos trazer o terceiro livro a um término.

 

No sexto capítulo do terceiro livro, Orígenes se dedica a especular sobre os eventos do fim dos tempos, em especial sobre a ressurreição. Após uma espécie de recapitulação de ideias expostas anteriormente, ele deixa a cargo do leitor a escolha entre a melhor alternativa sobre o estado final dos seres racionais. Vale, porém, expor uma citação de Jerônimo, provavelmente extraída do mesmo capítulo:

 

Jerônimo – Carta a Ávito

 

Visto que, como nós já frequentemente observamos, o começo é gerado outra vez a partir do fim, é uma questão se então haverá corpos ou se a existência será mantida em alguma ocasião sem eles, quando tiverem sido aniquilados, e assim a vida de seres incorpóreos deve ser tida como incorpórea, como sabemos que é o caso de Deus. E não há dúvida que se todos os corpos que são denominados visíveis pelo apóstolo pertencem ao tal mundo sensível, a vida de seres incorpóreos será incorpórea.” E um pouco depois: “Também aquela expressão usada pelo apóstolo, 'Toda a criação será liberta do cativeiro da corrupção para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus' (Rm 8:21), então entendemos que dizemos que foi a primeira criação de seres racionais e incorpóreos que não está sujeita à corrupção, porque não foi revestida com corpos: pois se há corpos, a corrupção se segue imediatamente. Mas depois ela [a criação] será liberta do cativeiro da corrupção, quando eles tiverem recebido a glória dos filhos de Deus, e Deus será tudo em todos.” E no mesmo lugar: “A fala do próprio Salvador nos leva a pensar que devemos crer no fim de todas as coisas como sendo incorpóreo, quando Ele diz,'Como Eu e Tu somos um, então que eles também seja um em Nós' (Jo 17:21). Já que devemos saber o que Deus é e o que o Salvador será no fim, e como a semelhança do Pai e do Filho foi prometida aos santos; pois como são um nEle, então também são um neles (mesmos). Já que devemos adotar a tese, seja que o Deus de todas as coisas esteja revestido de um corpo e, como nós somos envoltos com carne, então também Ele com algum material, para que semelhança da vida de Deus possa ser, no fim, feita também nos santos: ou se essa hipótese é irrealizável, especialmente no julgamento dos que desejam, mesmo no menor grau, sentir a majestade de Deus e admirar a glória de Sua incriado e insuperável natureza, somos forçados a adotar a outra alternativa, e ou perdemos a esperança de atingir qualquer semelhança com Deus, se tivemos de habitar para sempre os mesmos corpos, ou se a beatitude da mesma vida com Deus nós é prometida, devemos viver no mesmo estado que com o que em Deus vive.

 

Comparando as duas, temos uma tremenda contradição: Rufino expõe duas alternativas – uma derivada da crença de que apenas a Trindade é puramente espiritual e outra a partir da lógica de seu sistema -, mas não bate o martelo por nenhuma; ao passo que Jerônimo age como se Orígenes apenas tratasse da aniquilação corporal, pois, após uma primeira etapa de ressurreição corporal, os corpos espirituais ainda poderiam se corromper. Cada um teria seus motivos para manipular. Rufino queria continuar exibindo seu ídolo como aceitável aos olhos dos ortodoxos do final do século IV, enquanto Jerônimo fez de sua carta para Ávito uma coletânea de heresias.

 

Buscando uma obra que não tenha chegado a nós pelas mãos de ambos, o quadro se torna mais favorável ao relato de Rufino:

 

Diálogo com Heráclides, fls 5-6

 

[5] (...)Com relação à divindade, alguns objetam que, enquanto admitir a divindade substancial de Jesus Cristo, eu fiz isso numa tal maneira que professei perante a Igreja a ressurreição de um corpo morto. Mas já que nosso Senhor e Salvador realmente assumiu um corpo, examinemos o que o corpo era. Apenas a Igreja, contra todas as heresias que negam a ressurreição, professa a ressurreição do corpo morto; pois do fato que as primícias foram levantadas dos mortos, segue que os mortos se levantam. Cristo é como as primícias (I Cor 15:23); é por isso que seu corpo se tornou um cadáver. Pois se seu corpo não tinha se tornado um cadáver, capaz de ser envolto numa mortalha, untado com especiarias, e qualquer outra coisa que se faça a um cadáver, e capaz de ser posto para jazer numa tumba – essas coisas não podem ser feitas a um corpo espiritual. Pois não é de jeito nenhum possível para algo espiritual se tornar um cadáver, nem [é possível], tal como é ele, para o espiritual se tornar insensível. Pois se o espiritual devesse se tornar um cadáver, devemos de ter medo que, após a ressurreição dos mortos, quando nossos corpos forem levantados conforme a palavras do apóstolo (I Cor 15:44): É semeado um corpo físico (???????), é erguido um corpo espiritual (p?e?µat????), todos nós [6] morreríamos. Pois Cristo sendo erguido dos mortos nunca mais morrerá (Rm 6:9). Mas não apenas Cristo  sendo erguido dos mortos nunca mais morrerá, mas também os que pertencem a Cristo (I Cor 15:23), tendo sido erguidos dos mortos, nunca mais morrerão. Se vocês estão de acordo com esses pontos e eles são solenemente afirmados pelo povo, que sejam codificados e definitivamente estabelecidos. (120)

 

Por outro lado, o origenismo evagriano, contemporâneo aos dois contendedores, oferece assertivas em prol da aniquilação do corpo e que devem ter repercutido nos monges palestinos do século VI:

 

Kephalaia Gnostika II. 17

 

Acompanhando o conhecimento que diz respeito aos ???????, a destruição dos mundos, a dissolução dos corpos e a abolição dos nomes, onde [aí] permanece a igualdade de conhecimento conforme a igualdade de substâncias.

 

 

Kephalaia Gnostika II. 62

 

Quando os ??e? tiverem recebido a contemplação que lhes diz respeito, então também toda a natureza corporal será removida; e assim a contemplação que diz respeito a ela será imaterial.

[voltar]

                                                                                                             

9) Término do reino de Cristo: Reapresentando De Prinicipiis III.3.9:

 

Dessa forma, consequentemente, temos de supor que na consumação e restauração de todas as coisas, os que fazem gradual avanço e que ascendem (na escala de melhoramento) chegarão, na devida medida e ordem, àquele patamar e ao treinamento que está contido nele, onde podem ser preparados pelas melhores instituições às quais nenhum acréscimo pode ser feito. Visto que, depois de Seus agentes e servos, o Senhor Cristo, que é Rei de todos, irá ele mesmo assumir o reino; i.e., após a instrução nas divinas virtudes, Ele mesmo instruirá os que são capazes de recebê-lO em relação ao seu ser-sabedoria, reinando sobre eles até tê-los sujeitado ao Pai, que sujeitou todos a Si mesmo, i.e., que quando eles tiverem sido capazes de receber a Deus, Deus pode ser para eles tudo em todos.(...)

 

Citada apenas nos anátemas de 553 – e, portanto, sem as citações e refutações de Justiniano que acompanham os de 543 - é um tanto estranho que uma mera alegação do “fim do reinado de Cristo” cause tanto alvoroço, quando ela mesma possui base bíblica em I Cor 15:24-26:

 

E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder.  Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte.

 

 

Isso representa apenas um fim do processo de salvação e redenção de Cristo, que Orígenes adaptou ao seu sistema. Talvez, como será visto mais abaixo, com a dissolução do próprio Nous-Cristo com os demais intelectos numa apocatástase panteísta, conforme o origenismo tardio, isso passou a ser rejeitado.

 

10) Restauração universal: ver item quatro – crucifixão por demônios. De certa forma não está claro se Orígenes aceitaria a salvação de demônios com a mesma facilidade que a homens pecadores. Pode-se alegar de Orígenes tenha mudado suas declarações públicas quando o bispo de Alexandria começou a persegui-lo, embora isso não coadune com a ideia sugerida por seu sobrenome (ou apelido): Adamâncio – “homem de ferro”. Ou apenas trouxesse à baila uma opinião necessária à teologia investigativa de De Principiis, mas que não partilhasse em termos dogmáticos. [voltar]

 

11) Dissolução panteísta: Da carta a Ávito de Jerônimo:

 

E após uma discussão muito longa, na qual declara que toda a natureza corporal deve ser mudada em corpos espirituais de extrema sutileza e que toda a matéria deverá ser transformada num simples corpo da máxima pureza, mais claro que todo o brilho e de tal qualidade que a mente humana não pode conceber. Ao final declara: “’E Deus será tudo em todos’, de forma que toda a natureza possa ser mesclada em tal substância que é superior a todas as outras, ou seja, na divina natureza, que nada pode superar.

 

Uma lida nessa “discussão muito longa” pode demonstrar que Jerônimo simplificou demais as coisas aqui:

 

De Principiis, IV.4.8-9

 

É necessário que a natureza dos corpos não seja primária, mas que tenha sido criada em intervalos em função de certas quedas que ocorreram com seres racionais, que vieram a necessitar de corpo; e que mais uma vez, quando sua restauração é perfeitamente alcançada, esses corpos são dissolvidos em nada, de forma que isso está acontecendo para sempre (...)

 

Todo aquele que partilha de alguma coisa é, sem dúvida, de uma substância e uma natureza com quem partilha da mesma coisa. Por exemplo, todos os olhos partilham da luz, e portanto todos os olhos, que partilham da luz, são de uma natureza. Mas apesar de todo o olho compartilhar da luz, como um olho vê claramente e outro de forma embaçada, cada olho não partilha igualmente da luz. E ainda; todo ouvinte percebe a voz e o som e, portanto, todo ouvinte é de uma natureza; mas cada pessoa é rápida ou lenta na proporção à pura e saudável condição de sua faculdade auditiva.  Então, passemos desses exemplos extraídos dos sentidos para a consideração das coisas intelectuais.

Cada mente que partilha da luz intelectual deve, sem dúvida, ser de uma natureza com cada outra mente que partilha da nessa luz de forma similar. Então se os poderes celestiais recebem uma parte de luz intelectual, i.e., da natureza divina, em virtude do fato que partilham da sabedoria e santificação, e se a alma do homem recebe uma parte da mesma luz e sabedoria, então esses seres serão de uma natureza e uma substância com cada outra mente. Mas as potestades celestes são incorruptíveis e imortais; portanto sem dúvida a substância da alma do homem também é incorruptível e imortal. E não apenas isso, mas como a natureza do Pai, do Filho e do Espírito e Espírito Santo, a quem somente pertence a luz intelectual de que a criação universal partilha, é incorruptível e eterna, segue logicamente e de necessidade que toda existência que tenha uma parte da natureza eterna deva ela mesma também permanecer para sempre incorruptível e eterna, a fim de que a eternidade da divina bondade possa ser revelada nesse fato adicional, para que elas que obtêm a bênção sejam eternas também. Contudo, exatamente como em nossos exemplos, reconhecemos alguma diversidade na recepção da luz quando descrevemos o poder individual de visão como sendo embaçado ou aguçado, então também devemos reconhecer uma diversidade de participação no Pai, no Filho e no Espírito santo, variando em proporção à sinceridade da alma e à capacidade da mente. (...) (121)

 

Já no Livro de Hierotheos, do século VI, o discurso se tornou francamente panteísta, para não dizer pan-niilista, com o término até da própria Trindade. [voltar]

 

 

***

 

 

Existe uma ponte entre os anátemas de 543 e os dez anos depois. Ela é uma lista feita por um origenista desertor (ou obrigado a se retratar) – Teodoro de Citópolis  -  chamada Libelo sobre os erros de Orígenes. Nela constam quase literalmente os nove anátemas de 543, mas existem um três acréscimos que mostram as inovações desenvolvidas no partido isochrista (122):

 

(4) O reinado de Cristo terá um término.

(11) “Seremos iguais a (...) nosso redentor Cristo, nosso Deus; e o Deus-Logos deve ser unido a nós, como ele foi unido à carne recebida de (...) Maria, conforme a substância e a hipóstase”.

(12) Os corpos, o de Cristo também, estão destinados à dissolução.

 

São inovações a mostrar que o objeto tratado pelo V Concílio foi uma mescla do origenismo tradicional com os partidários de ideias herdadas de Evágrio através de Bar Sudaili. Não conseguindo separar claramente um dos demais, Justiniano e outros teólogos ortodoxos do século VI efetivamente condenaram o conjunto todo, o que será visto em detalhes no capítulo a seguir.

 

 

Notas:

 

(109)  Por exemplo, I Enoque, cap. 6-11. Uma edição está disponível em The Old Testament Pseudoepigrapha, editado por James H. Charlesworth, Doubleday.

 

(110) “Dizei se a minha infância sucedeu a outra idade já morta ou se tal idade foi a que levei no seio da minha mãe? E antes deste tempo, que era eu, minha doçura, meu Deus? Existi, porventura, em qualquer parte, ou era acaso alguém. Não tenho quem me responda, nem meu pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória. (...)”? (Confissões, livro I, cap. VI). Esta dúvida sempre acompanhou Agostinho, que nunca se definiu como sendo a favor ou contra a existência antes do nascimento, preferindo assumir sua ignorância quanto à origem da alma:

Pois você [Vincêncio Vítor] não apenas caluniou com sua censura os que são afligidos com a mesma ignorância sob a qual eu próprio estou penando, quero dizer, no que diz respeito à origem da alma humana (apesar de eu não ser absolutamente ignorante mesmo quanto a esse ponto, pois sei que Deus soprou a face do primeiro homem, e tal “homem então se tornou alma vivente” [Gn 2:7] – uma verdade, porém, que eu nunca soube por conta própria, exceto o que lera na Escritura); mas você perguntou tão sucintamente. “Qual diferença há entre um homem e uma fera selvagem, se ele não sabe como discutir e determinar sua própria qualidade e natureza?” E você parece nutrir sua opinião tão distintamente, como tendo pensado que um homem deva ser capaz de discutir e determinar completamente os fatos de própria qualidade e natureza tão distintamente, de modo que nada acerca de si mesmo deva escapar de sua observação. Agora, se isto é realmente a verdade da questão, devo, então, compará-lo “ao gado” se não puder me dizer o número preciso de fios de cabelo da sua cabeça. Mas se, apesar do quanto possamos avançar nesta vida, você nos permitir sermos ignorantes de diversos fatos pertencentes a nossa natureza, então eu quero sabe o quão longe sua concessão se estende, que, porventura, pode incluir o mesmo ponto que estamos tratando agora, que de qualquer maneira não sabemos a origem de nossa alma, apesar de sabermos - algo que pertence à fé – além de qualquer dúvida, que a alma é um presente de Deus ao homem, e ainda que ela não é da mesma natureza do próprio Deus.

 Da Alma e Sua Origem, Livro I, cap. III

Como muitos espiritualistas esquecem, vale lembrar que, para Agostinho, o destino da alma após a morte era bem definido: redenção ou danação eternas.

Devo agora, vejo eu, entrar na arena de afável controvérsia com aqueles cristãos compassivos que renegam em acreditar que qualquer ou todos os que o infalivelmente justo Juiz possa declarar merecedor do castigo do inferno, sofrerá eternamente e quem supõe que eles serão enviados a um período fixo de castigo, maior ou menor de acordo com a quantidade de pecado de cada homem. Quanto a esta questão, Orígenes foi ainda mais indulgente; pois acreditava que mesmo o próprio diabo e seus anjos, depois de sofrerem das mais severas e prolongadas dores a que seus pecados estão reservados, devam ser libertados de seus tormentos e associados com os santos anjos. Mas a Igreja, não sem razão, condenou-o por este e outros erros, especialmente por sua teoria de alternâncias incessantes entre felicidade e miséria e uma interminável transição de um estado a outro em períodos de eras fixas; pois nesta teoria ele perde mesmo o crédito por ser misericordioso, ao distribuir aos santos misérias verdadeiras misérias para a expiação de seus pecados e falsa felicidade, que não lhes traz nenhuma alegria verdadeira e segura, isto é, uma destemida certeza da eterna redenção. Muito diferente, porém, é o erro de que falamos, que é ditado pela compaixão destes cristãos que supõem que os sofrimentos dos que forem condenados no julgamento será temporário, ao passo que a redenção de todos que serão cedo ou tarde libertos será eterna.

Cidade de Deus, XXI, 17

(111) Nesta citação, a referência segue a uma divisão do quarto livro de De Principiis em parágrafos feita pela edição de Schaff na Ante-Nicene Fathers. Nos demais livros, a divisão é feita em capítulos e parágrafos.

(112) Comentário sobre a Epístola aos Romanos, I.5

 

Ele, que era um filho segundo a carne, veio realmente da semente de Davi. Sem dúvida ele se tornou o que anteriormente não era, segundo a carne. Segundo o Espírito, porém, primeiramente existia e nunca houve um tempo em que não existiu.

 

Existiu durante a controvérsia ariana o slogan: ?? p?te ?ote ??? ?? - “houve um tempo quando ele não era (i.e. não existia)”, referindo-se ao tempo antes de o Filho ser criado. Aqui e em De Principiis, Orígenes defende uma tese oposta e não é à toa que foi usado por Atanásio como uma espécie de precursor. A utilidade dessas passagens para ele deve ter sido grande, pois a hierarquia entre as figuras da Trindade de Orígenes dava uma brecha aos arianos.

 

(113) Contra Celso, VI, 47.

 

Nada há de espantoso se, declarando que a alma de Jesus está unida ao altíssimo Filho de Jesus por uma participação suprema com ele, não a separamos mais dele. As santas palavras das divinas escrituras conhecem igualmente outros exemplos de seres que, embora sendo dois por natureza, são considerados e constituem uma só essência um com o outro. Por exemplo, diz a escritura a respeito do homem e da mulher: “Já não são dois, mas uma só carne” (Gn 2:24; Mt 19:6); e do homem perfeito unido ao Senhor verdadeiro, logos, sabedoria, verdade: “Aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito” (I Cor 6:17). Ora, se “aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito”, quem então melhor ou tanto quanto a alma de Jesus se acha unido ao Senhor, o logos em pessoa, a sabedoria em pessoa, a verdade em pessoa, a justiça em pessoa? Sendo assim, a alma de Jesus e o Deus logos, “primogênito de toda criatura” (Cl 1:15), não são dois.

 

(114) Na edição da coleção “Os Pensadores”, vol. XXIII, p. 148, Abril Cultural, 1973

 

Constantino convocou em Niceia, sita defronte Constantinopla, o primeiro concílio ecumênico, ao qual presidiu Ózio. Ali se resolveu o grave problema que, por então, dividia a Igreja, a respeito da divindade de Jesus Cristo. Uns fundavam-se na opinião de Orígenes, que afirma no capítulo 6 contra Celso: “Fazemos as nossas preces a Deus por intermédio de Jesus, que se conserva entre as naturezas criadas e a natureza incriada, que nos traz graça de seu Pai e leva nossas orações ao grande e poderoso Deus, na qualidade de nosso pontífice”.

 

Pode-se ver que os pormenores da união da alma de Jesus com o Filho para gerar um ser intermediário (o “homem-Deus”) e a co-eternidade entre Pai e Filho eram desconsiderados pelos arianos.

 

(115) Mônada – palavra que assumiu vários sentido ao longo do tempo, conforme o sistema filosófico-teológico que se apropriou dela. Segundo a Enciclopédia Católica:

 

Mônada, no sentido de “unidade última, indivisível” aparece cedo na história da filosofia grega. Nos antigos registros das doutrinas de Pitágoras, aparece com o nome de unidade a partir da qual, como se um princípio (arché), todas as enumerações e multiplicidades foram derivados. Nos “Diálogos” platônicos, é usada no plural (monades) como um sinônimo para as Ideias. Na “Metafísica” de Aristóteles, ocorre como o princípio (arché) de enumeração, ele mesmo sendo vazio de quantidade, indivisível e imutável. A palavra mônada é usada pelos neo-platônicos para significar o Uno; por exemplo, nas cartas do cristão platônico Sinésio, Deus é descrito como a Mônada das Mônadas.

 

(116)Molland [Origen, 5, p.159] é um que estabelece a salvação do demônio como consequência lógica do sistema de De Principiis. O que outros autores, como Henri Crouzel [Crouzel, XIII, p.262- 265] e Fr. Tadros Malaty [Malaty, p.253 - 261] (que também se vale de Crouzel) tentam averiguar é a ausência de um raciocínio tão linear assim dentro e fora de De Principiis. Mais precisamente, eles tentam estabelecer uma separação entre o que Orígenes tratou na teologia especulativa de De Principiis e seu discurso em tratados dogmáticos.

 

A principal crítica de Crouzel aos que defendem uma restauração universal é o fato de só prestarem atenção na lógica do sistema de De Principiis, deixando de lado as nuanças e alternativas que também são discutidas. O diálogo que Jerônimo comenta entre Orígenes e Cândido (a ser visto mais adiante) insinua que Orígenes não se prendia a uma camisa de força teológica. Para Crouzel [p. 264], Orígenes estaria mais inclinado a aceitar a punição eterna para demônios que para humanos e algumas passagens como a Homilia em Jeremias XVIII, I e algumas das que falam de pecados contra o Espírito Santo (ex. Comentário de João, XIX, 88) apontam nessa direção.

 

(117) O leitor deve ter reparado na contradição entre a cristologia origenista proto-ariana comentada por Jerônimo no diálogo entre Orígenes e Cândido e a contida em outras obras citadas anteriormente, e que foi até usada por Atanásio. Bem, há duas formas de conciliar isso: (1) considerar como aqui presente uma mudança de pensamento do teólogo ou (2) analisar a tese de [Crouzel, IX, p. 174-175] de que Jerônimo às vezes se enrolava quanto ao significado de alguns termos gregos:

 

Nas acusações trazidas contra Orígenes, questões de vocabulário ainda têm seu papel: através de sua falta de senso histórico e conhecimento, seus detratores leram em expressões que ele usava o significado que elas tinham em seus dias, o que não era o de Orígenes. Assim, no prefácio de De Principiis ele declara, conforme a versão de Rufino, que ‘Cristo nasceu (natus) do Pai antes de toda criação’ e então pergunta se o Espírito Santo ‘nasce ou não’. Na carta 124 a Ávito, Jerônimo assim transpõe a primeira sentença: ’O Cristo, Filho de Deus, não nasce, mas é feito (factum)’ e a segunda sobre o Espírito Santo ‘se ele é feito ou não’. Dessa forma, Orígenes é direcionado para o arianismo. Essa discrepância é facilmente explicada: o texto de Orígenes deve conter genêtos e agenêtos com um n simples. Para ele, como para a maioria antes da crise ariana, genêtos e gennêtos, com um n simples ou dobrado, são equivalentes e intercambiáveis. No século III, de fato, as consoantes dobradas não são mais pronunciadas e Orígenes frequentemente usa genesis com um n simples e não gennesis com dois para a geração de Jesus por Maria. A necessidade de distinguir geração de criação para responder ao arianismo traria de volta a especialização das formas com um n para significar criação (gignomai) e n dobrado para indicar geração (gennao). Jerônimo, não levando em consideração o que Orígenes diz em qualquer outra parte e no próprio Tratado sobre os Primeiros Princípios, sobre a geração do Filho, traduz genêtos e agenêtos conforme o uso teológico de seu tempo por factus e infectus. Orígenes iria, nesse caso, fazer do Filho e do Espírito Santo criaturas. Rufino provavelmente não estava mais ciente que Jerônimo das diferenças de vocabulário, mas ele toma em consideração outros textos e sua boa vontade o ajuda a evitar um erro sério demais.

 

(118) A coleção Ante-Nicene Fathers de Schaff numera sua edição de Commentary of the Gospel of John por livros e capítulos, porém só abarca até o livro X. Os demais livros foram extraídos da coleção The Fathers of the Church da Catholic University Press, que prefere numerar por livro e parágrafo.

 


(119) Antes que alguém saia falando besteira, Orígenes, ao dizer que o diabo é “uma mentira”, não alega ser ele uma figura fictícia, mas, sim, que a natureza de sua essência é a de um mentiroso. Quanto à citação de Ezequiel, a palavra “destruição” consta na LXX, mas não no massorético. A leitura “não existirás para sempre” não existe em nenhum deles dois. Talvez Orígenes tivesse um manuscrito de outra tradição ou teve um ato falho ao tentar citar de cor.

 

(120) O “Diálogo de Orígenes com Heráclides e seus Companheiros Bispos sobre o Pai, o Filho e a Alma” é uma transcrição estenográfica de um encontro com bispos similar a um sínodo, na presença de leigos, para discutir questões de fé e adoração. Nele Orígenes aparece como líder autoritativo da discussão. Foi encontrado junto à outra obra de Orígenes – Peri Pascha (Sobre a Páscoa) – em um de papiros encontrados na cidade de Tura, Egito.

 

(121) Esta citação foi extraída de [Malaty, p. 271-273], que traz uma transcrição da edição de Butterworth/Koetschau. Por alguma razão ignorada, a edição de Phillip Schaff não traz o livro IV integralmente, mas apenas a parte onde o texto latino de Rufino tem um equivalente grego preservado em Philocalia Gnostica.

 

(122) Extraído de [Grillmeier, parte III, cap. III, p. 406]. A referência direta para o original é Patrologia Graeca, vol. LXXXVI, cols. 232b-236b.

 

 

16 – Orígenes e o V Concílio

 

Afinal qual foi o peso do V Concílio Ecumênico na condenação de Orígenes? Não é muito difícil encontrar argumentos buscando diminuir a autoridade do Concílio de 553, seja pela, entre outras coisas, pouca participação dos bispos do ocidente (123), pelo fato de papa ter sido coagido, pela ausência de uma condenação explícita ao origenismo nas atas do concílio. A maioria deles deriva de um artigo publicado por Franz Diekamp (124) que foi transmitido indiretamente a muitos pela Enciclopédia Católica (125). Outros estudiosos como [Bury, cap. XXII, p. 383, nota 5] e [Crouzel, cap. IX, p. 178] também se valeram desse artigo, em especial o último, que mostra um viés para defender Orígenes como ortodoxo. Por outro lado, outra safra de historiadores (126) defende, sim, que Orígenes tenha sofrido condenação e, baseando-se neles e nas fontes primárias aqui expostas, muitas fraquezas em seus argumentos são assinaladas. Por exemplo, tomando o que é dito na Enciclopédia Católica.

 

1.    É certo que o quinto concílio geral foi convocado exclusivamente para tratar com a questão dos Três Capítulos e que nem Orígenes ou o origenismo foram a causa dele.

 

Pode ser que quando Justiniano já tinha em mente a convocação do Concílio para tratar dos Três Capítulos, a chegada de uma delegação palestina tenha lhe dado uma razão a mais. De qualquer forma, historiadores da Alta e Baixa Idade Média (Evágrio Escolástico, Cirilo de Citópolis, Teófanes Confessor, Jorge Cedreno) dão ambas as questões como pertencentes ao Concílio. A ênfase que cada cronista dá a cada depende da importância pessoal que tinha para ele. Não é a toa que o palestino Cirilo coloca o origenismo em realce, ao passo que o bispo africano Vitor de Tonena é silente sobre ele (127).

 

2.    É certo que o concílio abriu em 5 de maio, 553, apesar dos protestos do Papa Vigílio, que, embora em Constantinopla, recusou-se a comparecer a ele, e nas oito sessões conciliares (de 5 de maio a 2 de junho) apenas a questão dos Três Capítulos é tratada nas Atas que possuímos.

 

O nome de Orígenes é explicitamente citado numa das atas. Houve suspeitas por alguns autores de que isso fosse uma inserção posterior, mas, como observou Hefele (Hist. Councils, Vol. iv., p. 336. Em nota do mesmo link). Todas elas são fracas. E a principal dificuldade delas é ter de explicar a presença do rumor da condenação de Orígenes desde os tempos de Justiniano (128).

 

3.    Finalmente, é certo que apenas as Atas a respeito da questão dos Três Capítulos foram submetidas ao papa para sua aprovação, que foi dada em 8 de dezembro, 553, e 23 de fevereiro, 554.

 

Não é o que é dito por Evágrio Escolástico. A condenação de Orígenes fora aprovada até antes de as discussões quanto aos Três Capítulo começarem.

 

4.    É um fato que os Papas Vigílio, Pelágio I (556-61), Pelágio II (579-90), Gregório, o Grande (590-604),  ao tratarem do concílio, lidam apenas com os Três Capítulos, não fazendo nenhuma menção do origenismo e falam como se não soubessem de sua condenação.

 

Justamente porque os Três Capítulos constituíam a questão problemática no ocidente, a ponto de provocar um cisma da diocese de Aquileia. A condenação ao origenismo, por sua vez, não encontrou resistência. Vale lembrar que Cassiodoro declara ter Vigílio realmente condenado Orígenes (não deixa claro se foi em 543 ou 553) e que Pelágio I, como vimos, estava envolvido com a condenação de 543, em seus tempos de aprocrisário.

 

5.    Deve-se admitir que antes da abertura do concílio, que fora postergada pela resistência do papa, os bispos já reunidos em Constantinopla tiveram de analisar, por ordem do imperador, uma forma de origenismo que não tinha nada em comum com Orígenes, mas que era professada, como sabemos, por um dos partidos origenistas na Palestina. Os argumentos em corroboração desta hipótese podem ser encontrados em Dickamp (op. cit., 66-141).

 

Meia-verdade. Boa parte dos anátemas contra Orígenes atribuídos (em outro documento) ao V Concílio possuem passagens correspondentes em De Principiis, mesmo na versão “suavizada” de Rufino. O anátema X (“ressurreição esférica”) não é encontrado em nenhum escrito remanescente de Orígenes. Os anátemas VI, VII, VIII, IX, XII e XIII  trazem uma doutrina de salvação que distingue Deus, o Verbo, de Cristo, que seria uma mente [nous] que não sofreu um processo de queda como as demais [Meyendorff, p. 54-55], inexistindo uma real encarnação do Verbo. As doutrinas de De Principiis, embora deem origem parecida para a parte humana de Cristo, não chegavam a fazer separação radical entre o Verbo e Jesus. Tanto no linguajar quanto na concepção, esses anátemas se referem a uma doutrina pós-origenista constante em outros autores como Evágrio Pôntico, cujos escritos foram publicados já em meados do século XX, não tendo Dickamp chance de lidar com eles, nem os editores da Catholic Encyclopedia. Assim, os anátemas do V Concílio não se referem a um origenismo totalmente “falso”, mas a uma cria genuína dele, feita a partir da transformação da teologia investigativa de De Principiis em outra mais dogmática. É esperado, portanto, que o Concílio atacasse conceitos tanto da criatura como do criador.

 

Uma das defesas que podem ser dadas para Orígenes é separar o teólogo investigativo do comentarista e apologista. Assim fez Pânfilo, Jerônimo (em algum grau) e Cassiodoro. Em tempos recentes, Henri Crouzel se mostra o maior entusiasta dessa linha de ação, reunindo tudo o sobrou da obra de Orígenes para montar um retrato o mais complexo possível dele. Conforme novas obras sejam desenterradas de algum ermo lugar, talvez um quadro ainda mais paradoxal surja.

 

6.    Os bispos certamente subscreveram aos quinze anátemas propostos pelo imperador (ibid., 90-96); e um origenista confesso, Teodoro de Citópolis, foi forçado a se retratar (ibid., 12-129); mas não há prova que a aprovação do papa, que se encontrava na ocasião protestando contra a convocação do concílio, foi solicitada.

 

O papa não protestou contra a condenação a Orígenes feita em 543. Aliás, nenhum dos patriarcas. O ponto realmente nevrálgico era a questão dos Três Capítulos.

 

7.    É fácil de entender como essa sentença extra-conciliar foi mal interpretada num período posterior como um decreto do verdadeiro concílio ecumênico.

 

É mais fácil ainda entender o conflito daqueles que querem resgatar Orígenes (ou pelo menos parte dele) para a ortodoxia e ao mesmo tempo têm dificuldade em peitar a decisão de um Concílio. As estratégias vão desde remover a autoridade do V Concílio até a dissociação de Orígenes do objeto da condenação. Ambos os extremos apresentam certa justificativa e algumas dificuldades. A principal causa do Concílio – a questão dos Três Capítulos – teve, de fato, forte interferência política de Justiniano, mas seu argumento teológico era válido, já que teólogos acusados tinham, sim, um viés nestoriano. Orígenes não era apenas o que os anátemas condenaram; contudo, algo dele estava lá.

 

O efeito imediato do V Concílio não foi a suposta reviravolta nos rumos que a cristandade trilhava desde os tempos dos mártires. Muito pelo contrário, seu efeito foi bem mais pífio do que muitos espiritualistas gostariam que fosse (ou de admitir):

 

A condenação do origenismo em 553 não teve o eco de alcance mundial que a disputa dos Três Capítulos criaria. A disputa foi bem sucedidamente decidida em particular com os monges afetados antes e, dentro desse grupo, especialmente os monges da Palestina. Mesmo lá, ele afetou predominantemente, conforme os princípios do evagrianismo ascético, apenas uma classe, na verdade um exótico grupo de monges, que após uma dura praktike estavam treinados para a theoria e, após essa preparação, confessavam a extrema cristologia evagrianista. Contudo, é adequado notar a explosiva natureza dessa posição. Foi apenas no século sexto que ela teve efeito, como os cânones de 553 e, posteriormente, nossas exposições sobre o patriarcado de Jerusalém mostrarão. 

 

[Grillmeier, parte III, cap. III, p. 408]

 

Em longo prazo, a consequência mais infeliz do Concílio foi ter acelerado o processo de perda do “Orígenes histórico”, que já se iniciara no século IV. Já nessa época passou a predominar um “Orígenes lembrado”, que não era mais visto como alguém que tentou dar consistência lógica à teologia cristã, a fim de combater o assédio de hereges gnósticos e marcionistas, além angariar o respeito de filósofos pagãos. Os gnosticismo e marcionismo já eram declinantes e, com o cristianismo no poder, não era mais preciso obter respeito de pagãos, bastava coagi-los. Por outro lado, novas e poderosas dissidências surgiram e que, devido a uma ou outra semelhança superficial, passaram a ser associadas ao alexandrino, embora ele talvez as combatesse caso fosse contemporâneo.

 

O processo de perda deve ter se iniciado com a condenação do patriarca alexandrino Teófilo, na virada entre os séculos IV e V. No arranca-rabo entre Jerônimo e Rufino, apresentam-se menções a diálogos e cartas que hoje não existem mais. Parte das obras pode, sim, ter se perdido devido a sucessivas séries de condenações. O feliz achado do “Diálogo de Heráclides” e “Sobre a Páscoa” em 1941, numa caverna da localidade de Tura, Egito, ao sopé de um mosteiro grego abandonado, ocorreu em circunstâncias que reforçam essa tese. Os códices estavam escritos em letra uncial cóptica do século VII – indicando que mesmo depois do V Concílio, Orígenes ainda era copiado -, porém com as capas removidas, talvez para reutilização. Isso seria um sinal de que os monges os teriam descartado como material herético (ou lixo), em vez de protegê-los de alguma perseguição (129).

 

A destruição não deve ter sido sistemática e arrasadora, mas uma gradual extinção dos códices antigos que não eram repostos por novos. Quando os livros eram feitos à mão e em edições limitadas, bastava simplesmente deixar de copiá-los para que a ação corrosiva do tempo, o descuido, o desinteresse, ou o puro e simples azar fizessem o resto (130).

 

Fócio, patriarca de Constantinopla no século IX, escreveu famosa coletânea de resenhas – Myriobiblon ou Biblioteca – dedicadas a seu irmão, quando era embaixador bizantino junto à corte árabe dos Abássidas. Nela constam obras de teólogos cristãos, escritores pagãos, oradores, gramáticos, sendo que várias delas não chegaram até nós. Na oitava resenha, lê-se:

 

Lidos os quatro livros de Sobre os Primeiros Princípios de Orígenes. O primeiro lida com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Nesse, suas declarações são frequentemente blasfemas; assim ele declara que o Filho foi criado pelo Pai, o Santo Espírito pelo Filho; que o Pai permeia todas as coisas existentes, o Filho apenas as que são dotadas de razão, o Santo Espírito apenas os que estão salvos. Também faz outras estranhas e ímpias declarações, entregando-se a frívolas conversas sobre a migração de almas, as estrelas sendo vivas e coisas similares. O primeiro livro é repleto de ficções sobre o Pai, Cristo (como ele chama o Filho), o Espírito Santo e as criaturas dotadas de razão. No segundo livro, ele trata do mundo e das coisas criadas. Assevera que o Deus da Lei e dos profetas, do Antigo e Novo Testamento, é um e o mesmo; que havia o mesmo Espírito Santo em Moisés, no resto dos profetas e nos Santos Apóstolos. Posteriormente discute a Encarnação do Salvador, a alma, a ressurreição, o castigo e as promessas. O terceiro livro lida com o livre-arbítrio; como o diabo e os poderes hostis, segundo as Escrituras, empreendem guerra contra a humanidade; que o mundo foi criado e é perecível, tendo tido um começo no tempo. O quanto livro trata da consumação final, da divina inspiração das Escrituras, e da maneira correta de lê-las e compreendê-las.

 

Não se sabe se Biblioteca foi compilada a partir de livros lidos antes de sua partida para o exterior ou ela também contém obras que foram preservadas e traduzidas pelos árabes. O fato é que Fócio – cerca de três séculos após o V Concílio - ainda dispunha de um exemplar de De Principiis que não pertencia à tradição de Rufino.

 

Pelo menos três eventos da Idade Média assinalaram a perda definitiva desse exemplar e de outras obras de Orígenes:

 

1.    A destruição da Biblioteca de Cesareia – Fundada pelo próprio Orígenes e incrementada por seu discípulo Pânfilo, tornou-se afamada biblioteca cristã do fim da Antiguidade. Foi importante centro produtor de Bíblias  no século IV, quando contou com a presença de importantes pais da Igreja, como Eusébio e Jerônimo. Foi destruída por volta de 637, pela devastação ocorrida e Cesareia durante a conquista árabe. O exemplar da Bíblia multilíngue de Orígenes, a Hexapla, deve ter sido perdido aí, pois, devido ao seu tamanho colossal, nunca foi copiado integralmente.

 

2.    A Quarta Cruzada – Planejada originalmente contra o Egito, interesses comerciais dos venezianos – responsáveis pelo transporte das tropas - acabaram envolvendo os cruzados em um conflito dinástico  em Constantinopla. O resultado foi um saque de três dias à capital bizantina, que alijou a até então intocada Nova Roma de seus principais tesouros.

 

3.    A conquista mongol de Bagdá em 1257 – Apesar de um começo pouco amistoso com o ocidente (131), os árabes se tornaram grandes difusores do antigo saber grego. Porém, quando o esplendor de seu império passou, viram-se assolados por uma série de invasores. Um deles, Hulagu Khan, descendente do famoso Gêngis Khan, após uma carnificina de 500 mil vítimas, lançou os manuscritos da biblioteca municipal no rio Tigre.

 

Esses dois últimos episódios assinalaram o fim de boa parte do acervo de que Fócio se valeu (132). A conclusão foi a aniquilação de diversas obras de autores que não foram o suficiente copiados em outros lugares para sobreviver a um infortúnio local. Alguns manuscritos escaparam por um triz: “Contra Celso” de Orígenes, por exemplo, sobrevive completo em apenas um manuscrito do século XIII, pertencente à biblioteca do Vaticano. Outros fragmentos da obra são encontrados na coletânea de Basílio e Gregório, Philocalia Gnostica, redigida no século IV, mas cujos manuscritos mais antigos datam do século X. As edições modernas desse livro dependem exclusivamente da análise crítica dessas duas tradições (133).

 

Com uma visão cada vez mais nebulosa de Orígenes, um novo enfoque de sua figura foi criado com o advento do espiritualismo moderno: o de um mártir reencarnacionista. Daí vêm as perguntas: baseando-se naquilo que sobrou de sua obra, o quanto esse retrato de Orígenes corresponde ao do passado? O quanto é invenção, distorção ou pura ignorância? Bem, passemos ao próximo capítulo.

 

Notas:

(123) Vigílio queria divisão meio a meio entre membros do oriente e do ocidente, porém  Justiniano forçou uma divisão por patriarcados (Roma, Constantinopla, Antioquia, Jerusalém e Alexandria), o que deixou o papa em evidente desvantagem. Para piorar, o boicote dos bispos ocidentais nem permitiu que completasse sua cota. Cf. Catholic Encyclopedia – Second Council of Constantinople.

(124) Die origenistichen Streitigkeiten, Munster, 1899. Vale ressaltar que Meyendorff [p. 221, nota nº 10] também usa esse mesmo artigo para corroborar justamente a condenação de Orígenes, tendo Diekamp assinalado o testemunho de contemporâneos, de autores medievais e até do papa Nicolau I (858-867) em favor de uma condenação integral (Três Capítulos e origenismo) feita pelo Concílio. Infelizmente não disponho dele para verificar, mas podem ter ocorridos usos parciais desse artigo feitos por grupos de opiniões opostas.

(125) Vide notas (94) e (95). Kersten, também nas “Considerações Finais” de seu “Jesus Viveu na Índia”, possui um parágrafo  que parece ter sido adaptado de Catholic Encyclopedia, “Origen and Origenism”:

Na verdade, os documentos que lhe foram apresentados (os assim-chamados "Três Capítulos") versavam apenas sobre a disputa a respeito de três eruditos que Justiniano, há quatro anos, havia por um edito declarado heréticos. Nada continham sobre Orígenes. Os Papas seguintes, Pelágio I (556-561), Pelágio II (579-590) e Gregório (590-604), quando se referiram ao quinto Concilio, nunca tocaram no nome de Orígenes.

(126) Cf. [Meyendorff, p. 48-49]

(127) Vítor de Tonena não fala da questão origenista explicitamente, mas não devia desconhecê-la, pois cita a defesa dos Três Capítulos feita por Facundo de Hermiano [Victoris Tonnennensis, p. 202].

(128) Traduzindo o texto da Christian Classics Ethereal Library

 

XI Cânon do V Concílio                     

 

Se alguém não anatematizar Ário, Eunônio, Macedônio, Apolinário, Nestório, Eutíquio e Orígenes, bem como seus ímpios escritos, como também todos os heréticos já condenados e anatematizados pela Santa, Católica e Apostólica Igreja, e pelos supracitados quatro Santos Sínodos e [se alguém não anatematizar igualmente] todos os que sustentaram e sustêm ou que em sua impiedade persistem em suster até o fim a mesma opinião daqueles heréticos já mencionados: que seja anátema.

 

Hefele (Hist. Councils, vol. IV, p. 336)

 

Halloix, Garnier, Basgane, Walch e outros supõem, e Vincenzi sustém com grande zelo, que o nome de Orígenes é uma inserção posterior nesse anatematismo, porque (a) Teodoro Ascidas, o origenista, foi um dos mais influentes membros do Sínodo e certamente teria evitado a condenação de Orígenes; além disso, (b) porque nesse anatematismo apenas tais heréticos deveriam ser nomeados como tendo sido condenados nos quatro primeiros Sínodos Ecumênicos, que não é o caso de Orígenes; (c) porque esse anatematismo é idêntico ao décimo na ?µ?????a do imperador, mas nesta última o nome de Orígenes está ausente e, finalmente, (d) porque Orígenes não pertence ao grupo dos heréticos a quem o anatematismo se refere. Os erros dele eram bem diferentes.

 

Todas essas considerações me parecer ser de força insuficiente, ou mera conjectura, para fazer uma alteração no texto e arbitrariamente remover o nome de Orígenes. Quanto a objeção em relação a Teodoro Ascidas, sabe-se que este pronunciara uma anátema formal contra Orígenes e certamente fez o mesmo desta vez, se o imperador assim desejou e assim parecia aconselhável (*). A segunda e quarta objeções têm pouco peso. Quanto à terceira (c), é bem possível que ou o imperador subsequentemente foi além do estava em sua ?µ?????a, ou que os bispos no quinto Sínodo, de comum acordo, adicionaram Orígenes, seja por um ou outro antiorigenista em seu meio. O que, contudo, principalmente nos leva a manter o texto é: que a cópia das Atas sinodais restantes nos arquivos romanos, que tem a mais alta credibilidade e foi provavelmente preparada para o próprio Vigílio, contém o nome de Orígenes no décimo primeiro anatematismo; e (b) que os monges do nova Lama (**) na Palestina, que são conhecidos por seres zelosos origenistas, retiraram-se da comunhão eclesiástica dos bispos da Palestina depois destes terem subscrito as Atas do quinto Concílio. No anátema contra os Três Capítulos, esses origenistas poderiam encontrar muito pouco fundamento para tal ruptura com seus amigos e seu antigo colega Ascidas; isso só poderia ser pelo ataque do sínodo ao seu querido Orígenes. (c) Finalmente, apenas baseando-se que o nome de Orígenes realmente aparecia no décimo primeiro anatematismo podemos explicar o antigo rumor grandemente espalhado de que o Sínodo anatematizou Orígenes e os Origenistas.

 

Notas:

(*) Aqui, refere-se ao fato de Ascidas ter assinado o sínodo local de 543. Em Excursus on the XV. Anathemas Against Origen, apresenta-se uma fala atribuída a ele na quinta sessão do Concílio: “E encontramos muitos outros que foram anatematizados depois da morte, e também mesmo Orígenes; e se alguém recuar até os tempos de Teófilo, de abençoada memória, ou mais além, encontrá-lo-ia anatematizado depois da morte; o que também agora sua santidade e Vigílio, o religiosíssimo Papa de Roma, fez em seu caso”.

 

(**)Assim consta no original em inglês. Ignoro se foi algum erro de digitação.  

Hefele, curiosamente, crê que a relação do XV anátemas pertença ao sínodo de 543, ainda que afirme não ter como provar contundentemente. Apesar de argumentos em favor de uma real condenação de Orígenes no V Concílio serem mais sólidos, ainda é comum encontrar historiadores desejosos em proteger Orígenes da condenação. Por exemplo, Crouzel [cap. IX, p.178] e B. Drewery [p. 275] alegam que o nome de Orígenes seja uma inserção, pois não segue a ordem cronológica dos demais nomes listados. Bem, eles poderiam estar ordenados não por ordem de “hereges”, mas de controvérsia. Como o sínodo foi contemporâneo a uma crise origenista, normal que ela viesse por último. Também comentam a ausência nome de Orígenes na ?µ?????a de Justiniano.

(129) Vide a introdução de Robert Daly a Dialogues with Heraclides. Um outro achado dessa descoberta foram fragmentos de Comentários aos Romanos, que melhoraram muito a avaliação feita da tradução de Rufino da mesma obra.

(130) Vide [Ehrman (2005), Introdução, p.25]:

 

Nesse sentido, devo assinalar que a Maioria dos registros do passado – milhões e milhões de registros, de cada período do passado – não chegou até nós, estando perdida para a posteridade. (...) Ainda assim, no entanto, temos a nosso alcance uma parcela muito pequena das fontes que acaso terão existido naquele momento. Algumas das fontes não chegaram até nós certamente foram destruídas pelos cristãos que considerava ofensivo ou equivocado seu conteúdo. Mas a maioria não sobreviveu simplesmente porque em algum momento do passado ninguém se deu ao trabalho de continuar a copiá-las.

 

Leia também [Báez, parte I, cap. X].

 

(131) Vale ressaltar que NÃO está incluída aqui a suposta destruição da biblioteca de Alexandria atribuída, também, à expansão islâmica. Tal fato tem sua historicidade muito questionada e fontes pouco sólidas. O mais provável é que a biblioteca tenha sido destruída aos poucos por guerras internas da Roma ainda pagã, por cristãos fanáticos comandados pelo patriarca Teófilo no começo do século V e por diversos terremotos que assolaram a cidade ao longo da história. Vide [Báez, parte I, cap. IV].

 

(132) Para uma descrição detalhada (e dolorosa) da destruição de livros na Idade Média, vide [Báez].

 

(133) Dado extraído da introdução à edição inglesa de Contra Celso feita por Henry Chadwick, item VI, p. XXIX. Curiosamente, essa introdução data o papiro encontrado de Diálogo com Heráclides como sendo do século VI.

 

 

17 – Pretérito Imperfeito: Quando o passado não é exatamente aquilo que se gostaria

 

Abrindo este capítulo com uma leitura que dará insumos para a discussão que virá em seguida.

 

Dentro e fora da história

 

(...)

 

Ora, a história é a matéria-prima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas, tal como as papoulas são a matéria-prima para o vício da heroína. O passado é um elemento essencial, talvez o elemento essencial nessas ideologias. Se não há um passado satisfatório, sempre é possível inventá-lo. De fato, na natureza das coisas não costuma haver nenhum passado completamente satisfatório, porque o fenômeno que essas ideologias pretendem justificar não é antigo ou eterno mas historicamente novo. Isso é válido tanto para o fundamentalismo religioso em suas versões atuais – a versão do aiatolá Khomeini de um Estado islâmico não é anterior ao início dos anos 70 – quanto para o nacionalismo contemporâneo. O passado legitima. O passado fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito a comemorar. Eu me lembro de ter visto em algum lugar um estudo sobre a civilização antiga das cidades do vale do Indus com o título Cinco mil anos de Paquistão. O Paquistão nem mesmo era cogitado antes de 1932-3, quando o nome foi inventado por alguns militantes estudantis. Apenas se tornou uma demanda política séria a partir de 1940. Como Estado apenas existiu a partir de 1947. Não há nenhuma evidência de haver mais conexão entre a civilização de Mohejo Daro e os atuais governantes de Islamabad que entre a Guerra de Troia e o governo de Ancara, que no momento reivindica o retorno, ainda que apenas para a primeira exibição pública, do tesouro de Schliemann do rei Príamo de Troia. Mas, de certo modo, 5 mil anos de Paquistão soam melhor do que 46 anos de Paquistão.

 

Nessa situação os historiadores se veem no inesperado papel de atores políticos. Eu costumava pensar que a profissão de historiador, ao contrário, digamos, da de físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora sei que pode. Nossos estudos podem se converter em fábricas de bombas, como os seminários nos quais o IRA aprendeu a transformar fertilizante químico em explosivos. Essa situação nos afeta de dois modos. Temos uma responsabilidade pelos fatos históricos em geral e pela crítica do abuso político-idelógico da história em particular.

 

(...)Recentemente, fanáticos hindus destruíram uma mesquita em Aodhya, a pretexto de que a mesquita havia sido imposta aos hindus por Bahur, o conquistador muçulmano mongol, em um local particularmente sagrado por ser onde se deu o nascimento do deus Rama. Meus colegas e amigos nas universidades indianas publicaram um estudo demonstrando que (a) ninguém até o século XIX tinha sugerido que Aodhya fosse o local de nascimento de Rama e que (b) era quase certo que a mesquita não fora construída no tempo de Bahur. Gostaria de poder dizer que isso teve muitas consequências para o crescimento do partido hindu que provocou o incidente, mas pelo menos cumpriram seu dever como historiadores, em benefício daqueles que podem ler e estão expostos à propaganda da intolerância, hoje e no futuro. Vamos cumprir o nosso.

 

Poucas ideologias de intolerância estão baseadas em simples mentiras ou ficções para as quais não há nenhuma evidência. Afinal de contas, houve uma batalha de Kosovo em 1389, os guerreiros sérvios e seus aliados foram derrotados pelos turcos, e isso deixou cicatrizes fundas na memória popular dos sérvios, embora não se depreenda que isso justifique a opressão dos albaneses, que hoje representam 90% da população da região. A Dinamarca não reivindica a enorme área da Inglaterra oriental, povoada e governada por dinamarqueses antes do século XI, que continuou a ser conhecida como Danelaw e cujas aldeias ainda possuem nomes filologicamente dinamarqueses.

 

O abuso ideológico mais comum da história baseia-se antes em anacronismos que em mentiras. O nacionalismo grego recusa à Macedônia até mesmo o direito ao seu nome a pretexto que toda a Macedônia é essencialmente grega e parte de um Estado-nação grego, presumivelmente desde que o pai de Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, se tornou o monarca das terras gregas da península balcânica. Como tudo sobre a Macedônia, isso está longe de ser um assunto meramente acadêmico, mas é preciso um bocado de coragem para um intelectual grego dizer que, em termos históricos, isso é tolice. Não havia nenhum Estado-nação grego ou nenhuma outra entidade política isolada para os gregos do século IV a.C., o Império Macedônico em nada se parecia com um Estado grego ou outro Estado-nação moderno, e em todo o caso é altamente provável que os gregos antigos considerassem os monarcas macedônicos como bárbaros e não como gregos, ainda que sem dúvida fossem muito educados ou cautelosos para dizer isso. Além disso, historicamente, a Macedônia é uma mistura tão inextricável de etnias – não foi à toa que deu seu nome a saladas de frutas francesas (macédoine) – que nenhuma tentativa de identificá-la com uma única nacionalidade seria correta. Por sua vez, os extremos do nacionalismo macedônio emigrante também deveriam ser desqualificados pelo mesmo motivo, bem como todas as publicações na Croácia que de algum modo tentam transformar Zvonimir, o Grande, em ancestral do presidente Tudjman. Mas é difícil ser contrapor aos inventores de uma história nacional de livros didáticos, embora existam historiadores na Universidade de Zagreb, os quais me orgulho de ter como amigos, que têm coragem bastante para fazer isso.

 

Essas e muitas outras tentativas de substituir a história pelo mito e a invenção não são apenas piadas intelectuais de mau gosto. Afinal de contas, podem determinar o que entra nos livros escolares, como sabiam as autoridades japonesas quando insistiram em uma versão asséptica da guerra japonesa na China para uso em salas de aula do Japão. Mito e invenção são essenciais à política de identidade pela qual grupos de pessoas, ao se definirem hoje por etnia, religião ou fronteiras nacionais passadas ou presentes, tentam encontrar alguma certeza em um mundo incerto e instável, dizendo: “Somos diferentes e melhores que os Outros”. São elas que nos preocupam nas universidades porque as pessoas que formulam aqueles mitos e invenções são cultas: professores primários laicos ou clericais, professores de colégio ou universidade (não muitos, espero), jornalistas, produtores de rádio ou televisão. Hoje, a maioria delas terá ido para a universidade. Não se enganem a respeito. História não é memória ancestral ou tradição coletiva. É o que as pessoas aprenderam de padres, professores, autores de livros de história e compiladores de artigos para revistas e programas de televisão. É muito importante que os historiadores se lembrem de sua responsabilidade, que é, acima de tudo, a de se isentar das paixões de identidade política – mesmo se também as sentirmos. Afinal de contas, também somos seres humanos. (134)

(...)

[Hobsbawm, cap. I, p. 17-20]

 

Bem, os que chegaram até aqui já puderam constatar que o objetivo deste artigo é desmascarar o mito histórico da condenação da reencarnação no II Concílio de Constantinopla. De certa forma, ele é composto de uma mistura de duas situações trazidas por Hobsbawn: mentira pura e anacronismo. A primeira parte corresponde à suposta predominância da reencarnação no credo ortodoxo até o século VI, à participação da imperatriz Teodora, à suposta resistência do Papa em condenar Orígenes e à crença de que a iniciativa partiu exclusivamente do imperador Justiniano, quando o processo foi, na verdade, iniciado de baixo para cima por monges palestinos. O anacronismo surge quando se toma Orígenes como um precursor do espiritualismo moderno, desconsiderando-se diferenças imensas. No que diz respeito apenas aos espíritas kardecistas,  não sei se ficaria tudo bem para eles em considerar que as almas foram inicialmente criadas racionais e perfeitas em vez de simples e ignorantes, que as estrelas e planetas são seres racionais e não outras moradas do Pai, que Deus não seja onipotente, que se leva uma era inteira para reencarnar, ou cogitar – como alega Jerônimo – uma possibilidade de metempsicose. Seria aceitável para eles tratar Deus como um ser trino e assumir que uma de suas hipóstases, o Verbo, se uniu a uma de suas criaturas, ou considerar a “ressurreição espiritual” não como o descarte do corpo material, mas a transformação dele em outra natureza? A consumação panteísta que se daria após essa ressurreição e que era apregoada pelo origenismo do século VI não conflitaria com a questão 14 do Livro dos Espíritos? Se eu pudesse trazer de um “túnel do tempo” um dos monges do Nova Laura para dialogar com um espírita moderno, será que cada um não acharia o outro meio esquisitão (ou herético)? “Ah, mas eles também criam em uma segunda chance para os pecadores!”. Concordo, assim como outros universalistas da antiguidade, mas bem menos heterodoxos e partidários da vida única (135). Não adianta pegar uma semelhança superficial e fingir que não vê resto, pois é altamente improvável que espíritas aceitassem o pacote inteiro da teologia de De Principiis e muito menos os desenvolvimentos de Evágrio Pôntico e Bar Sudaili.

 

Então por que de vez em quando se esbarra com algum deles apontando para um partidário da Igreja Católica dizendo: “vocês tiraram a reencarnação do cristianismo ao condenar Orígenes!”? Simples, porque eles aprendem essa tese com outros reencarnacionistas. Por experiência pessoal, infelizmente vejo que, para o “espírita médio”, os fatos que ocorreram no cristianismo primitivo e posterior não são aprendidos em obras acadêmicas dedicadas ao tema, mas de outros autores reencarnacionistas. Quantos será que folhearam algum capítulo de De Principiis, Kephalaia Gnostica ou Hierotheos ou se debruçaram em autores dedicados ao tema como Clark, Crouzel, os artigos da série Origeniana, etc.? Será que seu entendimento dos meandros da corte de Justiniano e da sequência de fatos que levou à segunda crise origenista foi auferido da leitura de Cirilo de Citópolis, Evágrio Escolástico, Liberato de Cartago, Facundo de Hermiano, João de Éfeso, João Lídio, Procópio de Cesareia ou Malala? Ou não leem historiadores modernos e mais acessíveis como Bury e Evans? Será que reclamam por muitos textos estarem em língua inglesa, logo eles membros de um segmento religioso que tem fama de ser mais academicamente instruído?

 

As verdadeiras fontes dos boatos propagados vêm de autores de obras cujo caráter é mais jornalístico que acadêmico (como Prophet, Chaves, Kersten), de místicos (Bizemont, Brunton, Prabhupada) ou até mesmo de Ph.D’s -  muitos sem carreira como historiador (Severino Celestino – dentista, John Algeo - filólogo); mas todos reencarnacionistas e com graus variados de distância das fontes primárias, quando dão alguma referência (136). De que adianta, então, ler apenas livros que corroboram as expectativas de seu público-alvo e não dialogam entre si pelo confronto de argumentos, para ver qual é a melhor defesa? Assim, se alguém se gaba por diversos autores não espíritas defenderem esse mito, pode não ter noção da troca de “seis por meia-dúzia” que estava fazendo. Afinal a “história” para o público espírita, neste caso, é o que seus pares ou afins divulgam.

 

Não se pode esquecer, contudo, que a condenação à reencarnação no século VI é um “mito secundário”. Em outras palavras, ele existe para explicar outra alegação: a crença de que a maioria dos cristãos até então era reencarnacionista. Essa tese se encontra expressa, por exemplo, nas obras de Chaves e Severino Celestino citadas no capítulo VIII. Como a reencarnação não é historicamente aceita por católicos e protestantes, é natural supor que ela foi proibida em algum instante. O II Concílio de Constantinopla foi apenas um marco que se tornou o preferido pelos autores espiritualistas. Assim, uma nova linha de investigação deve ser aberta: verificar se cristianismo primitivo – i.e., o de bem antes de Niceia -  era adepto ou não da reencarnação. Afinal, o que era o cristianismo da era apostólica?

 

Notas:

 

(134) Eric Hobsbawm é um historiador de orientação marxista e, apesar de não chegar ao ponto de negar as catástrofes promovidas pelo socialismo real do século XX, seu viés às vezes embaça seu senso crítico e passa meio que batido por elas. Bem, dou-lhe um desconto por também “ser humano”, como ele mesmo lembrou e, parodiando, “faça o que ele diz, mas não o que ele faz”. Curiosamente, o capítulo X de Sobre História traz críticas a versões de pensamento socialista – chamadas por ele de “vulgar” – que eu adoraria que antigos professores de historia meus do ensino médio lessem. Mas o que de fato poderia ser feito se eu voltasse no tempo e jogasse esse livro no colo de meu “eu mais jovem”? Poderia me tornar um chato “bem municiado” em sala de aula, mas, como tinha de passar de ano e no vestibular, teria de colocar na prova o que o mestre gostava de ler. Enfim, as humanas não servem para desenvolver o senso crítico dos estudantes, mas, sim, para que pensem igual aos professores dessas disciplinas e aplaquem a frustração deles causada pela revolução que não veio.

 

(135) Gregório Nissa é um desses nomes e, também, Teodoro de Mopsuéstia, um dos envolvidos nos Três Capítulos.

 

(136) O leitor pode reparar que nem todos os nomes foram tratados aqui. Alguns eu descobri em outras fontes virtuais e debates. Bhaktivedanta Swami Prabhupada é um  hare krishna autor do livro Coming back – The science of reincarnation (lançado no Brasil com o nome “Retornando – A ciência da reencarnação” pela Bhaktivedanta Book Trust) e que pode ser lido em uma versão on line. Nesse livro, Orígenes aparece em dois pequenos trechos bem suspeitos do capítulo I:

 

In the third century A.D., the theologian Origen, one of the fathers of the early Christian Church, and its most accomplished Biblical scholar, wrote, "By some inclination toward evil, certain souls ... come into bodies, first of men; then through their association with the irrational passions, after the allotted span of human life, they are changed into beasts, from which they sink to the level of... plants. From this condition they rise again through the same stages and are restored to their heavenly place."(6) [lacunas do autor]

 

(6) (De Principiis, Book III, Chapter 5. Ante-Nicene Christian Library, editors, Alexander Roberts and lames Donaldson. Edinburgh: Clark, 1867)

 

Quem quiser ler o capítulo V do III livro da edição Roberts-Donaldson  de De Principiis, poderá constatar que não há nada que lembre a citação dada. Na verdade, aqui é feito um pastiche de um trecho da carta de Jerônimo a Ávito vista no capítulo III, porém tendo sido removidas a informação do próprio Jerônimo de que se tratava de uma hipótese analisada, muitos menos foram comentadas outras passagens de Orígenes francamente contra a metempsicose. Mais adiante no mesmo capítulo, lança-se a pérola:

 

Under circumstances that to this very day remain shrouded in mystery, the Byzantine emperor Justinian in 553 A.D. banned the teachings of preexistence of the soul from the Roman Catholic Church. During that era, numerous Church writings were destroyed, and many scholars now believe that references to reincarnation were purged from the scriptures. The Gnostic sects, although severely persecuted by the church, did, however, manage to keep alive the doctrine of reincarnation in the West. (The word Gnostic is derived from the Greek gnosis, meaning "knowledge.")

 

As circunstâncias da condenação à pré-existência não estão “envoltas em mistério” tanto assim para quem se dispuser a pesquisar as fontes apropriadas e a remoção da reencarnação nas escrituras é a mesma tese infundada trazida por Noel Langley no capítulo VIII.

 

John Algeo é um teósofo e seu livro Reincarnation explored (editado em português como Explorando a reencarnação, pela Teosófica) consta na seção de teosofia de sua página pessoal, não na acadêmica. Como ele parece ter feito uma alusão a Geddes MacGregor nesse livro, preferi usar esse autor a Algeo.

Devo admitir que, quando acertam, usam obras de especialistas reais como História da Filosofia, de Giovanni Reale  e Dario Antiseri, ed. Paulus, que, embora muito resumida ao tratar de Orígenes (nem há como cobrar muito de uma história de toda a filosofia), passa longe de teses conspiratórias.

 

18 – Cristianismo, versão 1.0

 

Olhando para o panorama das vertentes que se encontravam no cristianismo da primeira metade do século III, quando transcorreu a maior parte da vida de Orígenes, estamos diante de um retrato que lembra mais um mosaico. As discrepâncias hoje existentes nas principais igrejas do cristianismo moderno (católicos romanos, ortodoxos orientais, protestantes e, inclusive,  grupos para-protestantes como adventistas e testemunhas de Jeová) parecem apenas variações de um mesmo tema quando comparadas com as radicais diferenças que ocorriam em grupos autodenominados cristãos do período pré-niceno. Numa ponta, encontravam-se os judeu-cristãos, que guardavam o sábado, praticavam a circuncisão masculina, seguiam estritas leis dietéticas e rejeitavam a pregação de Paulo. Para eles não era possível ser cristão sem antes ser judeu. No outro extremo, estavam os discípulos de Marcião, que, devido a uma leitura literal de passagens “pesadas” do Antigo Testamento, consideram o Iahweh dos judeus um demiurgo inferior e, portanto, Jesus era o enviado do verdadeiro e amoroso Pai apresentado no Novo Testamento para a humanidade. Seu cânon consistia de uma versão editada do evangelho de Lucas – podada de todas as referências à origem judaica de Jesus – e das cartas paulinas. Entre esses dois grupos, havia cristãos similares à maioria atual, a ter o deus judaico de o de Jesus como o mesmo e único, porém subordinando a interpretação da Escritura judaica aos evangelhos através de alegorias, que também suavizavam suas passagens violentas. Atravessando esse espectro, diversas seitas gnósticas ofereciam a libertação deste mundo por meio de um conhecimento (gnosis) secreto revelado por Jesus. Possuíam certa afinidade com o dualismo dos marcionitas, mas, ao contrário deles, partiam para um alegorismo extremado, inclusive no Novo Testamento.

 

Após essa breve exposição, surge um intrincado problema: todos esses grupos se julgavam “o” verdadeiro cristianismo e, como muitos são mutuamente excludentes, não é possível que todos estivessem certos ao mesmo tempo. Vem, então, o desafio de descobrir qual deve ter sido a crença da geração que viveu entre a morte de Jesus e pouco antes da elaboração do texto dos evangelhos. A tarefa é ingrata porque é um período ágrafo, que só pode ser extraído do contexto histórico em que viveram e das referências de registros feitos um pouco depois.

 

Bem, no tempo e no espaço, o cenário em que Jesus cresceu corresponde à Galileia do século I. Nesse ambiente periférico, rural e inculto, ao menos duas das vertentes de cristianismo já podem ser descartadas como candidatas a “original”:

 

Finalmente, os estudiosos levam muito a sério a conclusão a que chegam hoje em dia todos os que se detêm no personagem histórico de Jesus: que ele era um judeu vivendo na Palestina do século I. Tratando-se de relatos sobre o que Jesus disse e fez que não se adaptam de maneira plausível a esse contexto, é praticamente impossível acreditar que sejam historicamente exatos. (…) A título de exemplo, os ensinamentos de Jesus que fazem mais sentido em algum outro contexto provavelmente derivam mesmo desse outro contexto, e não de sua vida.

 

À guisa de exemplo, certos ensinamentos de Jesus encontrados no Evangelho Copta de Tomé e em outros escritos da Biblioteca de Nag Hammadi têm um caráter nitidamente gnóstico. O problema é que não temos qualquer indicação de que o gnosticismo já existisse nas duas primeiras décadas do século I – especialmente nas regiões rurais da Galileia. Esses ensinamentos de teor gnóstico devem provir de tradições posteriores, tendo sido postos na boca de Jesus em algum outro contexto (por exemplo, no século II, em lugares como Egito ou Síria). Isso não quer dizer que devamos descartar todos os ensinamentos contidos em Tomé. Mesmo neste evangelho, por exemplo, Jesus conta a parábola da semente de mostarda, que igualmente relatada (de maneira independente) por Marcos. Nada há de especialmente gnóstico nesse pensamento, que é encontrado em duas fontes independentes, uma das quais muito primitiva. Conclusão? Provavelmente deve ter saído da boca de Jesus.

 

[Ehrman (2005), cap. VI, p. 164-165]

 

Por essas razões, o gnosticismo cristão e marcionismo não devem ser o que se aproximaria da doutrina dos primeiros cristãos. O primeiro por inserir ideias alienígenas ao contexto terreno onde Jesus viveu e pregou, o segundo por querer descartar todo esse contexto.

 

Resta decidir entre um judaísmo estrito e um credo suficientemente eclético para abranger “os gentios”. Para tanto, deve-se extrair dos documentos que falam sobre Jesus aquilo que pode ter sido genuinamente de sua autoria. Pela razão exposta acima, ficam descartados os evangelhos gnósticos e os ditos de Tomé que seguem essa linha. O evangelho de João, por ser protognóstico e apresentar uma versão mais mística de Jesus, é o que, entre os canônicos, menos tem a oferecer dados históricos sobre Jesus. Também ficam de fora os evangelhos da infância e outros também mais preocupados em apresentar uma versão “folclórica” dele, cheia de milagres e vazia de ensinamentos. As cartas neo-testamentárias falam muito da fé em Jesus, mas pouco sobre o que essa personagem disse ou fez. Portanto, o principal material de onde podem ser extraídas informações históricas sobre Jesus é o que está nos evangelhos sinópticos (137) – Mateus, Marcos e Lucas, que ganham por serem mais antigos (em comparação com os demais) e oferecerem um Jesus menos ocultista e mais profeta popular. Conviria, também, complementá-los o com livro de Atos, por ser uma continuação direta de Lucas e dar insights sobre os primeiros cristão, e os ditos não gnósticos de Tomé.

 

Ainda assim é preciso ter em mente que eles não são biografias de Jesus e, sim, livros escritos por homens de fé, logo mais interessados em justificar o credo de suas respectivas comunidades. Além da antiguidade e adequação ao contexto histórico, dois outros fatores costumam ser usados para separar o que pertence à história do que é da fé: a múltipla atestação – mais de uma fonte independente relatando o mesmo – e a preservação de algo que vai de encontro ao que se esperaria dos autores. Por exemplo, Marcos, Paulo e João afirmam que Jesus teve irmãos, logo isso deve ter sido real. João e Marcos dão Nazaré como local de nascimento dele e, como era um local desprestigiado, o relato deles é preferível aos que indicam Belém como terra natal (138).

 

Então, o que as fontes mais antigas (e seu contexto histórico) têm a dizer sobre a relação entre Jesus e o judaísmo de então. Às vezes, pode-se pensar que a rebeldia de Jesus contra a observação tacanha da Lei feita pelos fariseus fosse um sinal de superação de sua origem judaica. Isso não é muito pertinente (139). As queixas quanto ao fato de Jesus exorcizar e curar no sábado não consideram que tal atitude não era exclusiva dele e foi adotada por rabis posteriores. Tratar de pessoas passou a ser considerado salvar vidas, um mandamento que pretere todas as demais regras da Lei. A superioridade da pureza moral (Mc 7:15-19) sobre a ritual não era inédita e pode ser encontrada, por exemplo na Carta de Aristeia (século II a.C.), parágrafo 234

 

E o rei [Ptolomeu] deu-lhe grande louvor e perguntou ao décimo [ancião]: “Qual a mais alta glória?”. E disse ele: “Honrar a Deus, e isso é feito não com ofertas e sacrifícios, mas com pureza de alma e convicção santa, já que todas as coisas são dispostas e governadas por Deus, em conformidade com Sua vontade.”(...)

 

Tanto Arimateia quanto Jesus interpretaram a Lei de forma mais aprofundada que o simples literalismo. Resta saber se esse tipo de interpretação poderia ser eclético o bastante para abarcar gentios. Atente-se que a fala do final Mc 7:19 – “E assim ele considerou puro todos os alimentos” – está mais para um parêntese de Marcos, explicando a sua comunidade gentílica as palavras anteriores, do que um entendimento do próprio Jesus. Dado que o livro de Atos mostra desentendimentos entre os apóstolos que conheceram Jesus em vida e Paulo quanto à necessidade de ser judeu antes de cristão – e isso os cristãos gentios não esconderam – é duvidoso que o galileu tivesse autorizado o fim das restrições dietéticas ou da circuncisão, iniciando a bifurcação entre judaísmo e cristianismo já no princípio. O próprio fato de a pregação paulina ter gerado controvérsias que ultrapassaram o período apostólico mostra que suas inovações não se impuseram de imediato. É provável que seita dos ebionitas, a que Orígenes se refere em [Contra Celso, II, 1]  preservasse um credo mais próximo ao dos primeiríssimos cristãos (140).

 

Sabendo que a leva inicial de convertidos era (e continuou) judia, o próximo passo é determinar que tipo de judaísmo praticava. Infelizmente, não basta ler a atual Bíblia judaica para  abranger tudo o que pensavam, pois a ideia de “cânon judaico” ainda não estava definida no século I. Alguns livros que eram adotados por grupos judaicos do século III a.C. ao I d.C. não entraram para a Bíblia hebraica, mas permaneceram na católica, como Macabeus,  Eclesiástico, Sabedoria, etc., por herança da Septuaginta. Outros, como Enoque e os livros sectários de Qumran, ficaram fora do conjunto de Escrituras “autorizadas” de qualquer grupo posterior. Do ponto de vista histórico, contudo, eles não podem ser ignorados, pois na Palestina dos tempos de Jesus muitas ideias contidas neles circulavam livremente entre os judeus, ou ficavam registradas pelos mesmos. Bem ou mal, eles cobrem a lacuna existente entre o Antigo e o Novo Testamento, desenvolvendo conceitos ainda frágeis no primeiro, mas explícitos no último.

 

Um dos aspectos marcantes do judaísmo intertestamentário foi o desenvolvimento progressivo de uma espécie de dualismo. Não era ao estilo de gnósticos e marcionitas, que opunham um demiurgo inventor deste mundo ao deus bom, mas a oposição ao deus criador feita por um grupo renegado de suas próprias criaturas. Apenas sugerida no que viria a ser o cânon judaico (141), a figura diabólica e seus “anjos caídos” se desenvolvem plenamente nesse período. O Livro de Enoque (142), por exemplo, fala do abandono de um grupo de anjos (os Guardiões) de seus deveres e seu envolvimento com mulheres humanas, que pariram gigantes. Esses gigantes se revelaram antropófagos que passaram a atacar humanos e, por fim, a eles mesmo. Além disso, alguns anjos - como Azazel, Armaros, Barakijal, etc. - ensinavam aos homens artes que os levavam ao pecado, como o fabrico de armas, encantamentos e astrologia. Como o clamor das injustiças chegou ao Criador, Ele reuniu anjos que lhe eram leias (Rafael, Micael, Gabriel) e trancafiou os rebelados até o dia do julgamento final:

 

E a Rafael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e pés e lança-o nas trevas! Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo! Deposita pedras ásperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o permanecer lá para sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz! No dia do grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremedal de fogo!

 

Enoque 10:3-4

 

(...)

 

A Micael disse o Senhor: “Vai e põe a ferros Semjaza e os seus sequazes, que se misturaram com as mulheres com elas se contaminaram de todas as impurezas! Quando os seus filhos tiverem eliminado mutuamente e quando os pais tiverem presenciado o extermínio dos seus amados filhos, amarra-os por sete gerações nos vales da terra, até o dia do seu julgamento, até o dia do Juízo final! Nesse dia, eles serão atirados ao abismo de fogo, na reclusão e no tormento, onde ficarão encerrados para todo o sempre. E todo aquele que for sentenciado à condenação eterna seja juntado a eles, e seja com eles mantido em correntes até o fim de todas as gerações.

 

Enoque 10:6-8. Fonte: [Tricca], p. 122

 

Enoque foi uma espécie de best-seller do período. Nas cavernas onde foram achados os manuscritos de Qumran (4Q) havia fragmentos de vinte exemplares distintos (143). Contudo, para textos originais da seita essênia não há menção a Azazel e outros líderes dos Guardiões caídos; afinal já estavam confinados e não eram mais um problema. Um novo inimigo era preciso. A figura de Satanás começa ocupar essa lacuna. Apresentado no Livro de Jó como uma espécie de ministro de Deus responsável por colocar a criação à prova, Satanás leva, com a devida autorização divina, uma série de desgraças pessoais ao justo e devoto Jó no intuito de testar sua integridade. Satanás não interfere, porém, no livre-arbítrio de Jó. Essa tafera fica com sua esposa e alguns amigos seus, que o tentam a rejeitar Deus (no caso da esposa) ou a assumir-se um pecador, o que ele tem certeza que não era. No Livro dos Jubileus (século II a.C.), surge a associação Mastema/Satã, como o chefe de uma falange de espíritos responsável por induzir os humanos à pratica do Mal. O livro reconta a história da humanidade do Gênese ao Êxodo através das palavras de um anjo que a estaria ditando a Moisés e, no capítulo 4, faz rápida passagem pela história dos Guardiões (144):

 

4:21-24 E ele [Enoque], além disso, estava com os anjos desses seis jubileus dos anos, e eles lhe mostram tudo que está sobre a terra e nos céus, o funcionamento do sol, e ele tudo anotou. E testemunhou aos Guardiões, que pecaram com as filhas dos homens; pois esses começaram a se unir, de modo a ficar corrompidos com as filhas dos homens. E ele testemunhou contra (eles) todos. E foi retirado dos filhos dos homens e o conduzimos para o Jardim do Éden em majestade e honra, e eis lá que ele registra a condenação e julgamento do mundo e toda a iniquidade dos filhos dos homens. E por causa disso (Deus) trouxe as águas da inundação sobre toda a terra do Éden; pois lá ele foi posto como um sinal a testemunhar contra todos os filhos dos homens, que deveriam recontar todos os deveres das gerações até o dia da condenação.

 

Fonte: Book of Jubilees

 

A questão os Guardiões não teria acabado com sua condenação. Os espíritos de seus descendentes continuaram a levar morte, doenças e iniquidade aos homens. Após uma prece de Noé, Deus decidiu agir contra eles, mas...

 

10: 7-14 E o Senhor nosso Deus nos ordenou prender todos [os espíritos dos descendentes dos Guardiões]. E o chefe dos espíritos, Mastema, veio e disse: “Senhor Criador, deixe alguns deles comigo e permita que ouçam minha voz e façam tudo o que eu lhes disser; pois se alguns deles não me forem deixados, não serei capaz de executar o poder de minha vontade nos filhos dos homens, pois esses são para ser levados à corrupção e ao mal caminho em meu julgamento, pois grande é a impiedade dos filhos dos homens”. E Ele disse: “Que a décima parte seja deixada para ele e as nove partes desçam para o lugar de condenação.” E Ele ordenou a um de nós [anjos] que deveríamos ensinar a Noé todos os remédios deles; pois sabia que não andariam em retidão, nem se esforçariam em justeza. E fizemos conforme Suas palavras: todos os perversos malévolos foram presos no lugar de condenação e a décima parte deles nós deixamos para que pudessem estar sujeitos a Satã na terra. E explicamos a Noé todos os remédios contra suas doenças. E Noé registrou tudo num livro à medida que o instruíamos acerca de todo o tipo de remédio. Assim, os maus espíritos foram impedidos de (machucar) os filhos de Noé.

 

Fonte: Book of Jubilees

 

É interessante perceber que Mastema (“Animosidade”), embora “chefe dos espíritos” não é um deles, mas alguém que os tinha em responsabilidade e não queria perder peões tão úteis, além de possuir certa intimidade para falar com o Criador. Mastema (145), logo em seguida também denominado Satã (“Adversário”),  é uma espécie de sinistro auxiliar de Deus tal como em Jó, só que em vez de simplesmente punir ou testar os homens, busca também piorá-los:

 

11:2- 7 E os filhos de Noé começaram a guerrear um contra o outro, a tomar uns como cativos e matar outros, e derramar o sangue de homens sobre a terra e a comer sangue, e construir cidades fortificadas, muralhas, e torres, e indivíduos começaram a exaltar a si mesmos acima da nação e a  fundar os princípios dos reinos, e fazer guerra de povo contra povo, e nação contra nação, e cidade contra cidade, e todos (começaram) a fazer o mal, a adquirir armas e a ensinar guerra a seus filhos, e capturar cidades e a vender escravos machos e fêmeas. E ‘Ur, o filho de Kesed, construiu a cidade de ‘Ara dos caldeus e a denominou em homenagem a seu próprio nome e ao nome de seu pai. E construíram para si imagens fundidas, e cada um deles adorou ao ídolo, a imagem fundida que fizeram para si, e começaram a fazer imagens entalhadas e simulacros impuros, e espíritos malévolos (os) ajudaram e seduziram para cometer transgressões e impurezas. E o príncipe Mastema se empenhou para fazer tudo isso, e despachou outros espíritos, os que foram postos sob sua mão, para fazer todas as formas de erro e pecado, e todas as formas de transgressão, para corromper e destruir e derramar sangue sobre a terra.

 

A apresentação das hostes demoníacas, embora autorizadas pelo Criador, como grandes instigadores das misérias físicas e morais dos humanos – tudo para testá-los - alcançou também a literatura sectária dos essênios de Qumran. Em Preceito da Comunidade, anjos bons e maus são apresentados como as divisões dos corações humanos a travar uma luta constante até a Consumação Final.

 

Ele criou o homem para governar o mundo e designou-lhe dois espíritos com os quais deverá caminhar até o advento do Seu Juízo Final: o espírito da verdade e o espírito da falsidade. Os nascidos da verdade brotam de uma fonte de uma fonte de luz, mas os que nascem da falsidade brotam de uma fonte de trevas. O Príncipe da Luz governa todos os filhos da retidão que andam pelos caminhos da luz, mas o Anjo das Trevas governa os filhos da falsidade que caminham pelos caminhos das trevas.

 

O Anjo das Trevas desencaminha todos os filhos de retidão, e, até que ele desapareça, todos os seus pecados, iniquidades, perversidades e atos fora das Leis cometidos pelos filhos da retidão são causados pelo domínio desse Anjo, de acordo com os mistérios de Deus. Cada uma das punições e cada um dos períodos de aflição acontecerão sob o domínio de sua perseguição; pois todos os espíritos dedicados a ele procuram derrubar os filhos da luz.

 

Mas o Deus de Israel e o Seu Anjo da Verdade virão em socorro de todos os filhos da Luz. Pois foi Ele quem criou os espíritos da Luz e das Trevas e fundamentou cada ação neles e estabeleceu cada ato [em] suas [condutas]. Ele ama infinitamente o primeiro e se regozija com suas obras para sempre mas o conselho do outro Ele abomina e odiará sua conduta por toda a eternidade.

 

Preceito da Comunidade (ou Manual de Disciplina) III e IV. Fonte: [Vermes, 2004, p.125].

 

Nota: Neste e nos demais fragmentos de Qumran, os colchetes são reconstruções do texto e os parênteses, acréscimos para facilitar a leitura. As reticências que não estão entre parênteses são trechos danificados que não puderam ser reconstituídos e as que estão são trechos omitidos pelo autor do portal.

 

Em outras passagens, esse antagonista é apresentado de forma bem mais, digamos, concreta:

 

[Que Deus os afaste] dos filhos da L[uz porque ele se recusou a segui-lO

 

E  eles continuarão dizendo: “Sê amaldiço]ado, Melkiresha, em todos os seus pensame[ntos da tendência para o mal. Que] Deus [te entregue] à tortura nas mãos dos Vingadores. Que Deus não ouça [quando] O chamares. [Que Ele era Sua face irada] para ti. Que não haja (saudação de) Paz para ti na boca de todos os que se atêm firmemente aos Patriarca[s. Que sejas amaldiçoados] sem remanescente, e maldito sem salvação.

 

“Amaldiçoados sejam os que pratic[am teus desígnios iníquos] e [fu]ndamentam em seus corações teus ardis (inescrupulosos), tramando contra a Aliança de Deus ... , os que veem [Sua] verdade.”

 

[Quem] quer que se recusar a entrar na [Sua Aliança, conduzindo-se na obstinação de seu coração]...

 

4Q280 – Maldições de Melkiresha. Fonte: [Vermes, 2004, p.230].

 

Melkiresha (Meu rei é a iniquidade) se revela mais um nome específico para um chefe maligno, em oposição a   Melchizedec (Meu rei é a justiça), apresentado como chefe dos exércitos de Luz. Provavelmente, essa maldição litúrgica é dependente deste outro texto de Qumran, de onde foi feita boa parte das reconstruções hipotéticas:

 

E os levitas amaldiçoarão todos os sequazes de Belial (146), dizendo: “Sede amaldiçoados por causa de vossa iniquidade! Que Ele vos entregue à tortura dos vingativos Vingadores! Que Ele vos visite com a destruição por intermédio de todos os que descarregam a Vingança! Que sejais amaldiçoados sem misericórdia por causa da escuridão de vossas ações! Que sejais condenados ao lugar tenebroso do fogo eterno! Que Deus não vos ouça chamá-lo, nem vos perdoe apagando vosso pecado! Que Ele erga Sua face irada para vós em vingança! Que não haja paz para vós da boca daqueles que se atêm aos Antepassados”. E após a benção e a maldição, todos os postulantes à Aliança dirão: “Amém, Amém!”.

 

Preceito da Comunidade II. Fonte: [Vermes, 2004, p.123]/ [Martínez e Tigchelaar, p. 73].

 

Como nada sobre a natureza ou origem de Belial/Melkiresha é apresentado, esses escritos devem fazer alusão a uma tradição popular em que o líder das trevas não é mais um anjo-promotor do tribunal divino e cético quanto às virtudes humanas. Apesar de ser um mal tolerado, ele já não conta com a graça de Deus, embora, paradoxalmente, tenha sido criado por Ele. A figura do diabo cristão começa a se delinear (147). De fato, na obra não religiosa de Flávio Josefo exibe-se a crença na ação de demônios sobre os humanos até mesmo em camadas cultas da população, como a dele.

 

Deus também o capacitou [Salomão] a aprender aquela habilidade de expulsar demônios, que é uma ciência muito útil e curativa aos homens. Ele também compôs esses encantamentos pelos quais moléstias são aliviadas. E legou a metodologia da prática de exorcismos, pelo qual tiram os demônios, de forma que nunca retornam; e esse método de cura e de grande força até este dia; pois vi certo homem de meu país, cujo nome era Eleazar, libertando pessoas que estavam endemoninhadas na presença de Vespasiano,e seus filhos, e seus capitães, e toda a multidão de seus soldados. A metodologia de cura foi esta: colocou um anel que tinha uma raiz de um daqueles tipos mencionado por Salomão (148) nas narinas do endemoninhado; para depois extrair o demônio por suas narinas; e assim que o homem caiu, imediatamente abjurou-o a nunca mais voltar para dentro do homem, fazendo menção a Salomão e recitando os encantamentos que ele compôs. E quando Eleazar mostrava aos espectadores que tinha tal poder, ele punha um pouco afastada uma taça ou bacia d’água e mandava o demônio, assim que saísse do homem, virá-la, e assim deixar que os espectadores soubessem que deixara o homem; e quando isso era feito, a habilidade e sabedoria de Salomão era mostrada manifestadamente; é por essa razão que todos os homens podem tomar conhecimento da vastidão das habilidades de Salomão, e quão amado por Deus ele era, e que as extraordinárias virtudes de todo o tipo com que esse rei foi dotado não podem ser ignoradas por ninguém sob o sol, já que essa é a razão, digo,  por que continuamos a falar tanto desses assuntos. (149)

 

Antiguidades Judaicas VIII - cap. II. Fonte: Project Gutemberg

 

Mas essa luta em o Bem e Mal não seria eterna. Pela mesma época, desenvolveu-se um tipo de literatura chamado de “apocalíptica”, destinada a revelar (de ap??a????? – “revelação”) os desígnios divinos para o fim daquela era o começo de nova, quando o Bem imperaria. Apocalipse, aqui, não é o “fim do mundo” como ficou popularmente conhecido, mas o fim da realidade tal qual conheciam, o fim desse dualismo. Logo após a prisão dos Observadores, o supracitado Livro de Enoque insinua que isso seria apenas um aperitivo do que estaria por vir no fim dos tempos:

 

“Extermina os espíritos de todos os monstros, juntamente com todos os filhos dos Guardiões, porque eles maltrataram os homens! Purga a terra de todo ato de violência! Toda obra má deve ser eliminada! Que floresça a árvore da Verdade e da Justiça. O sinal da bênção será o seguinte: as obras da Verdade e da Justiça sempre serão semeadas na alegria verdadeira. Então florescerão os justos e haverão de viver até gerarem mil filhos, e completarão em paz todos os dias da sua juventude e da sua velhice. Então toda a terra será cultivada com a Justiça, inteiramente plantada de árvores, e cheia de bênção. Toda espécie de árvore boa será plantada sobre ela, igualmente videiras; e as videiras produzirão uvas em abundância. De todas as sementes que forem semeadas uma medida produzirá mil outras; e  uma medida de olivas dará dez cubas de óleo. Purifica a terra de todo ato de violência, de toda injustiça, de todo pecado e impiedade; elimina toda a impudicícia que sobre ela se pratica! Todos os homens serão justos, todos os povos me prestarão honra e glória, e todos me adorarão. A terra então ficará expurgada de toda maldade, de todo pecado, de toda praga, de todo tormento; e nunca mais mandarei sobre ela um dilúvio, ao longo de todas as gerações, por toda a eternidade. Naqueles dias eu abrirei as câmaras dos depósitos da bênção do céu e deixá-las-ei derramar sobre a terra, sobre as obras e os trabalhos dos filhos dos homens. Então a Verdade e a Paz juntar-se-ão por todos os dias da terra e por todas as gerações dos homens.”

 

Enoque 10:9 – 11:2. Fonte: [Tricca, p. 122-3].

 

Mais tarde o autor de Enoque apresenta o arauto dessa separação entre bons e maus,o poderoso juiz escatológico chamado “Filho do Homem”. Ele remete a uma visão relatada em Dn 7:2-14, onde quatro feras, cada uma mais bizarra que a outra, aparecem, conquistam e espalham destruição; até que surge um quinto ser, cuja aparência era “como Filho de Homem”, ou seja, humana. A ele é dado o reino eterno sobre a terra, ao passo que as feras são destituídas e mortas. A interpretação que se segue (Dn 7:17-27) apresenta as quatro feras como reinos que dominarão a terra e oprimirão os povos. Seus poderes malignos durarão até a vinda do que é como “Filho de Homem”, que destruirá as forças opostas a Deus e trará o domínio eterno de Seu povo. Qualquer semelhança com outros usos dessa expressão no Novo Testamento não é mera coincidência, afinal essa é uma figura escatológica anunciada para o fim dos tempos:

 

Então sobrevir-lhes-á sofrimento igual ao de uma mulher em dores de difícil parto, quando o filho passa pela abertura matriz, e ela sofre ao dar à luz. Uma parte deles então encarará a outra; assustar-se-ão, baixarão seus olhos, e serão acometidos de dores quando virem o Filho do Homem assentar-se sobre o trono de sua Glória.

 

Então os reis, os poderosos e os demais senhores da terra haverão de glorificar, louvar e enaltecer Aquele que reina sobre todas as coisas e que estava oculto. Pois, no princípio, o Filho do Homem estava oculto, e o Altíssimo conservava-O na presença do seu poder; e revelou-O aos escolhidos.

 

Florescerá então a comunidade dos escolhidos e dos santos, e todos os escolhidos, naquele dia, estarão na sua presença. Todos os reis, os poderosos, os grandes senhores da terra cairão sobre a sua face, na sua presença, e suplicarão: irão colocar a sua esperança naquele Filho do Homem, invocá-lO-ão  e implorarão sua misericórdia.

 

Todavia, aquele Senhor dos Espíritos os obrigará a se afastarem o mais rapidamente possível da sua presença; o rosto deles cobrir-se-á de vergonha, e sobre eles cairá a escuridão. E Ele os entre os entregará aos Anjos vingadores, porque maltrataram seus filhos e seus escolhidos.

 

Eles propiciaram um espetáculo para os justos e escolhidos: estes rejubilarão, porque a ira do Senhor dos Espíritos abater-se-á sobre eles, e Sua espada embeber-se-á de seu sangue. Naquele dia, os justos e os escolhidos serão salvos, e não verão nunca mais a face dos pecadores e dos ímpios.

 

O Senhor dos Espíritos habitará então com eles, e estes comerão com o Filho do Homem, deitar-se-ão e levantar-se-ão por toda a eternidade. Os justos e os escolhidos exalçar-se-ão sobre a terra, e nunca mais haverão de baixar seus olhos.

 

Serão recobertos com as vestes da glória, que são as vestes da Vida do Senhor dos Espíritos. Vossas vestes não envelhecerão e vossa glória não passará na presença do Senhor dos Espíritos.

 

Enoque 62:4 – 10. Fonte: [Tricca, p. 153].

 

Em um texto de Qumran, batalha titânica se travaria entre o Bem e Mal antes que tais bênçãos chegassem. Ela seria travada tanto no plano celeste quanto no terrestre, havendo aqui um embate contra o rei dos “kittim”:

 

Para o M[estre. O Preceito da] Guerra sobre o desencadeamento do ataque dos filhos da Luz contra a companhia dos filhos das Trevas, o exército de Belial(150); contra as hordas de Edom, Moab e os filhos de Amon, e [contra o exército dos filhos do Leste e] os filisteus, e contra os bandos dos kittim da Assíria e seus aliados, os descrentes da Aliança.

 

Os filhos de Levi, Judá e Benjamim, os exilados do deserto, combaterão contra ele em ... todos os seus bandos quando os filhos da Luz exilados retornarem do Deserto dos Povos para acampar no Deserto de Jerusalém; a após a batalha deverão subir de lá (a Jerusalém?).

 

[O rei] dos kittim [entrará] no Egito, e quando chegar a sua hora ele partirá em grande fúria para fazer guerra contra os reis do norte, para que sua fúria destrua e extermine a trombeta de [Israel].

 

Este será um tempo de salvação para os povos de Deus, uma era de domínio para todos os membros de Sua companhia, e de destruição eterna para toda a companhia de Belial. Será [grande] a confusão dos filhos de Jafé e a Assíria cairá sem socorro. O domínio dos kittim chegará a um término e a iniquidade será vencida sem deixar sobreviventes: não haverá saída [para os filhos] das Trevas. [Os filhos da retid]ão brilharão por todos os confins da terra e continuarão a brilhar até se consumirem todas as eras das trevas e na época designada por Deus, Sua grandiosidade excelsa brilhará eternamente para a paz, a bênção, a glória, alegria e vida longa para todos os filhos da Luz.

 

No dia em que os kittim caírem, haverá terríveis batalhas e massacres diante do Deus de Israel, pois este será o dia designado desde os tempos antigos para a batalha de destruição dos filhos das Trevas. Nessa ocasião, a assembleia dos deuses e das hostes dos homens combaterá, causando um enorme massacre; no dia da calamidade, os filhos da Luz combaterão a companhia das trevas em meio a gritos de uma enorme multidão, e haverá clamor de deuses e homens para [tornar manifesto] o poder de Deus. E será tempo de [grande] sofrimento para os povos que Deus irá redimir; dentre todas as suas aflições, nenhuma será como esta, desde seu início repentino até seu fim na redenção eterna.

 

No dia de sua batalha contra os kittim [eles se porão a caminho] do massacre. Em três investidas, os filhos da Luz atracar-se-ão em batalha para derrotar a iniquidade, e em três investidas as hostes de Belial armar-se-ão para rechaçar a companhia [de Deus. E quando os corações dos destaca]mentos da infantaria começarem a enfraquecer, o poder de Deus fortalecerá [os corações dos filhos da Luz]. E com a sétima investida, a mão poderosa de Deus destroçará [o exército de Belial, e todos] os anjos do seu reino e todos os membros [de sua companhia em  destruição perpétua]...

 

Preceito da Guerra, I. Fonte [Vermes, 2004, p.173-4]

 

É curioso observar a menção que o autor faz à própria seita de Qumran como sendo um dos protagonistas dessa batalha escatológica (“os filhos de Levi, Judá e Benjamim, os exilados do deserto”). Os inimigos dos filhos da Luz são representados pela palavra plural kittim (151), derivada de Citium – uma antiga cidade-estado da ilha de Chipre, que era largamente usada na Palestina como referência a povos ou terras de além-mar. O autor do livro de Daniel (11:30) alude aos “navios dos kittim” que iriam confrontar Antíoco Epífanes no Egito, numa provável referência aos romanos. Os kittim, porém, aqui representam algo mais: todos os povos que já confrontaram ou subjugaram os judeus, além de judeus apóstatas. A narrativa das colunas 2-9 contém várias prescrições para a ordem de batalha, nas colunas 10-14 tem-se uma coleção de orações e hinos de ação de graças a serem entoados pelos combatentes da Luz e só da coluna 15 à 19 é retomada a batalha da coluna primeira (152).

 

(...)

 

Então o sumo sacerdote aproximar-se-á e, postado à frente da formação, fortalecerá por meio do poder de Deus seus corações [e mãos] para Sua batalha. Falando, dirá: “...  a matança, pois ouvistes desde os tempos antigos, por intermédio dos mistérios de Deus...

 

“... Ele lhes dará a recompensa do fogo ardente [por meio dos ] que foram testados no cadinho. Afiará Suas armas e não descansará até que todas as nações iníquas sejam destruídas. Lembrai o julgamento [de Nadab e Ab]íu, os filhos de Aarão, julgamento pelo qual Deus mostrou-se santo aos olhos [de Israel. Mas Eleazar] e Itamar, estes Ele confirmou por meio de uma eterna Aliança sacerdotal.

 

“Sede fortes e não tenhais medo; [pois eles se dirigem] para o caos e a confusão, apoiam-se sobre o que não é e [não será. Ao Deus] de Israel pertence tudo que é e será; [Ele conhece] todos os acontecimentos da eternidade. Este é o dia por Ele designado para a derrota e derrubada do príncipe do reino da iniquidade, e Ele dará socorro eterno à companhia dos Seus redimidos pelo poder dos Anjos-príncipes do reino de Micael. Com luz eterna Ele fará brilhar de alegria [os filhos] de Israel; paz e bênção estarão com a companhia de Deus. Ele fortalecerá o reino de Micael no meio dos deuses, e o domínio de Israel no meio de toda a carne. A retidão rejubilar-se-á, excelsa, e todos os filhos da Sua verdade alegrar-se-ão no conhecimento eterno.

 

“Quanto a vós, os filhos da Sua Aliança, sede fortes na provação de Deus! Seus mistérios vos sustentarão até que Ele mova Sua mão para que Suas provações cheguem a um fim.”

 

(...)

 

[E na sétima investida,] quando a grandiosa mão de Deus se erguer num golpe eterno contra Belial e todas as hostes de seu reino, e quando a Assíria for perseguida [em meio aos gritos dos Anjos] e o clamor dos Santos, os filhos de Jafé cairão para não mais se levantar. Os kittim serão esmagados sem deixar [sobreviventes, e nenhum homem dentre eles será salvo].

 

[Nesta ocasião, no dia] em que a mão de Deus de Israel levantar-se-á contra as multidões de Belial, os sacerdotes soprarão [as seis trombetas] do Lembrar a Vingança e todas as formações do combate investirão contra eles e espalhar-se-ão em todos os [acampamentos dos] kittim, destruindo-os irremediavelmente. [E enquanto] o sol mover-se para o seu poente naquele dia, o sumo sacerdote colocar-se-á em pé, junto [com os levitas] que deverão estar com ele e os chefes [das tribos e os anciãos] do exército, e juntos glorificarão o Deus de Israel. (...)

 

Preceito da Guerra, XVI - XVIII. Fonte [Vermes, 2004, p.189-191]

 

Há um interessante paralelo na exortação do sumo sacerdote com a descrição em Daniel, cap. 10-12, de Micael como anjo patrono de Israel nas lutas contra Belial. A diferença é que os aliados terrenos não são mais a Pérsia ou algum reino helênico, mas Roma. Contudo, algo saiu errado na previsão de Preceito da Guerra. Em 70 d.C., uma revolta judaica foi esmagada pelas tropas do general Tito, a população de Jerusalém foi chacinada, a cidade reduzida a escombros e tesouro do Templo saqueado. Os kittim venceram e o processo de diáspora se acelerou. Com o mundo em que Jesus viveu se extinguindo e um judaísmo estupefato com a tragédia, os sobreviventes precisavam de uma explicação para o ocorrido.

 

Uma das respostas veio em Apocalipse de Baruque (ou II Baruque), datada no final do século I e começo do II. Nele (153) são narrados diálogos de Baruque (ou Baruch, Baruc), contemporâneo da tomada de Jerusalém pelos babilônicos ocorrida em 587 a.C., a lamentar com o próprio Criador e vozes celestes a sorte de Sião, sua pátria, e indagar-lhes o porquê da calamidade. É nítida a intenção do desconhecido autor do livro de comparar destruição que presenciou com aquela ocorrida séculos antes, além de levantar o moral de seu povo ao afirmar que tudo isso já estava previsto e dias melhores viriam com a chegada do Messias (“Ungido”) aos que persistissem na Lei. Eis alguns trechos elucidativos:

 

IV - Nova Jerusalém

 

Falou-me então o Senhor: “Sim, esta cidade [Jerusalém] será abandonada por algum tempo, e temporariamente será castigado o seu povo; contudo, o mundo não terminará. Pensas tu por acaso que é esta a cidade da qual eu falei: ‘Trago-te inscrita nas minhas mãos’?, não, esta vossa cidade, com as suas edificações, não é a cidade futura que eu anunciei, já anteriormente preparada, desde o tempo em que decidi criar o Paraíso. Eu mostrei-a a Adão antes da queda em pecado; ela foi-lhe tirada juntamente com o Paraíso, depois que ele se rebelou contra a proibição.

 

“Mostrei-a também ao meu servo Abraão, naquela noite, entre as oferendas partidas ao meio. Mostrei-a a Moisés sobre o monte Sinai, onde lhe expliquei a imagem do tabernáculo e todos os seus utensílios. Assim, ela continuará preparada na minha mente, juntamente com o Paraíso. Vai, pois, e faz o que eu te ordeno!”

 

XXIX – O Messias

 

Ele falou-me: “O que vai acontecer atingirá toda a terra; dessa forma, experimentá-lo-ão todos os que estiverem em vida. Mas naquele tempo eu protegerei apenas aqueles que nesses dias se encontrarem neste país [Sião]. Uma vez cumprido aquilo que deve acontecer nos períodos do tempo, o Messias começará a sua revelação. Também Behemoth virá dos seus domínios, e Leviatã se levantará do mar; os dois imensos monstros marinhos por mim criados no quinto dia da Criação, e que reservo para aqueles dias; eles servirão de alimento para todos os que sobreviverem.

 

“Então a terra produzirá os seus frutos ao cêntuplo; numa cepa de videira haverá mil ramos, um ramo carregará mil racimos, e um racimo mil bagos, e um bago data até quarenta litros de vinho (154). Os que sofreram fome comerão regiamente, e a cada dia lhes estão reservadas novas maravilhas (155).

 

“Pois de mim procederão ventos que trarão todas as manhãs o perfume de frutos saborosos, e farão gotejar ao final do dia o orvalho salvífico. Do alto cairá de novo grande quantidade de maná; dele comerão eles naqueles anos, por haverem participado do final dos tempos”.

 

XXXII – Reconstrução de Sião

 

“Mas preparai os vossos corações e semeai neles os frutos da Lei, para estardes protegidos no tempo em que o Todo-Poderoso haverá de abalar toda a Criação. Pois as edificações de Sião dentro de pouco tempo serão aniquiladas, mas logo em seguida reconstruídas.

 

“Todavia, essa reconstrução não durará muito; após algum tempo, Sião será arrasada uma vez mais e permanecerá em destroços por um período. Depois será renovada em todo o esplendor, e, uma vez plenamente reconstruída, permanecerá para todo o sempre.

 

“Não devemos perturbar-vos excessivamente com a desgraça que aconteceu, mas muito mais com aquilo que ainda há de vir. Pois, maior ainda do que ambas essas calamidades será o embate em que o Todo-Poderoso renovará a sua Criação. Agora, porém, não te preocupeis mais por alguns dias! Não vos preocupeis comigo, até que eu volte para junto de vós!”

 

Após essas palavras, eu, Baruch, segui meu caminho. Mas quando o povo percebeu que eu desejava afastar-me, levantou a voz em lamentos, clamando: “Aonde vais tu? Por que, Baruch, nos abandona, como um pai que vai embora e deixa os filhos na orfandade? (...)”

 

Fonte [Tricca, p. 304,316-8]

A glória que viria após a vitória final do Bem não seria vivenciada apenas pelos que houvessem nascido um pouco antes. A mesma literatura que punha fim ao dualismo trazia, também, a inovação da crença na vida após a morte e na ressurreição dos mortos, para que os justos de todos os tempos aproveitassem a renovação da Criação. Nos livros mais antigos da Bíblia hebraica - e alguns após o exílio em Babilônia - é ausente ou débil a ideia de continuidade da existência. Para um homem virtuoso, era esperada uma vida longa, muitos filhos, uma morte tranquila e um sepultamento junto ao pai. Não haveria exatamente uma nova vida: as almas continuariam a existir num lugar chamado Xeol nas profundezas da Terra. Lá levariam uma existência apagada, não importando se foram bons ou maus.

Lembra-te que minha vida é um sopro, e que meus olhos não voltarão a ver a felicidade. Os olhos de quem me via não mais me verão, teus olhos pousarão sobre mim e não mais existirei. Como a nuvem se dissipa e desaparece, assim que desce ao Xeol não subirá jamais.

 

Jó: 7-10

 

Volta-te, Iahweh! Liberta-me! Salva-me por teu amor! Pois na morte ninguém se lembra de ti, quem te louvaria no Xeol?

 

Salmos 6:5-6

 

Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais que um leão morto. Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, por que sua memória cairá no esquecimento. Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo que se faz debaixo do Sol.

 

Eclesiastes 9:4-6

 

Com efeito, não é o Xeol que te louva, nem a morte que te glorifica, pois já não esperam em tua felicidade aqueles que descem à cova. Os vivos, só os vivos é que te louvam, como estou fazendo hoje.

 

Isaías 38:18-19

 

Não te prives da felicidade presente, não deixes escapar nada de um legítimo desejo. Não deixarás a outro os teus recursos, e o fruto de teu trabalho à decisão da sorte? Dá e recebe, faze divagar a tua alma, pois não há no Xeol quem procure algum prazer. Como uma roupa, toda carne vai envelhecendo, porque a morte é lei eterna. Como as folhas numa árvore frondosa tanto caem como brotam, assim a geração de carne e sangue: esta morre, aquela nasce.

 

Eclesiástico 14:14-20

 

Sendo assim, uma pessoa só podia se imortalizar através dos filhos, daí a grande preocupação em deixar descendência e o temor a qualquer coisa que pudesse acontecer a ela. Não é à toa que diversas ameaças e punições divinas no Antigo Testamento envolviam a prole do faltoso (156).

 

No judaísmo posterior ao exílio, talvez por influência persa e pela constatação de que muitos justos sofrem e maus prosperam nesta vida, começam a se desenvolver ideias a respeito da ressurreição dos mortos, i.e., a reunião da alma dos falecidos com corpo a ocorrer durante a concretização das profecias apocalípticas. Seria o tempo de as injustiças serem reparadas:

 

Como mulher grávida, ao aproximar-se a hora do parto, se contorce e, nas suas dores, dá gritos, assim nos encontrávamos nós na tua presença, ó Iahweh: Concebemos e tivemos as dores do parto, mas quando demos à luz, eis que era vento: não asseguramos a salvação da terra; não nasceram novos habitantes para o mundo. Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, porque o teu orvalho será um orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras.

 

Isaías 26:17-19

 

Nesse tempo levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto aos filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia qual jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem. Mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no Livro. E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justificar hão de ser como as estrelas, por toda a eternidade. Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do Fim. Muitos andarão errantes, e a iniquidade aumentará.

 

Daniel 12:1-4

 

No deuterocanônico II Macabeus, torna-se mais explícita a crença em uma restauração corporal. Era uma forma de honrar aqueles que morreram por sua fé na luta contra o domínio da dinastia helênica dos Selêucidas na Palestina.  

 

Passado também este à outra vida, passaram a torturar da mesma forma ao quarto, desfigurando-o. Estando ele próximo a morrer, assim falou: “É desejável passar à outra vida às mãos dos homens, tendo da parte de Deus as esperanças de ser ressuscitado por Ele. Mas para ti, ao contrário, não haverá ressurreição para a vida!

 

II Mc 7:13-4

 

Depois, tendo organizado uma coleta individual, enviou a Jerusalém cerca de duas mil dracmas de prata, a fim de que se oferecesse o sacrifício pelo pecado: agiu absolutamente bem e nobremente, com o pensamento na ressurreição. De fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam ressuscitar, seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos. Mas se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para os que adormecem na piedade, então era santo e piedoso seu modo de pensar (157).

 

II Mc 12:43-5

 

Repare a semelhança entre II Mc 7:14 e o registro feito por Flávio Josefo (158) sobre a crença da facção dos fariseus:

 

Eles também acreditavam que as almas tinham uma força imortal dentro delas e que sob a terra elas serão premiadas ou punidas, segundo elas tivessem vivido virtuosamente ou em vício esta vida; e estas últimas são mantidas numa prisão eterna, ao passo que as primeiras terão o poder de revivificar-se e viver novamente (...)

 

Antiguidades Judaicas, livro XVIII, cap. I

 

Uma forma curiosa de ressurreição apenas para os bons, o que não significa a inexistência de uma variante dessa crença onde os maus também ressuscitassem para o castigo. O livro de II Baruque assim relata:

 

“Terminado o tempo vigente do Messias, Ele voltará de novo à glória do céu. Então haverão de  ressuscitar todos aqueles que outrora adormeceram na esperança. Naquele tempo acontecerá que se abrirão as câmaras onde se demoram as almas dos piedosos; elas sairão, e todas essas numerosas almas, como uma legião de um só coração, apareceram todas juntas, abertamente. As que foram as primeiras, alegrar-se-ão; as que foram as últimas, não estarão tristes.

 

“Cada uma delas sabe que foi chegado o tempo, previsto como o fim de todos os tempos. As almas dos pecadores perder-se-ão em angústia, ao presenciarem tudo isso. Pois elas já sabem que o tormento as atingirá, e que a hora da sua condenação é chegada.”

 

Cap. XXX. Fonte: [Tricca, p. 317]

 

O mesmo livro vai além e descreve o próprio processo de ressurreição:

 

Mas além disso, eu te pergunto, ó Poderoso; e pedirei graça dele que criou todas as coisas. Em qual forma irão os viventes viver em seu dia? Ou como permanecerá o esplendor que haverá depois dele? Irão eles, talvez, retomar esta presente forma e adquirirão membros acorrentados que são malignos e pelos quais males são feitos? Ou irás mudar essas coisas que têm estado no mundo, bem como o próprio mundo?

 

E ele respondeu e me disse: “Ouça, Baruch, estas palavra e registre na memória de seu coração tudo o que aprenderá. Pois a terra seguramente devolverá os mortos naquele tempo; ela os recebe agora a fim de preservá-los, sem mudar nada em sua forma. Mas assim como ela os tem recebido, então ela os devolverá. E como eu os tenho enviado para ela, então ela os erguerá. Pois aí será necessário mostrar aos que vivem que os mortos estão vivendo novamente e que voltaram os que partiram. E será então quando tiverem reconhecido uns aos outros aqueles que se conhecem neste momento, então meu julgamento será forte e aquelas coisas que foram ditas antes serão cumpridas.“

 

E será então após esse dia que ele indicou ter acabado é que tanto a forma daqueles que se descobriram culpados quanto a glória dos que se demonstraram justos serão mudadas. “Pois a forma dos que agora agem iniquamente será feita mais maligna que é (agora) de modo que sofram tormento. Também, como a glória dos que demonstraram serem justos em nome de minha lei, os que possuíram inteligência em sua vida e os que plantaram a raiz da sabedoria em seu coração – seu esplendor será então glorificado por transformações e a forma de sua face será convertida na luz de sua beleza de modo que possam adquirir e receber um mundo imperecível que está prometido a eles (*). Portanto, especialmente eles que então virão a ficar tristes, porque desprezaram minha Lei e taparam seus ouvidos a fim de que não ouvissem sabedoria e recebessem inteligência. Quando, portanto, virem que os que estão acima deles, que são agora exaltados, serão então ainda mais exaltados e glorificados que eles, então tanto estes e aqueles serão mudados, estes no esplendor dos anjos e aqueles em aspectos chocantes e formas horríveis; e arrasar-se-ão ainda mais. Pois primeiro verão e, então, partirão para o tormento. (...)” (159)

 

Cap 49-51. Fonte: [Charlesworth, p. 637-8] (160)

 

(*) Compare essa transformação com Enoque 62:10 exposto acima.

 

Nem todos os grupos judaicos adotaram a ressurreição, pois esta era mais própria dos fariseus e simpatizantes, que a difundiram entre os populares. Os saduceus, mais ligados à elite, recusaram as inovações e mantinham a crença original de seus antepassados (161). A seita dos essênios aparentava crer numa espécie de imortalidade sem ressurreição, conforme relata Flávio Josefo:

 

Pois sua doutrina é esta: que os corpos são corruptíveis e que a matéria de que são feitos não é permanente; mas que as almas são imortais e continuam para sempre; e que vieram do mais sutil ar e são unidas a seus corpos como a uma prisão, a que foram arrastadas por um espécie de atração natural; mas quando são libertadas dos laços da carne, então elas, como libertas de um longo cativeiro, regozijam-se e ascendem. E isso é como as opiniões dos gregos, que boas almas têm suas moradas além do oceano, numa região que não é oprimida nem pelas tempestades de chuva ou neve, nem com calor intenso, mas esse tal lugar é refrescado por uma suave brisa de um vento do oeste, que sopra perpetuamente do oceano; ao passo que designam para as almas más um antro escuro e tempestuoso, cheio de castigos incessantes. E de fato os gregos aparentam-me seguir a mesma noção, quando designam as ilhas dos abençoados para seus bravos homens, a quem chamam de heróis e semideuses; e para as almas dos iníquos, a região dos ímpios, no Hades, onde suas fábulas relatam que certas pessoas, tais como Sísifo, e Tântalo, e Ixíon, e Títio, são punidos; que está assentada sobre essa primeira suposição, que as almas são imortais; e daí são reunidas as exortações à virtude e dissuasões da iniquidade; pelas quais bons homens são aperfeiçoados na conduta de sua vida através da esperança de terem uma recompensa após suas mortes; e pelas quais a veementes inclinações dos maus ao vício são restringidas através do medo e da expectativa em que se encontram de que, apesar encobrirem nesta vida, devam sofrer castigo imortal após suas mortes. Essas são as doutrinas divinas dos essênios sobre a alma, que lançam uma irresistível isca para os que uma vez que tiveram uma amostra de sua filosofia.

 

Guerras, livro II, cap. VIII

 

E, de fato, após a descoberta e tradução dos manuscritos de Qumran, um dos trechos encontrados reflete bem essa postura:

 

O julgamento divino de todos que caminham com este espírito será a saúde, uma vida longa em grande paz, e abundância, junto com todas as bênçãos eternas e alegrias infinitas numa vida sem fim, uma coroa de glória e uma vestimenta majestosa de luz infinda.

 

Mas os caminhos do espírito da falsidade são estes: ganância e negligência na busca da retidão, maldade e mentiras, arrogância e orgulho, hipocrisia e engano, crueldade e mal abundantes, mau humor e muita insensatez e descarada insolência, atos abomináveis (cometidos) com espírito de luxúria, e conduta lasciva a serviço da impureza, uma língua blasfema, cegueira do olho e surdez o ouvido, cerviz dura, dureza de coração, assim caminha, assim caminha este homem para as sendas das trevas e do logro.


E o julgamento de todo aquele que caminha com este espírito trará incontáveis flagelos por intermédio dos anjos destruidores, maldição eterna por causa da ira vingativa de Deus, tormento eterno e desgraça infinita junto com a extinção vergonhosa do fogo das regiões escuras. Todas as suas gerações futuras decorrerão em tristes lamentações e amarga miséria, e em calamidades tenebrosas até que sejam todas destruídas, sem deixar rastro ou sobreviventes.

 

Preceito da comunidade (1QS), IV (162)

 

De posse desses relatos documentais, dispõe-se de fundamentos para determinar o que os primeiros cristãos herdaram do judaísmo intertestamentário. Analisando as fontes mais antigas que nos restaram sobre ele – as que estão encravadas nos evangelhos sinópticos – muitas similaridades saltam aos olhos entre o filho do carpinteiro e um profeta contextualizado no mundo em que viveu.

 

Emérito curandeiro e exorcista, Jesus – para seus primeiros fieis - demonstrava seu poder e compaixão por meio do primeiro aspecto, o segundo não deixava de ser uma variante dele, já que demônios surgem muitas vezes como causa de males a seus hospedeiros. Jesus os expulsa sem alongar muito sua conversa com eles, já que está mais interessado no restauro da sanidade do endemoninhado pela expulsão definitiva de um “espírito impuro” (cf. Mc 9:25) que em trazer seu algoz para o lado do Bem, revelando uma postura dualista próxima à encontrada nas versões populares da religião judaica de então, como visto acima. Os evangelistas chegam até a dar um ar performático à transferência de uma “legião” de demônios de um indivíduo para uma manada de porcos (Mc 5:1-20 e Lc 8:26-37) similar aos exorcismos relatados por Josefo. Um terceiro aspecto a fazer de Jesus um figura carismática é, sem dúvida, sua pregação. Desnecessário fazer menção às diversas noções de moral expostas em suas parábolas e sermões, que Kardec pinçou e comentou sob óptica espírita em seu “Evangelho segundo o Espiritismo”. O problema, para muitas seitas espiritualistas, é que, na releitura moderna que fazem, deixam de fora grande parte de outra faceta de sua pregação: a escatologia – o anúncio do fim da realidade tal como conheciam e sua preparação para essa mudança, da qual seus ditos morais fazem parte. Não se trata uma mudança gradual e suave, que levaria gerações numa longa “transição planetária”, mas algo iminente para os que viveriam no século I:

 

Cumpriu-se o tempo e Reino está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho. (Mc 1:15)

 

Dirigindo-vos a elas, proclamai que o Reino dos Céus está próximo. (Mt 10:7)

 

(...) curai os enfermos que nela houver e dizei ao povo: “o Reino de Deus está próximo de vós”. (Lc 10:9)

 

Esse Reino de Deus não seria algo a ser desfrutado só pelos cristãos futuros, após o trabalho de diversas gerações. Jesus falava para sua plateia e discípulos como se fossem todos vivenciar todos esses acontecimentos ainda em vida e que ocorreriam de forma cataclísmica neste mundo material:

 

De fato, aquele que, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e de minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos. (...) Em verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até que vejam o Reino de Deus chegando com poder. (Mc 8:38 – 9:1)

 

Naqueles dias, porém, depois daquela tribulação, o sol escurecerá, a lua não dará sua claridade, as estrelas estarão caindo do céu e os poderes que estão nos céus serão abalados. E verão o Filho do Homem vindo entre nuvens com grande poder e glória. Então ele enviará os anjos e reunirá seus eleitos, dos quatro cantos, da extremidade da terra à extremidade do céu. (... ) Em verdade vos digo que esta geração não passará enquanto não tiver acontecido tudo isso. (Mc 13:24-27, 30)

 

De fato, como o relâmpago relampeja de um ponto do céu e fulgura até o outro, assim acontecerá com o Filho do Homem em seu dia. (...) como aconteceu nos dias de Noé, assim também acontecerá nos dias do Filho do Homem. Comiam, bebiam, casava e davam-se em casamento até o dia em que Noé entrou na arca; então veio o dilúvio, que os fez perecer a todos. (...) Será que desse modo o Dia em que o Filho do Homem for revelado. (Q, via Lc 17:24; 26-27; Mt 24:27, 37-39)

 

Vós, também, estai preparados, porque o Filho do Homem virá numa hora que não pensais (Q via Lc 12:40; Mt 24:44)

 

Da mesma forma que se junta o joio e se queima no fogo, assim será no fim do mundo: o Filho do Homem enviará seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai. (M, via Mt 13:40-43)

 

Cuidado para que vossos corações não fiquem pesados pela devassidão, pela embriaguez, pelas preocupações, da vida, e não se abata repentinamente sobre vós aquele Dia, como um laço; pois ele sobrevirá a todos os habitantes da faze de toda a terra. Ficai acordados, portanto, orando a todo momento, para terdes a força de escapar de tudo o que deve acontecer e de ficar de pé diante do Filho do Homem. (L, via Lc 21:34-36)

 

Ensinamentos apocalípticos encontrados em quatro fontes independentes das mais antigas fontes para o Jesus histórico, cujo crédito é reforçado por pensamentos análogos disponíveis em diversos apocalipses judaicos (Daniel, Enoque, II Baruque, Preceito da Guerra, etc.) correntes no período intertestamentário. Jesus era um profeta apocalíptico também, a esperar a descida dos poderes de Deus à Terra ainda em sua geração, para ceifar todo o mal reinante e instaurar o domínio paradisíaco dos justos. Nesse contexto histórico, os ensinamentos morais de Jesus revelam motivações de urgência: como em breve não haveria mais ódio, as pessoas deveriam se amar desde já; como não haveria mais fome, deve alimentar os famintos, como o mal seria extinto, deve-se opô-lo de já, por exemplo, expulsando demônios; como não haverá mais doentes, que sejam curados imediatamente (163). Em suma, este era o cristianismo primitivo: uma seita judaica dualista e apocalíptica (164).

 

Apesar de a tese de um Jesus histórico como profeta apocalíptico ter sido (e ser) defendida por nomes como Albert Schweitzer, Barth Ehrman e Geza Vermes; ela também possui rivais importantes no meio acadêmico. Uma das principais alternativas seria a visão de Jesus como um antigo “filósofo cínico”: alguém dedicado principalmente a afastar seus discípulos das preocupações e armadilhas da vida, a fazê-los doar tudo o que possuíssem e convencerem os outros a fazer o mesmo. Tal é a visão dos membros do Jesus Seminar (Seminário de Jesus), autores de The Five Gospels. Para eles, versículos como Mc 1:15 não são ditos originais de Jesus porque:

 

Nos evangelhos, Jesus raramente é representado chamando as pessoas ao arrependimento. Tal admoestação é característica da mensagem de João Batista (Mt 3:7-12; Lc 3:7-14). Como uma visão apocalíptica da história, o chamado ao arrependimento pode ter sido derivado de João e então atribuído a Jesus.

 

Os Membros [do Seminário] concluíram que as frases que constituem o dito, excetuando “domínio imperial de Deus” [i.e. “Reino de Deus”] são a linguagem de Marcos ou sua comunidade. Marcos sumarizou em suas próprias palavras o que ele acredita ter dito Jesus.

 

[Funk, p. 41]

 

Note que os participantes de The Jesus Seminar não afirmam que os ditos apocalípticos são interpolações tardias, tal como o episódio da mulher adúltera no evangelho de João (Jo 7:53 – Jo 8:11) e o parêntese joanino (I Jo 5:7-8). O dito de Mc 1:15 pode não ter saído da boca de Jesus por esse critério, mas pode muito bem pertencer à redação original desse evangelho, já que Marcos (ou sua comunidade) assim criam. O próprio Seminar reconhece que:

 

As opiniões de João Batista e Paulo têm orientação apocalíptica. A igreja primitiva à parte de Paulo partilha da opinião de Paulo. A única questão é o conjunto de textos que representam o domínio de Deus como presente foram ofuscados pelas noções apocalípticas dos predecessores imediatos de Jesus, seus contemporâneos e seus sucessores. Se Jesus meramente adotou as opiniões populares, como tais ditos como Lc 17:20-21 e Lc 11:20 sugiram? A melhor explicação é que se originaram com Jesus, já que vão contra tendência dominante da tradição de revelação. Os membros do Jesus Seminar estão convencidos da sutilidade do senso de tempo de Jesus – a simultaneidade do presente e do futuro – foi quase esquecida em seus seguidores, muitos dos quais, afinal, começaram como discípulos de João Batista e são representados, nos evangelhos, entendendo precariamente Jesus.

 

A evidência confirmadora para essa conclusão jaz na maioria das parábolas de Jesus: elas não refletem uma visão apocalíptica da história. Entre suas principais parábolas estão: o samaritano;  o filho pródigo; banquete de jantar; trabalhadores da vinha; o administrador infiel; o escravo impiedoso; o juiz corrupto; o fermento; o grão de mostarda; a pérola; o tesouro.

 

O Jesus Seminar  premiou com uma designação rosa [i.e., deu como prováveis] todos os ditos e parábolas de Jesus em que o reino é representado como atual; os ditos restantes, nos quais o domínio de Deus é retratado como futuro, foram votados como pretos [não são ditos de Jesus]. (165)

 

[Funk, p. 137]

 

Assim, para esse grupo de pesquisadores, ainda que a “versão 1.0” não tenha sido um credo apocalíptico, a versão, digamos, 1.1 o foi. O principal argumento da permanência dos apocalípticos como autênticos na redação dos evangelhos é que justamente suas profecias não se cumpriram, ao menos na geração de Jesus, e, portanto, o comportamento esperado de algum copista desonesto seria removê-las (166). Parábolas apocalípticas; como a do porteiro (Mc 13:33-37), o ladrão (Mt 24:43-44, Lc 12:39-40 e Tomé 103) e das dez virgens (Mt 25:1-13), podem ser justamente ecos da inquietação entre os primeiros cristãos gerada pela demora da segunda vinda de Jesus (Parúsia).

 

Não se pode, porém, falar de cristianismo sem mencionar a figura de Paulo de Tarso, que foi um verdadeiro “divisor da águas” na história dessa religião ao defender que gentios pudessem ser cristãos sem antes serem judeus. Essa foi a chave para a sobrevivência do cristianismo após o esmagamento da revolta de Bar Kochba. Sem isso, é provável que o cristianismo não passasse de mais um credo étnico com grandes chances de ter suas fileiras absorvidas pelo partido farisaico. Com Paulo, a nova fé ganhou praticamente todo o mundo mediterrânico para se expandir. Muitos simpatizantes da parte ética do judaísmo, que travaram contato com ele através das diversas comunidades judaicas do Império Romano, devem ter se interessado pela nova fé, que os dispensava de práticas estranhas a eles (circuncisão, por exemplo) e das várias restrições dietéticas. Ao contrário de Jesus, Paulo deixou escritos de próprio punho: dos vinte e sete livros do Novo Testamento, quatorze são cartas atribuídas a ele, das quais oito são tidas pelos estudiosos como genuínas (167). É, sem dúvida, o mais prolífico autor cristão do século I e sua influência foi tanta que talvez a religião que hoje tem Jesus como profeta último talvez merecesse mais acertadamente o nome de “paulinismo”. (168)

 

Mas como ele se enquadrava entre seus contemporâneos? Não é difícil encontrar paralelos entre algumas de suas ideias com doutrinas encontradas na literatura intertestamentária. O contraste de Paulo em II Cor 6:14-5 entre luz e trevas e entre Cristo e Belial relembra muito as ideias dualistas apresentadas em Qumran. Sua defesa da ressurreição mortos através de transformação de um corpo material em espiritual (I Cor 15) é quase uma cópia dos capítulos XLIX-LI de II Baruque. A comparação entre Paulo e a religião popular de seu tempo, o que mais interessa aqui, já foi mencionada pelos membros do Jesus Seminar - sua pregação apocalíptica. Trechos como:

 

Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia. Pois isto vos declaramos, segundo a palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos aqui para a Vinda [Parousia] do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram.

 

I Ts 4:14-5

 

Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim a trombeta tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade.

 

I Cor 15:50-3

 

Paulo deixa claro que nem todos a quem dirigiu essas cartas estariam mortos antes da (segunda) vinda Jesus. Ele esperava a consagração do Reino de Deus ainda em sua geração (cerca de 50 d.C.). Paulo também era um pregador apocalíptico. Sua defesa da iminência do fim de sua era teve corolários em suas prescrições para a conduta dos membros das igrejas por ele fundadas:

 

Quisera que todos os homens fossem como sou [i.e., celibatários e castos]; mas cada um recebe de Deus o seu dom particular; um, deste modo; outro, daquele modo.

 

Contudo, digo às pessoas solteiras e às viúvas que é bom ficarem como eu. Mas, se não podem aguardar a continência, casem-se, pois é melhor casar-se do que ficar abrasado.

 

Quanto àqueles que estão casados, ordeno não eu, mas o Senhor: a mulher não se separe do marido – se, porém, se separar não se case de novo, ou reconcilie-se com o marido – e o marido não repudie sua esposa!

 

(...)

 

Permaneça cada um na condição em que se encontrava quando foi chamado. Eras escravo quando foste chamado? Não te preocupes com isto. Ao contrário, ainda que te pudesses tornar livre, procura antes tirar proveito da tua situação de escravo. Pois aquele que era escravo quando chamado no Senhor é liberto do Senhor. Da mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado, é um escravo em Cristo. Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; não vos torneis escravos dos homens. Irmãos, cada um permaneça diante de Deus na condição em que se encontrava quando foi chamado.

 

A propósito das pessoas virgens, não tenho preceito do Senhor. Dou, porém, um conselho como homem, que, pela misericórdia do Senhor, é digno de confiança. Julgo que essa condição é boa, por causa das angústias presentes; sim, é bom o homem ficar assim. Está ligado a uma mulher? Não procureis romper o vínculo. Não estás ligado a uma mulher? Não procures mulher. Todavia, se te casares, não pecarás; e se a virgem se casar, não pecarás. Mas essas pessoas terão tribulações na carne; eu vo-las desejaria poupar.

 

Eis o que vos digo, irmãos: o tempo se fez curto. Resta, pois, que aqueles que têm esposa, sejam como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; aqueles que usam deste mundo, como se não usassem plenamente. Pois passa a figura do mundo.

 

I Cor 7:7-11, 20 -31

 

Paulo advoga um imobilismo social e “sexual” que só se torna razoável justamente porque acredita ser passageiro o estado atual do mundo, afinal o “tempo se fez curto”, o fim estava próximo, acarretando as “angústias presentes”. Não faria sentido fazer uma apologia velada à escravidão e explícita à castidade generalizada pensando numa duração de longo prazo para a sociedade. Essa moral castradora teve desdobramentos no folclore cristão posterior. Tertuliano relata (169) a existência de um texto forjado por um presbítero da Ásia Menor (atual Turquia) que narrava a história de Tecla – uma das mais notáveis discípulas de Paulo – e era usado para justificar o batismo feito por mulheres. O presbítero teria confessado a fraude em tribunal eclesiástico e alegara tê-la feito “por amor a Paulo”. Acabou perdendo o cargo. Fica no ar o quanto o texto era de sua própria invenção, mas é plausível que anônimo presbítero tenha compilado um conjunto de tradições orais e obras antecessoras ao fazer esse trabalho, até para facilitar a aceitação em sua comunidade. Caso o apócrifo neotestamentário que é conhecido hoje como "Atos de Paulo e Tecla" faça parte desse fabrico, podemos ter ideia do valor que a castidade tinha para algumas comunidades cristãs. Logo no primeiro capítulo, Tecla ouve o sermão do andarilho Paulo:

 

Abençoados os puros de coração, pois verão a Deus. Abençoados os que mantêm imaculada sua carne, pois serão o templo de Deus. Abençoados os moderados, pois Deus se revelará a eles. Abençoados os que abandonam seus divertimentos seculares, pois agradarão a Deus. Abençoados os que têm esposas como se não as tivessem, pois serão feitos anjos de Deus. (...) Abençoados os corpos e almas de virgens, pois agradam a Deus e não perderão a recompensa de sua virgindade, pois a palavra de seu Pai se mostrará eficaz para a sua salvação no dia de seu Filho e gozarão o descanso para todo o sempre,

 

Ou seja, de um pregador apocalíptico a anunciar a morte e ressurreição de Jesus para a salvação do mundo, esse novo “Paulo” se tornou um partidário da renúncia sexual como condição sine qua non para a salvação. Não é preciso dizer que se isso fosse levado às ultimas consequências a humanidade estaria extinta. Ou talvez não, se o tempo restante para isso fosse insuficiente...

 

Por fim, encerando o Novo testamento, encontra-se a Revelação de João de Patmos, um apocalipse cristão por excelência. Mas, afinal, o que tem a ver o enquadramento dos primeiros cristãos com uma seita apocalíptica e a reencarnação? Simples: ambos são mutuamente excludentes. Não faz sentido falar em um longo processo depurativo se justamente o que falta é tempo para isso. O que não significa a inexistência de “cristianismos” reencarnacionistas no passado. Havia seitas gnósticas, por exemplo, acreditavam em reencarnação. Os basilidianos criam até em metempsicose, conforme o próprio Orígenes relata:

 

Agora Basílides, falhando em observar que essas coisas devem compreendidas a partir de lei natural, rebaixa o discurso do Apóstolo para fábulas insensatas e profanas [cf. I Tm 4:7] e tenta produzir a partir dessa fala do Apóstolo a doutrina chamada de µete?s?µat?s??, i.e., que as almas são transferidas para dentro de um corpo após outro. Pois ele diz que Paulo diz: “outrora vivia sem a lei” [Rm 7:8-9], que significa: Antes de vir para dentro deste corpo, vivi numa forma corporal que não estava sob a lei, ou seja, a de uma vaca ou de um pássaro. Mas ele falha em olhar o que se segue, a saber: ”Mas quando o mandamento veio, reviveu o pecado” (Rm 7:9). Pois Paulo não diz que ele veio para o mandamento, mas o mandamento lhe veio; e não diz que não que o pecado não existia nele, mas que estava morto e reviveu. Por essas declarações  ele está garantidamente mostrando que  dizia ambas as coisas a respeito da mesma e única vida sua. Mas que Basílides e os que partilham de suas percepções sejam deixados a sua própria impiedade. Voltemo-nos, porém, para o sentido do Apóstolo em conformidade com pia reverência para doutrina eclesiástica.

 

Comentário sobre a Epístola aos Romanos, Livro V, cap. I, parágrafo XXVII

 

Para os gnósticos, não havia essa “premência escatológica” existente nos grupos mais “convencionais”. De fato, em evangelhos protognósticos – como os de João e Tomé – é baixo o viés apocalíptico. Sendo assim, para uma seita gnóstica era perfeitamente viável a adoção da reencarnação,  afinal seus fieis gozavam de um tempo indeterminado para adquirir o conhecimento. Quando usavam obras de autores de orientação apocalíptica – Paulo, por exemplo – a solução era usar e abusar de raciocínios alegóricos, como o exposto acima por Orígenes. Laçando-se mão descontroladamente de livres associações, é possível deduzir qualquer coisa de um fragmento convenientemente pinçado de seu contexto. Aliás, isso me lembra algo... (170)

 

O problema é que grande parte das acusações espiritualistas de que a reencarnação foi suprimida do cristianismo no século VI (e da Bíblia) alega que ela era professada até pela ortodoxia. Se não era uma doutrina oficial, ao menos um substrato comum à maioria dos cristãos. Bem, então como os cristãos que dariam origem ao partido ortodoxo (os proto-ortodoxos) dos séculos II e III lidaram com a demora da segunda vinda de Jesus? Para não arrefecer, o clamor apocalíptico teve que se transformar à medida em que a geração que conheceu os apóstolos originais morria. A Segunda Epístola de Pedro, um dos livros mais tardios do Novo Testamento (ca. 125 d.C.), já demonstra a preocupação de seu autor com impaciência que afetava as comunidades cristãs:

 

Amados, esta já é a segunda carta que vos escrevo, procurando em ambas despertar o vosso pensamento sadio com algumas admoestações, a fim de vos trazer à memória as palavras preditas pelos santos profetas e o mandamento dos vossos apóstolos, a eles confiado pelo Senhor e Salvador.

 

Antes de mais nada, deveis saber que nos últimos dias virão escarnecedores com seus escárnios e levando uma vida desenfreada, de acordo com as suas próprias concupiscências. O seu tema será: “Em que ficou a promessa da sua vinda? De fato, desde que os pais morreram, tudo continua como desde o princípio da criação!” Mas eles fingem não perceber que existiram outrora céus e terra, esta tirada da água, e estabelecida no meio da água pela Palavra de Deus, e que nem por essas mesmas causas o mundo de então pereceu, submergindo na água. Ora, os céus e a terra de agora estão reservados pela mesma Palavra ao fogo, aguardando o dia do Julgamento e da destruição dos homens ímpios.

 

Há, contudo, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: é que para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não tarda a cumprir a sua promessa, como pensam alguns, entendendo que há demora; o que ele está é usando de paciência convosco, porque não quer que ninguém se perca, mas que todos venham a converter-se. O dia do Senhor chegará como o ladrão e então os céus se desfarão com estrondo, os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão e a terra, juntamente com as suas obras, será consumida.

 

II Pd 3:1-11

 

A data da segunda vinda começava a ficar indefinida, uma solução foi dar períodos longos para seu advento, por exemplo, milênios – coisa que o autor de II Pedro já sugere. Nessa visão, o autor da epístola de Barnabé (171) relacionou  os seis dias da criação do mundo descritos em Gênesis com o seis mil anos de história humana. O sétimo dia (o descanso) seria o estabelecimento, literalmente, de um reinado de Jesus sobre a Terra, antes da transformação final do mundo, o que não deixa de ser, de certa forma, um empréstimo de apocalipses judaicos (por exemplo, II Baruque XXIX) que faziam da bonança da era messiânica uma prévia do verdadeiro “mundo vindouro”:

 

Ainda, sobre o sábado, está escrito no Decálogo que Deus o entregou pessoalmente a Moisés sobre o monte Sinai: “Santificai o sábado do Senhor com mãos puras e coração puro” (Ex 20:8, Dt 5:12). Em outro lugar, ele diz: “Se meus filhos guardarem o sábado, então estenderei sobre eles minha misericórdia”(cf. Jer 17:24-5).

 

Ele menciona o sábado no princípio da criação: “Em seis dias, Deus fez as obras de suas mãos e as terminou no sétimo dia, e nele descansou e o santificou” (Gn 2:2-3). Prestai atenção, filhos, sobre o que significa: “terminou no sétimo dia”. Isso significa que o Senhor consumará o universo em seis mil anos, pois um dia para ele significa mil anos. Ele próprio o atesta, dizendo: “Eis que um dia para o Senhor será como mil anos” (cf. Sl 94:4, II Pd 3:8). Portanto, filhos, em “seis dias”, que são seis mil anos, o universo será consumado. “E ele descansará no sétimo dia.” Isso quer dizer que seu Filho, quando vier para pôr fim ao tempo do Iníquo, para julgar os ímpios e mudar o sol, a lua e as estrelas, então ele, de fato, repousará no sétimo dia.

 

Por fim, ele diz: “Tu o santificarás com mãos puras e coração puro.” Contudo, se alguém atualmente pudesse santificar, de coração puro, esse dia que Deus santificou, então nós nos teríamos enganado completamente (172). Porém, se este agora não é o caso, ele os santificará verdadeiramente no repouso, quando formos capazes disso, isto é, quando tivermos sido justificados e tivermos recebido o objeto da promessa, quando não houver mais iniquidade, e o Senhor tiver renovado tudo. Então, poderemos santificá-los, tendo sido primeiro nós mesmos santificados.

 

Ele finalmente lhes disse: “Não suporto vossas neomênias (173) e vossos sábados”(Is 1:13). Vede como ele diz: não são seus sábados atuais que me agradam, mas aquele que eu fiz e no qual, depois de ter levado todas as coisas ao repouso, farei o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus (174).

 

 

Vale notar que o autor da Epístola de Barnabé demonstra a presença da celebração do domingo já entre os primitivos cristãos helênicos, no lugar de sábado, ainda que seus argumentos não devessem soar muito convincentes para os judeus a quem ele destina. Ele também mostra a presença do movimento milenarista já no começo do século II que, ao menos até Niceia, teve relativa difusão e contou com o apoio de importantes nomes da patrística, como Justino Mártir, Irineu de Lião, Tertuliano e Hipólito (175). A principal base canônica para essa linha teológica se tornou o apocalipse joanino, mais especificamente a descrição de um reino milenar de Jesus feita no capítulo XX. Obviamente, faltava determinar quando o tal milênio se iniciaria. Alguns continuavam enxergar a iminência da parúsia no momento em que viviam. Um caso famoso foi o do montanismo, originário da província romana da Frígia no final do século II. Não era, de início, exatamente uma facção herética ou cismática, mas um movimento surgido dentro da própria ortodoxia, com quem ainda mantinha afinidade teológica. Seu fundador, Montano, advogava um maior rigorismo moral e sexual, mas o que se tornou realmente sua marca distintiva foi a crença de que as revelações divinas não se encerraram com o fim da era apostólica e o Espírito Santo continuava a agir por meio dos fiéis, o que foi um dos motivos pelo qual o movimento também ficou conhecido como “Nova Profecia”. O próprio Montano tinha a companhia de duas “profetizas”: Priscila (ou Prisca) e Maximila. Não nos restou nenhum documento original desse grupo e tudo o que se sabe hoje dele vem das obras patrísticas, seja de seus adversários, ou de um simpatizante especial: Tertuliano, sendo que é dele a associação dos montanistas com o milenarismo (176). O reinado de Jesus sobre a Terra deveria estar bem próximo, pois é atribuída a Maximila a declaração: “depois de mim não haverá mais profecia, apenas o fim” (177).

 

Bem, o fim não veio e nada mais constrangedor para um movimento que o fracasso retumbante de uma profecia. Isso não significa necessariamente o fim dele, tal como provam os tempos modernos a permanência das testemunhas de Jeová e dos adventistas, mesmo após sucessivas predições fracassadas. De fato, Agostinho de Hipona (De Haeresibus, cap. LXXXVI) nos relata a existência, em seu tempo, de uma igreja “tertulianista” em Cartago, na atual Tunísia, e que, segundo ele, derivou de uma dissidência dos montanistas promovida por Tertuliano.  Claro que qualquer outro grupo milenarista não poderia tomar a postura imediatista de Maximila sem o risco de desmoralização em curto prazo. Hipólito (século III), por exemplo, estimou o advento do Reino para o que equivaleria ao ano 500 da era cristã, estimando que a idade do mundo no nascimento de Jesus era de 5.500 anos (178). Acontece que antes disso o cristianismo tornou-se vitorioso, então ficou difícil conciliar o fim dos tempos com próprio sucesso da Igreja Católica. De certa forma, tal ascensão do cristianismo marcou o declínio das teses milenaristas. O ano “zero” do Reino milenar de Jesus passou a ser identificado com o próprio nascimento dele e a consolidação da Igreja seria a prova disso, como atesta Agostinho de Hipona:

 

Então os mil anos podem ser compreendidos de duas formas, como me ocorreu até agora: ou essas coisas acontecem no sexto milhar de anos ou sexto milênio (a última parte das quais está agora passando), como se durante o sexto dia, que deve ser seguido por um sábado sem anoitecer, o infindável descanso dos santos, de modo que, falando de uma parte sob o nome do todo, ele chama de a última parte do milênio – ou seja, a parte que ainda tinha de expirar antes do fim do mundo – mil anos;  ou usou os mil anos como um equivalente para toda a duração deste mundo, empregando o número de perfeição para marca o cumprimento do tempo (...) O diabo, então, está agrilhoado e trancafiado no abismo de modo que não pode seduzir as nações das quais a Igreja é constituída e que anteriormente seduziu antes de a Igreja existir. Pois não se diz “que ele não seduzisse qualquer homem”, mas “que ele não seduzisse as nações” (Ap 20:3) – significando, sem dúvida, as nações entre as quais a Igreja existe – “até os mil anos serem cumpridos” (Ap 20:3) – i.e., ou o que permanece do sexto dia que consiste de mil de anos, ou todos os anos que vão passar até o fim do mundo.

 

Cidade de Deus, XX, cap. VII

 

A parúsia foi lançada para um tempo distante e, assim, completou-se um processo em que uma seita inicialmente judaica, marginal e apocalíptica se tornou uma religião universalista, imperial e duradoura. O que não significa que datas para o “fim do mundo” não reapareçam de tempos em tempos, dadas por gente do calibre de Raoul Glaber (1.033), Joachim de Fiori (1.260), Wiiliam Miller (1.843-4, cujo movimento deu origem aos adventistas do sétimo dia) e os dirigentes da Watch Tower (Torre de Vigia), cujo grupo é conhecido no Brasil como Testemunhas de Jeová e que, de 1914 a1975, se esmeraram em marcar datas (179). Mesmo religiões que dão, digamos, um “prazo indefinido” para a nossa realidade podem não resistir à tentação de se apropriar indebitamente reinterpretar o apocalipse joanino. Há um exemplo disso no próprio movimento espírita:

 

Adiante, refere-se João à visão que, entre lágrimas, teve do Cordeiro e do livro selado com os “Sete Selos”, detalhando os acontecimentos relativos à abertura de cada um deles.

 

Na abertura do “primeiro selo”, aparece na Terra, de forma gloriosa, o Espiritismo. Simbolicamente, temos ali Allan Kardec representado pelo cavaleiro que “trazia um arco e a quem foi dada a coroa – saiu vencendo para vencer” – renascimento do Cristianismo puro.

 

Kühl, Eurípedes; Fragmentos da História pela Ótica Espírita, Petit, 1996, cap. IV, p. 35.

 

O que não deixa de ser, de certa forma, uma postura similar a de Agostinho em associar o “começo do fim” com o surgimento do próprio credo. Mudam-se os tempos, já as especulações...

 

Pois bem, já que do século I ao V se apresenta uma evolução do pensamento cristão acerca da escatologia, então teria havido também um evolução nas crenças do pós-morte, de forma a reencarnação seria dominante na ortodoxia ao tempo de Justiniano, certo? Errado. É aí que a crise origenista do século VI e o II Concílio de Constantinopla se revelam uma espécie de par de muletas criado para sustentar justamente esse primeiro mito. Não é difícil encontrar em obras de autores espíritas  - como “Analisando as Traduções Bíblicas” (Severino Celestino da Silva, Idéia, 4ª ed., 2002), “A Reencarnação na Bíblia e na Ciência” (José Reis Chaves, ebm, 7ª, 2006) ou “O Espiritismo e as Igrejas Reformadas” (Jayme Andrade, EME, 1ª ed., 1983) – alusões à suposta simpatia reencarnacionista de vários pais da Igreja. O problema é muito pouco há de solidez nessas alegações. Eis um quadro-resumo baseado em uma análise que está em Os Pais da Igreja:

 

Teólogo

Alegação

Fonte

Crítica

Justino Mártir

1) Fazia parte da listas dos santos reencarnacionistas. 2) Defensor de uma maneira limitada de transmigração das almas.

1) [Chaves, cap. VI, p. 213]

2)[da Silva, cap. XVII, p.243, em citação]

Não é apresentada nenhuma referência sobre onde Justino tenha dito isso. Referências de autores espiritualistas anglófonos (p.e. [Geddes, cap. III]) indicam a obra “Diálogos com Trifão”, cap. IV. A obra, de natureza autobiográfica, narra a própria conversão do autor ao cristianismo. No capítulo indicado para sua fala reencarnacionista, ele ainda se apresenta como pagão, porém sua própria crença balança ante a argumentação do judeu Trifão. Só no capítulo VIII é que abraça o cristianismo.

Clemente de Alexandria

1) Fora acusado pelo teólogo bizantino Fócio de ser partidário da reencarnação.

2) Defensor de uma maneira limitada de transmigração das almas.

1) [Chaves, cap. VI, p. 199-201] e [Andrade, parte VIII, cap. III, p.183]

2) [da Silva, idem]

Em um conjunto de resenhas sobre diversos livros e autores (“Biblioteca ou Myriobiblon”), Fócio dedicou um verbete à obra Hypotyposes (“Esboços”, citada apenas por J. Andrade) de Clemente, onde ele teria falado “absurdos prodígios acerca da transmigração das almas e a existência de numerosos mundos antes de Adão.” Do modo que esse comentário está, pode-se supor um modelo inter-eras como o de Orígenes. Infelizmente, Esboços está perdida e não saberemos até que ponto a acusação procede. Se não fosse o ataque de Fócio, não imaginaríamos um viés heteroxodo nela, pois nenhum outro escritor o faz. Curiosamente, Fócio também fez resenhas simpáticas a duas outras obras de Clemente (“Stromateis” e “Tutor”), que chegaram até nós e contêm passagens contra a reencarnação.

Arnóbio

1) Em ”Adversus Gentes” [Contra os Pagãos], evidencia uma certa simpatia por essa doutrina [preexistência da alma] e acrescenta que Clemente de Alexandria “escreveu histórias maravilhosas sobre a metempsicose”.

 

1) [Andrade, parte VIII, cap. III, p.182-3]

Em “Contra os Pagãos” não foi possível sequer encontrar uma menção ao nome “Clemente”. A quem quiser tentar (use "Clement" para esta versão inglesa), boa sorte! A propósito, essa fala de Arnóbio lembra muito a de Fócio. Faz pensar se, por acaso, não tomaram um autor por outro.

Gregório de Nissa

1)  Um texto dele: ”Há necessidade de natureza para a alma imortal ser curada e purificada, e se ela não o for na sua vida terrestre, a cura se dará através de vidas futuras e subsequentes.

1) [Chaves, cap. VI, p. 211-2] e [Andrade, parte VIII, cap. III, p.183]

 

Chaves cita de um espiritualista [Reencarnação, J. van Auken], ao passo que Andrade dá como referência direta a obra Grande Catequese, partes III e VIII. A questão é que Gregório de Nissa era traducianista, i.e., acreditava que alma e corpo eram gerados juntos [v. Sobre a Alma e a Ressurreição], não sendo viável, assim, uma ideia de reencarnação, que até chegou a combater [v. Sobre a Criação do Homem, cap. XVIII]. Gregório também era um universalista, acreditando que todos seriam salvos, ainda que uns somente após longo estágio purgatório. Em Grande Catequese, parte III, cap. XXXV, ele separa a purificação pela água (batismo e arrependimento), escolhida por alguns ainda em vida, da feita pelo “fogo”, a ser aplicada compulsoriamente “por longas eras sucessivas” aos que morreram ainda pecadores.

Jerônimo de Aquileia

Teria relatado simpatias à transmigração e à pré-existência das almas em suas cartas à Demétrias e a Ávito.

1) [Chaves, cap. VI, p. 210-1] e [Andrade, parte VIII, cap. III, p.182-3]

 

Quem se dispuser a ler as cartas de Jerônimo para Demétrias (n.130) e a Ávito (n. 124) há de notar que a postura de Jerônimo é totalmente hostil à transmigração e à pré-existência. A carta a Ávito, por sinal, é a mesma onde ele expõe um resumo de sua tradução de De Principiis, malhando Orígenes o tempo todo. É difícil crer que alguém, ao associar Jerônimo à transmigração usando essas cartas, tenha lido alguma delas realmente.

Agostinho de Hipona

Santo Agostinho escreveu: “Não teria eu vivido em outro corpo, ou em outra parte qualquer, antes de entrar no ventre de minha mãe?” (“Confissões”, I, cap. VI).

1) [Chaves, cap. VI, p. 209] e [Andrade, parte VIII, cap. III, p.183]

 

O texto de J. Andrade deve possuir um erro de tradução do inglês para o português em que was anybody foi traduzido por “estive em outro corpo”. A versão de J. R. Chaves traz a tradução “era alguém”, mais conforme ao original latino. O máximo que o trecho pode dar são cogitações sobre algum tipo de pré-existência. Agostinho nunca se decidiu quanto à questão da origem da alma [v. Sobre a Alma e sua Origem, IV, III], mas quanto ao destino da alma ele era bem claro: redenção ou danação eternas. Pode-se ler isso em uma de suas principais obras - Cidade de Deus, XXI, XVII – onde, inclusive, ataca Orígenes.


Não foi posto nesse quadro o próprio Orígenes - que é usado por todos – e recebeu um tratamento à parte neste estudo, até por sua complexidade. Não foram incluídos, também, membros da patrística que foram explicitamente contra a reencarnação, mas em geral não usados por autores espiritualistas, como Irineu de Lião (cf. Contra as Heresias, II, XXXIII).

 

Caso autores espíritas/espiritualistas se limitassem a seitas heréticas antigas, seria mais fácil sustentar a crença da reencarnação em alguns grupos cristãos primitivos. Quando o desejo de ser a verdadeira recriação do “cristianismo puro” se tornou mais forte, foi necessário buscar exemplos em que o presente espelhasse passado, principalmente no grupo que era ou veio a ser a ortodoxia no século IV. O problema para eles é que, do ponto de vista histórico, o fosso entre o que seria o cristianismo original e o espiritualismo moderno é bem largo. Caso fôssemos dar um troféu “emulação da antiguidade” para um grupo cristão atual, o provável vencedor seria alguma seita de judeus messiânicos (i.e., que têm Jesus como Messias) que tivesse tendências apocalípticas. Poderiam ser algo próximo ao menos à segunda geração de judeu-cristãos do século I. Se os jurados desse concurso aceitassem também as cartas paulinas, então várias seitas cristãs apocalípticas modernas poderiam concorrer ao prêmio. Avançando um século e meio após a paixão, talvez fique constrangedor para um espírita admitir que os cristãos da latinizada África Romana tinham um comportamento similar ao que hoje pode ser encontrado em seitas pentecostais, conforme um relato de Tertuliano em sua Apologia, XXIII (ver nota n. 15) e que possivelmente faria dele alvo de seus ataques. Relembrando Hobsbawm, é difícil para a justificação de doutrinas atuais encontrar um passado que lhe adeque. O resultado é que ele acaba por ser inventado, distorcido ou usado de forma inapropriada.

 

Para terminar, convém citar uma última herança do período intertestamentário e que deve ter repercutido em Orígenes. Apesar de afirmar categoricamente a ausência da crença na transmigração das almas entre os judeus de seu tempo...

 

Se a doutrina [da transmigração] fosse largamente corrente, não deveria João ter hesitado em se pronunciar sobre isto, com receio de sua alma ter realmente estado em Elias? E aqui nosso fiel apelará para a história e dirá a seus antagonistas para perguntarem aos mestres na doutrinas secretas dos hebreus se eles na verdade sustentam tal crença. Como parece que eles não sustentam, então o argumento baseado nesta suposição se mostra muito desprovido de fundamento.

Comentário sobre o Evangelho de João, VI, cap. VII

 

... ele nada diz sobre a ausência ideia de pré-existência - o cerne de seu sistema – entre eles. Ele a extraiu a partir da interpretação alegórica da própria Escritura, até como uma forma de dar autoridade a sua tese, embora não seja improvável que, por seu contato com os judeus, também tivesse conhecimento de pseudoepígrafos contendo a pré-existência de forma bem mais explícita:

 

“(...) Se tu tens conhecimento dos homens de hoje, e dos que já se foram, eu [Deus] conheço os que hão de vir. Quando Adão pecou, atraindo a morte sobre os seus descendentes, foi então contada a grande massa daqueles que haveriam de nascer; e foi preparado um lugar para aquela multidão, tanto para a morada dos vivos como para a guarda dos mortos. Enquanto aquele número predestinado não for preenchido, as criaturas que morreram não reviverão. O meu Espírito é o de Criador da vida; e o mundo inferior continuará a receber os mortos.

“Porém, mais coisas ainda ser-te-á permitido ouvir sobre o que irá acontecer após esses tempos. Em verdade, a Salvação que vos preparei está próxima, e já não tão distante como anteriormente.”

 

II Baruque, cap. XXIII. Fonte: [Tricca, p. 314]

 

“Essas coisas, o que quer que eu tenha lhe ensinado, o que quer que tenha aprendido, e o que quer que tenha anotado, senta-te [e] escreve para todas as almas dos homens, ainda que algumas delas ainda não tenham nascido, e seus lugares preparados para a eternidade. Pois todas as almas foram preparadas para a eternidade antes da composição da terra.”

 

II Enoque, XXIII, 5 (recensão longa) [Charlesworth, p. 140] (180)

 

“Eu era um jovem de boas qualidades, coubera-me, por sorte, uma boa alma; ou antes, sendo bom, entrara num corpo sem mancha.”(181)

 

Sb 8:19,20

 

A passagem de II Baruque é mais surpreendente por falar claramente não só na pré-existência, mas também na finitude da criação, tal como o oitavo anátema de 543 acusaria Orígenes. Os versículos de Sabedoria de Salomão podem dar uma explicação para a passagem do “cego de nascença” (Jo 9:2), sem ter de apelar para “pecados pré-natais” (182). Óbvio que há certa especulação nessas comparações, mas elas não deixam de lançar a hipótese de que Orígenes não tenha sido 100% original em seu sistema e, sim, desfrutado de um derivado já um tanto tardio do período intertestamentário.

 

Onde Orígenes foi realmente inovador e com ideias que constituíram conclusivamente um “legado” para a teologia cristã foi na transformação definitiva de Satanás no Anjo Caído.

 

E o que se diz em muitos lugares, e especialmente em Isaías, de Nabucodonossor não pode ser explicado por aquele indivíduo. Pois o homem Nabucodonossor não caiu do céu, nem foi a estrela da manhã, nem se elevava da terra na alvorada (Is 14:12). Nem iria qualquer homem de entendimento interpretar o que se diz em Ezequiel sobre o Egito – a saber, que em quarenta anos estaria desolado, de modo que o pé de um homem não seria encontrado nele, e as destruições de guerra seriam tão grandes que sangue verteria por ele todo e atingiria os joelhos (Ez 29:11) – seja daquele Egito que está situado junto aos etíopes, cujos corpos são enegrecidos pelo sol.

 

De Principiis, IV, I, 22 – versão grega.

 

Este trecho, preservado tanto em latim (183) como em grego na coletânea de Philokalia Gnostica, é apenas um eco de uma análise feita muito antes (no volume I) sobre a questão da queda de Satã. Após citar uma ampla passagem do capítulo 14 de Isaías (versão LXX, do versículo 12 ao 22), Orígenes faz a adequação da mesma ao seu sistema:

 

Muitíssimo evidente que por essas palavras ele é apresentado como tendo caído do céu, ele que anteriormente era Lúcifer e que se elevava na manhã. Pois se, como pensam alguns, ele era de uma natureza de trevas, como se diz que Lúcifer existiu antes?  Ou como poderia se elevar na manhã quem não tinha nada de luz em si? Não, mesmo o próprio Salvador nos ensina, falando do diabo: “Eis que eu vi Satã cair do céu como um relâmpago” (Lc 10:18). Já que certa vez ele foi luz. Além disso, nosso Senhor, que é a verdade, comparou o poder de Seu próprio advento glorioso a um relâmpago nas palavras: “Pois assim como o relâmpago brilha do alto do céu até sua altura novamente, então será a vinda do Filho do homem” (Mt 24:27, ver nota 184). E ainda assim compara-o a um relâmpago e diz que caiu do céu, que Ele poderia mostra por meio disso que ele [Satã] certa vez estivera no céu, tivera um lugar entre os santos, e gozara de uma parte da luz na qual todos os santos participaram, pela qual eles são feitos anjos de luz, e pela qual os apóstolos são denominados pelo Senhor a luz do mundo. Dessa forma, então, tal ser existiu ante de se descaminhar, e cair para este lugar, e ter sua glória transformada em pó (...).

 

De Principiis, I, V, 5.

 

Fica implícito, na versão latina de Rufino, que havia pessoas que consideravam Satã um poder opositor permanente e equiparado a Deus, o poder do Bem, tal como no zoroastrismo. Orígenes assevera Deus como o único poder criador e Mal seria teria se originado de uma revolta deliberada contra esse poder, mas sem o superar e sendo castigado por isso. Seu método alegórico deu os insumos para a consolidação do dualismo cristão subsequente (185).

 

 

* * *

 

 

Poderia ser encerrada esta dissertação sobre Orígenes. Mas não seria bom terminar sem ouvir o que o “outro lado” teria a dizer, ainda que sua defesa seja, até agora, vã.

 

 

Notas:

 

(137) São chamados de “sinópticos” porque é possível fazer um resumo (sinopse) único para os três. Atualmente é bem aceita a tese de que Marcos foi o primeiro dos evangelhos e serviu de base para redação de Lucas e Mateus. Como muitas passagens possuem formas muito similares nesses dois últimos, mas não são encontrados em Marcos, acredita-se na possível existência de um evangelho de “logias” (ditos) chamado Q (do alemão Quelle – fonte) que foi mesclado à linha narrativa de Marcos de maneira independente nos outros dois sinópticos. Portanto, se uma passagem é comum aos três sinópticos, ela não procede três fontes diferentes, mas unicamente de Marcos, do qual os outros dois dependem. Marcos, os ditos de Q, o material exclusivo de Lucas (L) e o de Mateus (M) são as verdadeiras fontes distintas. João é bem diferente dos outros três, pertencendo a uma tradição de cristãos bem mais helenizados. Tomé é um evangelho de logias, cuja descoberta tornou a hipótese de Q mais plausível. À parte seu conteúdo gnóstico, possui parábolas muito similares às dos canônicos e, às vezes, até com leituras consideradas mais antigas.

 

(138) Esses critérios de historicidade foram apresentados em [Ehrman (2005), cap. VI, p. 161-6].

 

(139) Cf. [Vermes (2006a), epílogo, p. 458-9] e [Vermes (2006b), cap. VI, p. 232-5], esse último contendo várias citações talmúdicas. Para a importância da preservação da vida no judaísmo moderno, que supera todos os demais mandamentos, ver O Judaísmo Vivo, Michael Asheri, Ed. Imago, 1995, cap XLI, p. 253.

 

(140) Não confundir com uma seita homônima de cunho gnóstico.

 

(141) No Livro de Jó, Satanás aparece como uma espécie de membro do conselho divino, no papel de uma espécie de anjo-promotor a duvidar da integridade humana, mais especificamente de Jó. Seus diálogos com Iahweh dão a ideia de relação até mesmo amigável entre eles. Em Crônicas (21:1), Satã se volta contra Israel e incita o rei Davi a convocar um censo, atraindo a ira divina em forma de uma epidemia de peste.

 

(142) Grosso modo, a existência dos gigantes é pincelada em Gn 6:1-5, que o livro de Enoque (ou Henoc, Enoch) desenvolve em detalhes. Existem outros livros dessa personagem como II Enoque (ou Livro dos segredos de Enoque eslavônico) e III Enoque, onde o protagonista aparece transformado no arcanjo Metatron, mas tais obras não são continuações do livro do primeiro livro.

 

(143)Esse número é dado por [Kelly, cap. II, p. 54]. Na contagem que  fiz a partir da relação constante no catálogo manuscritos de [Vermes, 2004, p. 36-55] encontrei dezenove cópias  de tal livro, a saber:

 

- Caverna 1: 1QEnGiants

- Caverna 2:  2QEnGiants

- Caverna 4: 4QEnGiantsa-c, 4QEnGiantse, 4QEna-g, 4QEnastra-d, psEn

- Caverna 5: 5QpapEnGiants1

 

Curiosamente, não achei 4QEnGiantsd, que daria um total de vinte. Há algumas variações entre a lista exposta por Vermes e a que consta na lista de índices de títulos de [Martínez e Tigchelaar] e lá não só consta esse documento (no lugar de 4QEnGiantse, que aparece em outra parte), como alguns outros têm código diferente do atribuído por Vermes. Não importa que lista se use, para totalizar cerca de vinte documentos é preciso levar em conta não apenas os documentos que contêm Enoque completo (En), mas também os que possuem apenas subdivisões dele como o Livro dos gigantes (giants, em inglês) e o astrológico (Enastr). O Livro dos gigantes também é chamado de pseudo-Enoque (psEn) em alguns fragmentos.

 

(144) Ou “Vigilantes”, em algumas traduções.

 

(145) São palavras que possuem raízes linguísticas próximas: STM e STN, levando a hipótese de uma delas ser trocadilho. Cf. [Kelly, cap. II, p. 50).

 

(146) Vermes [2004] traduz simplesmente como “Satanás” o nome de “Belial” (Maldade, Perdição) por identificá-lo como sendo a mesma figura, coisa que [Kelly, cap. II] não faz. Martínez e Tigchelaar não alteram esse nome, talvez por fidelidade ao texto. Por isso, resolvi manter “Belial”.

 

(147) Boa parte do esforço de Kelly no segundo capítulo de Satã - uma biografia se concentra em desvincular as referências a demônios na literatura intertestamentária do que seria um ser essencialmente maligno como o diabo cristão. As referências de Qumran, por exemplo, são dadas mais como sendo a “figuras sem alma, alegóricas ou metafóricas, que se ocupam de seus assuntos com um só objetivo, e então desaparecem. Em outras palavras, não há Satã aqui” (p. 64). Uma das dificuldades que ele bem levanta a favor de sua tese é como conciliar a ideia de como Deus seria o criador intencional de Belial e o Anjo das Trevas e ao mesmo tempo os deteste, se só estão cumprindo seu desígnio? Há um pequeno “porém”: ainda que sua análise seja válida para os dois Espíritos de Preceito da Comunidade e as batalhas entre o Bem e Mal de Manuscrito da Guerra, elas não levam em consideração fragmentos de Qumran onde o Mal encontra uma personificação que parece ser dada como real pelos membros da seita, tal como o fragmento de maldição litúrgica contra Melkiresha, mostrado acima. Ou ainda um fragmento que mistura cântico com exorcismo em 4Q510 (4QShirb):

 

... louvores. A[ções de graça para o R]ei da glória. Palavras de ações de graça nos salmos de ... ao Deus do conhecimento, o Esplendor do poder, o Deus dos deuses, Senhor de todos os santos. [Seu] domínio é sobre todos os poderosos cheios de força e todos ficarão aterrorizados pelo poder de Sua força e espalhar-se-ão e serão afugentados pelo esplendor da mor[ada] de Sua glória real. E eu, o Mestre, proclamo a majestade da Sua beleza para afugentar e ater[rorizar] todos os espíritos dos anjos destruidores e os espíritos bastardos, os demônios Lilith (*), os uivantes (?) e [os que latem] os que atacam de súbito para descaminhar o espírito do entendimento e para amedrontar seus corações e seus ... na era do domínio da iniquidade e os tempos designados para a humilhação dos filhos da Lu[z], na culpa das eras dos que foram abatidos pela iniquidade, não para a destruição eterna mas para a humilhação pelo pecado. Exalta, ó justo, o Deus dos Milagres. Os meus salmos são para os justos ... Que todos, cuja conduta é perfeita, exaltem-nO.

 

(*)Demônio que, segundo tradições extrabíblicas, teria sido a primeira mulher de Adão. Rebelou-se contra o domínio masculino e juntou-se a anjos caídos. Seria responsável, entre outras coisas, pela morte de crianças e por adultérios.

 

Por essas razões, é melhor a tese da historiadora Líliane Crété de que o dualismo de Qumran “demonstra o quanto essa imagem de Satã estava presente no imaginário dos habitantes da Palestina nos séculos I e II de nossa era”. Não houve nenhum salto entre o Novo e o Velho Testamento que o período intertestamentário não cobrisse.

 

A propósito, recomendo certo cuidado com a tradução em português disponível. No capítulo II, p. 49,  Jubileus 10:8 é traduzido assim: “Oh, Senhor Criador, deixe alguns deles diante de mim...” [O Lord, Creator, leave some of them before me...], o que é um tanto literal. Ficaria melhor “deixe alguns deles comigo”, ou “para mim”. No mesmo capítulo, página 63, lê-se: “no livro da Bíblia conhecido na Idade Média Cristã como Eclesiastes (os protestantes o consideram parte da Apócrifa, mas os católicos e cristãos ortodoxos acreditam que seja um livro inspirado do Antigo Testamento)”. Bem, nos meus exemplares de Bíblias protestantes o livro de Eclesiastes vai bem, obrigado. O que não consegui encontrar foi Eclesiástico. No original em inglês, essa derrapada não ocorre, ainda bem!

 

(148)É provável que tal erva seja a mesma relatada em Guerras Judaicas:

 

Mas ainda no vale que rodeia Maquerom, do lado do norte, encontra-se um lugar chamado Baaras, que produz uma raiz que tem o mesmo nome e sua cor parece com uma chama e, ao anoitecer, emite luz resplandecente. Não é fácil de ser colhida como seria esperado, em vez disso ela se retrai de suas mãos, nem se deixará colher tranquilamente até que ou a urina de uma mulher, ou seu sangue menstrual, seja jogada sobre ela; e não somente isso: mesmo então é morte certa para os que a tocarem, a menos que se leve e segure a raiz da mesma planta e assim extraí-la. Também se encontrou um outro meio de colhê-la sem perigo, que é este: cava-se uma vala bem ao redor dela, até que a parte ainda oculta a raiz seja bem pequena. então amarra-se um cão a ela e, quando esse tenta seguir aquele que o amarrou, a raiz é facilmente arrancada, mas o cão morre imediatamente, como se fosse no lugar do homem que iria retirá-la; depois disso não é preciso ter medo de tomá-la em mãos. Entretanto, depois de todas essas dores para obtê-la, ela é apenas valiosa pela virtude que tem que, sendo apenas levada aos doentes, expulsa os chamados demônios, que não são nada além dos espíritos dos maus, que entram nos homens que estão vivos e os matam, a não ser que se obtenha alguma ajuda contra eles.

 

Guerras VII - cap VI. Fonte: Project Gutemberg

 

(149) É irrelevante, do ponto de vista histórico, a natureza da ação demoníaca sobre os mortais. Céticos dirão que não passou de embuste a performance que Vespasiano testemunhou. Espíritas podem dizer que se tratou de um caso de desobsessão rústico. Pouco interessa o que eram esses demônios, pois o que importa é como os contemporâneos encaravam esses fatos. Dizer que, na verdade, era isso ou aquilo seria olhar o passado com os olhos de um grupo do presente, um dos maiores erros que um historiador pode cometer. Ainda que a crença em entes malignos seja equivocada, foi num meio onde era difundida que o cristianismo nasceu. Se quisermos entender o cristianismo primitivo, temos de nos subordinar aos seus primeiros adeptos, e não o contrário.

 

(150) Mais uma vez o termo “Satanás” usado por Vermes foi substituído por “Belial”.

 

(151) A Bíblia de Jerusalém transliterou como “cetim”. Outras edições, como a de João Ferreira de Almeida, trazem “quitim”.

 

(152) Achei bastante elucidativos os comentários feitos por [Reddish, p. 229-230]

 

(153) Atentar que esse livro não é continuação do deuterocanônico atribuído ao mesmo profeta.

 

(154) Obviamente, a unidade de medida “litro” não existia na época. Em versões inglesas do livro, encontra-se “a cor of wine”. Essa unidade de capacidade (cor) corresponderia a aproximadamente 400 litros (391 mais precisamente). Talvez um erro de digitação tenha transformado 400 em 40 e tradutor assim transcrito por extenso.

 

(155) Compare essa fartura dos tempos pós-apocalípticos com aquela descrita mais acima no Livro de Enoque, 10:9 -11:2. Teria um autor lido outro ou isso fazia parte do folclore de então?

 

(156) Cf. Gn 9:24-25, Dt 23:2, Dt 28:18, 2 Sm 12:13-14, 2 Sm 21:6, 1 Rs 2:33, 1 Rs 11:11-12, 1 Rs 21:29, 2 Rs 5:27, Is 14:21, Jr 16:10-11, Jr 29:21, Jr 32:18, Sl 109:14. Algumas passagens preveem o fim das punições hereditárias em um tempo futuro, como Jr 31:29-30, e algumas a negam desde já: Dt 24:16 e Ez 18:20.

 

(157) Repare que os livros de Macabeus fazem menção explícita a orações pelos mortos. Isto pode ser um dos motivos que levaram os líderes da Reforma protestante a adotar a Bíblia hebraica como Antigo Testamento e assim eliminar de seu cânon um livro que iria contra a sua teologia, embora ele tivesse grande  valor como documento histórico por narrar um genuíno episódio.

 

(158) Se Flávio Josefo aponta os fariseus como defensores da reencarnação, como defendem alguns, favor explicar porque os maus, que mais precisariam de uma nova chance, não a teriam. Também explicar porque reencarnar num mundo de sofrimento seria alguma espécie de “recompensa”, se havia opções melhores...

 

(159) No Evangelho segundo o Espiritismo, cap. IV

 

A reencarnação fazia parte dos dogmas judaicos sob o nome de ressurreição. Somente os saduceus, que pensavam que tudo acabava com a morte, não acreditavam nela. As idéias dos judeus sobre esse assunto, e sobre muitos outros, não estavam claramente definidas, pois apenas tinham noções vagas e incompletas sobre a alma e sua ligação com o corpo. Acreditavam que um homem que viveu podia reviver, sem entender entretanto de que modo isso podia  acontecer. Designavam pela palavra ressurreição o que o Espiritismo chama mais apropriadamente de reencarnação. De fato, a ressurreição supõe o retorno à vida do corpo que está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, porque os elementos desse corpo estão, desde há muito tempo, desintegrados na Natureza. A reencarnação é o retorno da alma ou Espírito à vida corporal, mas em um outro corpo, formado novamente para ele, e que não tem nada em comum com o que se desintegrou. A palavra ressurreição podia assim se aplicar a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, conforme se acreditava, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, porque João tinha sido visto desde criança e sabia-se quem eram seu pai e sua mãe. João, portanto, podia ser Elias reencarnado, mas não ressuscitado.

 

Tal argumento de Kardec é muito questionável. Mesmo os grupos judaicos que desenvolveram em tempos medievais o conceito reencarnacionista gigul ainda creem em ressurreição no fim dos tempos. Algumas facções alegam que apenas última encarnação será ressuscitada; outras, a primeira, e até há quem creia em uma ressurreição que englobe todo o conjunto de vidas [cf. Blau]. O fato de a ressurreição ser inviável do ponto de vista científico é irrelevante do ponto de vista de um historiador. Se os judeus do período intertestamentário advogavam uma ressurreição física, então qualquer estudo que se faça sobre eles deve respeitar isso, do contrário correrá o risco de distorcer o passado para que se adeque a ideias e vieses do presente. Por último, havia relatos que deixavam bem claro que tal ressurreição estava longe de ser reencarnação nos moldes espíritas ou um processo exclusivamente espiritual. O livro de II Baruque dá um exemplo disso, apresentando uma ressurreiçã um exemplo disso, apresentando uma ressurreiç. O livro de II Baruque do física seguida por uma espécie de transfiguração.

 

(160) O livro Apócrifos – Os Proscritos da Bíblia, vol. III, de Maria H. O. Tricca possui uma gigantesca lacuna em II Baruque, que vai do capítulo XL ao LXXXIX. Não creio que tenha sido só o meu exemplar, pois a numeração das páginas não dá saltos. Ao que me parece, não há ruptura no texto, apenas na numeração dos capítulos. Os capítulos XLIX – LI corresponderiam aos XCIX – CI dessa edição. Como consequência, o livro está incompleto. Ignoro se isso foi corrigido em edições posteriores e, por via das dúvidas, traduzi a referida passagem do texto inglês de Charlesworth.

 

(161) Os saduceus, de acordo com o “Evangelho segundo o Espiritismo”, Introdução, item 3

 

Seita judia que se formou por volta de 248 a.C.; assim nomeada devido a Sadoc, seu fundador. Os saduceus não acreditavam nem na imortalidade da alma, nem na ressurreição, nem nos bons e maus anjos. Entretanto, acreditavam em Deus, mas não esperavam nada após a morte, somente o serviam em vista de recompensas temporais que, segundo a crença que tinham, era ao que se limitava sua Providência. A satisfação dos sentidos era para eles o objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras, os saduceus se prendiam ao texto da antiga lei, não admitindo nem a tradição, nem nenhuma interpretação; colocavam as boas obras e a execução pura e simples da lei acima das práticas exteriores do culto. Eram, como podemos ver, os materialistas, os deístas e os sensualistas daquela época. Essa seita era pouco numerosa, mas contava com personagens importantes, e se tornou um partido político constantemente oposto aos fariseus.

 

Não deixa de ser um tanto ilógico associar uma seita que cria em Deus e o temia com materialistas. O fato de crerem que esta vida era a única que poderiam almejar não os torna automaticamente sensualistas. Se as punições também eram deste mundo, era preciso seguir condutas éticas para evitá-las, e isso também pode ser encontrado na Antiga Lei. Seria um pouco de preconceito por não crerem em vida após a morte?

 

(162) Existe ao menos um fragmento encontrado em Qumran (4Q521) que descreve Deus, na era do Messias, a curar feridos e ressuscitar os mortos. Se esse texto for de composição da seita, então ela também cria na ressurreição dos mortos pós apocalíptica.

 

(163) Vide [Ehrman (2005), cap VII, p. 198]. Boa parte da linha de raciocínio extraída neste capítulo veio de [Ehrman (2005), cap VI e VII], [Vermes (2004), cap. III, p. 115-6], [Vermes (2006a), cap. X, p. 430-5], [Vermes (2006b), cap. VII, p. 263-79], [Charlesworth, Introdução, p. xxxiii]. O principal, digamos, acréscimo feito aqui foi transcrever os textos que esses autores muitas vezes apenas dão em forma de referência.

 

(164) Nas palavras de Ehrman [2005, cap. VI, p. 179-80]:

 

É importante considerar como os historiadores efetuam esse tipo de trabalho, para lançar minha tese principal: a de que descobrir a respeito de Jesus não é uma questão de adivinhação, por um lado, nem, por outro, de sair-se com alguma ideia imaginosa. É sempre fácil aparecer alguém – qualquer um! – com alguma alegação especulativa ou sensacionalista sobre Jesus: Jesus era casado! Jesus teve filhos! Jesus era um mago! Jesus era marxista! Jesus era um revolucionário armado! Jesus era gay (*)! Eu não estou negando que as pessoas tenham todo o direito de dizer o que quiserem sobre Jesus, sejam alegações sensacionalistas ou cautelosas. Para que possam aceitá-las, no entanto, os historiadores precisam examinar as provas. As únicas provas que dispomos são as fontes mais antigas, e não podemos simplesmente tomá-las em sentido literal, nem ficar lendo em suas entrelinhas para fazê-las dizer o que queremos que digam. Elas têm de ser usadas de maneira crítica, de acordo com critérios estabelecidos e princípios históricos.

 

Uma vez feito isso, chegamos a um entendimento historicamente plausível de Jesus, que contextualiza sua figura – suas palavras, seus atos e suas experiências – no tempo em que viveu, sem tentar fazer com que se encaixe perfeitamente no nosso tempo. Sob muitos aspectos, a imagem de Jesus que assim obtemos pode parecer estranha aos olhos modernos. Pois o fato é que Jesus parece ter sido um apocalipcista judaico que previa o fim de nossa época do mal ainda em sua própria geração. Pode não ser o Jesus sobre o qual aprendemos nas aulas de religião, nem tampouco o Jesus propagado em obras populares de ficção baseadas em alegações sensacionalistas. Mas efetivamente parece ser o Jesus da História.

 

(*)Todas essas alegações foram feitas por estudiosos (e não estudiosos) que se debruçaram sobre o Jesus histórico. Ver meu livro Jesus: Apocalyptic Prophet, pp. 21-22.

 

(165) The Five Gospels é um livro ambicioso feito pelos membros do Jesus Seminar e que objetiva “passar um pente fino” em todas as frases atribuídas a Jesus nos quatro evangelhos canônicos mais o de Tomé, a fim de decidir quais teriam realmente sido ditas por ele ou não. Nele é apresentado um código de cores para cada dito de Jesus: vermelho (são palavras de Jesus), rosa (é provável que sejam palavras dele), cinza (palavras duvidosas) e preto (não foi proferido por Jesus). É uma obra técnica cujas análises são baseadas numa série de critérios apresentados no capítulo introdutório, além de apresentar uma tradução para o inglês moderno e, portanto, bem mais palatável que a versão King James. The Five Gospels guarda  algumas surpresas interessantes para o público leigo, como o fato de João ser quase todo rotulado de preto, inclusive passagens caras aos teólogos espíritas, como a conversa com Nicodemos (Jo 3:1-13) ou o “consolador prometido” (Jo 14:23-29). Vale lembrar que o livro não avalia a veracidade dos atos atribuídos a Jesus (i.e., se ele realizou milagres ou esteve neste ou naquele lugar), nem trata das falas dos narradores.

 

(166) Vide [Ehrman (2005), cap. VI, p. 163-4] para outros exemplos desse critério.

 

(167) [Vermes (2006b), cap. III, p. 75-6]

 

Das quatorze cartas a ele atribuídas pela tradição da igreja, a autenticidade da epístola aos hebreus é universalmente rejeitada pela erudição crítica. O cabeçalho de Aos hebreus, à diferença de qualquer outro título de escritos associados a Paulo, não contém nenhuma menção a um autor ou remetente. Apesar de construídas sobre as suas ideias, as chamadas epístolas pastorais (1 e 2 Timóteo e Tito) são consideradas posteriores a Paulo. Efésios e colossenses provavelmente são trabalhos apócrifos de um imitador posterior a Paulo.stru do narrador.os os anos que v Não obstante, mais da metade da coleção – isto é, as Epístolas aos Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, Filêmon, 1 e provavelmente 2 Tessalonicenses – é reconhecida por estudiosos contemporâneos do Novo Testamento como escrita por Paulo já nos anos 50 do século I d.C.

 

(168) [Read, cap. II, p. 35]

 

A controvérsia acerca de Paulo continua até hoje. A ele se atribui a invenção do cristianismo – elevando “um exorcista galileu” à condição de fundador de uma religião universal. Todavia, a animosidade dos líderes judeus da época era causada pelo extraordinário êxito por ele alçado em suas viagens de evangelização pelo Império Romano. As cartas que Paulo escreveu àqueles que ele convertera em cidades como Efésio, Corinto e Roma revelam grande respeito pela tradição judaica, mas uma insistência inflexível em que a Lei Mosaica é agora redundante, em que somente podemos ser salvos pela fé em Cristo.

(169) Tertuliano, Sobre o Batismo, cap. XVII

Mas se os escritos que erroneamente levam o nome de Paulo alegam o exemplo de Tecla como uma licença para o ensino e batismo feito por mulheres, que saibam que, na Ásia [atual Turquia], o presbítero que compôs tal escrito, como se fosse aumentar a fama de Paulo por meios próprios, após ser condenado e confessar que fizera isso por amor a Paulo, foi retirado de seu posto. Pois quão crível pareceria ele, que nem mesmo permitiu a uma mulher aprender com tamanha ousadia, daria a uma fêmea o pode de ensinar e batizar! Que fiquem caladas, diz ele, e em casa consultem seus maridos. (cf. I Cor 14:34-35)

 

É bom lembrar que essa passagem de I Coríntios em que Tertuliano se baseia é considerada espúria e fruto da igreja pós-paulina. A própria evidência interna da carta (I Cor 11:2-16) informa que mulheres profetizam e oram nas igrejas paulinas, devendo apenas cobrir a cabeça ao fazê-lo. Ora, se profetizavam e oravam, caladas é que não ficavam e Paulo imediatamente as repreenderia por falar, não por estar com cabeça descoberta.

 

(170) Ué? Por que está lendo esta nota? Por acaso intuiu que a carapuça lhe servia e veio correndo vesti-la? Ou não vai querer perder a pose e admitir que também lança mão de livres-associações ampla liberdade interpretativa para enxergar reencarnação na Bíblia, ignorando todo o contexto histórico? Se os gnósticos enxergavam até metempsicose, porque a interpretação deles não seria aceitável a vocês? “Ah, mas as questões 611-3 do Livro dos Espíritos dizem que uma transmigração tão direta assim não ocorre...”. Tá, então você subordina sua interpretação à doutrina para que uma se encaixe na outra. Ok, já vi até onde vai sua honestidade intelectual. Mas não se preocupe, pois não está sozinho. De certa forma, todos os credos que alegam ser herdeiros de seus predecessores fizeram isso. Mas um erro não justifica outro. Aliás, eu só queria dizer mesmo é que Albert Schweitzer [cap. I] encarava o advento do gnosticismo como uma resposta ao fracasso da escatologia. Pode voltar a ler o texto.

 

(171) A epístola de Barnabé pode ser classificada como o que alguns chamam de “cânon falido”: textos que tiveram alguma aceitação entre as comunidades cristãs antigas, mas acabaram ficando fora do corpo “oficial” do Novo Testamento após sua consolidação, deixaram de ser copiadas e (quase) caíram no esquecimento. Epístola foi redescoberta nos Códices Sinaítico e no Gerusolemitano, ambos trazidos a público no século XIX e quase nada traz sobre seu próprio autor, sendo atribuída a Barnabé por referências feitas por autores da patrística. No capítulo XVI, há uma menção à destruição do Templo de Jerusalém e uma esperança em sua reconstrução com a ajuda romana. Isso impõe como limite máximo para a antiguidade do documento o ano de 70 d.C. e também garante que ele não é posterior a 132 d.C., quando a revolta de Bar Kochba eliminou qualquer chance de os romanos o reconstruírem. Em linhas gerais, a epístola é endereçada a leitores judeus (mas talvez visando um público cristão) e, com o uso e abuso de alegorias, tenta provar que o judaísmo era um credo falso que deveria ser sucedido pelo cristianismo. Há de se perguntar se, caso essa epístola adentrasse o cânon, o antissemitismo cristão não seria ainda mais pronunciado ao longo dos tempos.

 

(172) A edição de Ante-nicene Fathers, vol. I, traz a seguinte observação de Hefele: “Isso significa que: ‘Se os sábados dos judeus fossem o verdadeiro sábado, teríamos sido enganados por Deus, que exige mãos puras e um coração puro’”.

 

(173) Neomênia é a primeira lua nova, que marca o início de um mês no calendário lunar. Tal como o sábado, a neomênia era um dia de repouso (Lv 23:24).

 

(174) Esse “oitavo” dia da semana seria o domingo da ressurreição.

 

(175) Para Justino, ver Diálogos com Trifão, cap. LXXX.

 

Mas eu e outros, que são cristãos de pensamento correto em todos os pontos, estamos certos de que haverá uma ressurreição dos mortos e mil anos em Jerusalém, que então será construída, ornamentada e ampliada, [como] os profetas Ezequiel e Isaías e outros declaram

 

 Para Irineu, Contra as Heresias, livro V, cap. XXVIII, parágrafo III.

 

Quantos foram os dias empregados  a criar este mundo, tantos serão os milênios da sua duração total. Eis por que o livro do Gênesis diz: “Assim foram concluídos os céus e a terra e toda a sua ornamentação. Deus concluiu no sexto dia toda a obra que fizera e no sétimo dia descansou de todas as obras que fizera” (Gn 2:1-2). Esta é a descrição do passado, tal como aconteceu, e ao mesmo tempo uma profecia para o futuro: com efeito, “se um dia do Senhor é como mil anos”, se a criação foi acabada em seis dias, está claro que a consumação das coisas será no sexto milênio.

 

 Tertuliano e Hipólito serão referenciados a seguir.

 

(176)Tertuliano, Contra Marcião, livro III, cap. XXV:

 

E a palavra da nova profecia, que é uma parte de nossa crença, atesta como ele anteviu que haveria como sinal uma imagem dessa cidade [Nova Jerusalém] uma visão prévia a sua manifestação. Essa profecia, de fato, foi bem recentemente cumprida numa expedição ao Oriente. Pois isso é evidente, a partir até mesmo do relato de testemunhas pagãs, que na Judeia havia, suspensa no céu, uma cidade no começo de cada manhã, por quarenta dias. À medida que o dia avançava, toda a imagem de suas muralhas esvaecia gradualmente e, algumas vezes, desaparecia instantaneamente. Dizemos que essa cidade foi provida por Deus para receber os santos na sua ressurreição e restabelecê-los com a abundância de todas as genuínas bênçãos espirituais, como uma recompensa para o que, no mundo, tenhamos desprezado ou perdido; já que é tanto justo quanto digno de Deus que Seus servos tenham sua alegria no lugar onde eles também sofreram aflição por amor ao seu nome. Esse é o processo do reino celeste. Após encerrados os seus mil anos, período dentro do qual estará completa ressurreição dos santos, que mais cedo ou mais tarde se erguem conforme seus méritos, seguir-se-á a destruição do mundo e conflagração de todas as coisas no julgamento: seremos transformados num instante na substância dos anjos, seja pela investidura de uma natureza incorruptível, e então seremos levados para aquele reino no céu do qual estamos agora tratando, como se não tivesse sido predito pelo Criador, (...)

 

(177) Foi difícil encontrar a fonte para esse texto. Ehrman [(2003), cap. VI, p. 150] a cita mas não dá nenhuma referência. Após pesquisar um tanto às cegas, encontrei e verifiquei que a informação procede de Epifânio, Sobre as Heresias, XLVIII, II, disponível em Patrologia Graeca, vol. XLI, col. 858.

 

(178) Hipólito de Roma, Sobre Daniel, cap. II

 

(..)Pois como os tempos são mencionados a partir da fundação do mundo e contados a partir de Adão, eles põem claramente perante nós a questão com que nossa indagação trata. Pois a primeira aparição de nosso Senhor na carne ocorreu em Belém, sob Augusto, no ano de 5.500; e Ele sofreu no trigésimo terceiro ano. E 6.000 anos devem ser completos a fim de que o sábado possa vir, o descanso, o santo dia “no qual Deus descansou de todos as Suas obras” (Gn 2:2).

 

Além disso, ao mencionar o “outro”, ele especifica o sétimo, no qual há descanso. Mas alguém pode estar pronto para dizer; “Como você me provará que o Salvador nasceu no ano 5.500?” Aprenda isso facilmente, ó homem; para as coisas que ocorreram antigamente no deserto, sob Moisés, no caso do tabernáculo, foram constituídos tipos e emblemas de mistério espiritual, a fim de que, quando a verdade viesse em Cristo nestes últimos dias, você fosse capaz de perceber que essas coisas foram cumpridas. Pois Ele lhe diz: “E farás uma arca de madeira imperecível e a cobrirás de ouro puro por dentro e por fora; e farás o cumprimento de dois côvados e meio, e disso a largura de um côvado e meio, e um côvado e meio de altura” (Ex 25:10); que mede, quando tudo somado, cinco côvados e meio, de modo que 5.500 anos podem assim ser deduzidos.

 

(179) Para quem quiser um relato, digamos, mais aprofundado sobre as previsões apocalípticas furadas que ocorreram ao longo do tempo, recomendo o capítulo I de [Ehrman (2001)] e [Gould].

 

(180) O primeiro volume da série Apócrifos: Os Proscritos da Bíblia também contém II Enoque (ou Livro dos Segredos de Enoque) e possui essa passagem (p. 38-9), mas sua versão não narra a história de Melquisedeque e a separação dos versículos é diferente.

 

(181) A Bíblia de Jerusalém traz a seguinte nota de rodapé: “Este texto não ensina a pré-existência da alma como se poderia crer, se fosse isolado do contexto. Ele corrige a expressão do versículo 19, que parecia dar prioridade ao corpo como sujeito pessoal, e sublima a proeminência da alma”. Bem...

 

(182) Recomendo ler o Comentário ao Evangelho de João feito por John Lightfoot.

 

(183) Da versão latina:

 

E como seria possível podermos aceitar, como dito a respeito de um homem, o que está relatado em muitas passagens da Escritura e especialmente em Isaías a respeito de Nabucodonossor? Pois não é ele um homem de quem se diz “ter caído do céu”, ou que era “Lúcifer”, ou que “se eleva na manhã” (Is 14:12). Mas com respeito àquelas previsões que se encontram em Ezequiel quanto ao Egito, tais como a que ele seria destruído em quarenta anos, de modo que não se encontraria pé de homem nela (Ez 29:11), e que deveria sofrer tal devastação, que por toda a terra o sangue dos homens subiria até os joelhos, eu não conheço ninguém dotado de entendimento que pudesse relacionar isso ao Egito terreno, que faz fronteira com a Etiópia. Mas vejamos se isso não pode ser compreendido mais adequadamente na seguinte forma: sabendo que como há uma Jerusalém celestial e uma Judeia, e uma nação que indubitavelmente a habita e é chamada de Israel; então também é possível que haja certas localidades próximas a essas chamadas ou de Egito, ou Babilônia, ou Tiro, ou Sídon, e que os príncipes desses lugares e as almas, se há alguma, que os habitam são chamados de egípcios, babilônios, tírios e sidonianos. A partir das quais, conforme o estilo de vida que lá levavam, pareceria ter resultado num tipo de cativeiro, em consequência do qual dizem que caíram da Judeia para dentro da Babilônia ou Egito, de uma condição mais elevada e melhor, ou terem se espalhado por entre os outros países.

 

O trecho em verde não tem correspondente na versão grega, embora o resto a acompanhe de perto. Pode ser que Rufino tenha trabalhado em cima de material distinto ou inseriu de próprio punho uma prévia ao conteúdo do parágrafo seguinte. Fica no ar a questão.

 

(184) Orígenes cita Mt 24:27 de um jeito diferente da maioria dos códices gregos que chegaram até nós e de suas traduções subsequentes. Possivelmente trabalhou com outro testemunho. Alfinetando um pouco a tradução feita para o português do livro Satã – uma Biografia, constato que o texto inglês de H.A. Kelly preservou a versão apresentada em Ante-Nicene Fathers, que indica como sendo sua fonte (cap. IX, p.231), mas a tradução nacional se valeu do conteúdo das Bíblias modernas para tal versículo.

 

(185) Curiosamente, Severino Celestino da Silva - em Analisando as Traduções Bíblicas, Idéia, 4ª ed., cap. XX, 282-3, - faz uma crítica aos que associam a passagem de Is 14:12 à queda Satanás. Tudo bem até aí, a questão é que Orígenes, usado por ele como exemplo de “reencarnacionista” na Igreja primitiva (cap, XI, p. 157-8), interpretou essa passagem exatamente da forma que ele critica. Irônico, mas não deixa de ser o resultado de um conhecimento apenas superficial sobre Orígenes e sua teologia.

 

 

 

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